Capítulo 28 - O Exílio

Anlyn estava trancada na cela da frente. Ela sacudia as grades que nos prendiam com ódio no olhar. Ansel entrou no mesmo instante. O barulho dos seus saltos se chocavam contra o chão. Notei que a nossa cela ficava dentro da sede do Conselho.

Ela tinha uma expressão fria e implacável de quem já tinha ganhado a batalha e a guerra.

— O Amor está vindo para realizar o exílio de vocês. — Ansel deu um sorriso vitorioso — Posso dizer que vocês facilitaram muito o nosso trabalho ao se unirem romanticamente com outros humanos. Não vou precisar forjar nada para que sejam eliminadas, vocês cavaram suas próprias covas sozinhas.

— Acha que o seu laboratório clandestino vai ficar oculto para sempre? Nós faremos com que o Amor descubra os seus esquemas! — Fechei as palmas das mãos sentindo raiva da expressão debochada e tranquila de Ansel. Não sei como faria para expor essa mulher, mas eu não iria deixa-la vencer tão facilmente.

— Com que provas? — Ansel levantou uma das sobrancelhas com uma expressão cética — O Amor nunca irá acreditar em vocês. Quando as experiências tiverem sucesso, ele ainda irá me agradecer. Estamos bem perto de conseguirmos uma resposta positiva dos resultados dos últimos testes que fizemos.

Me lembrei do líquido verde que o cientista injetou no rapaz. A dosagem que injetaram nele pareceu dar certo pela expressão satisfeita do cientista e dos médicos que estavam na sala.

Um arrepio percorreu a minha espinha.

— Agradecer? Você está matando as Almas! MATANDO! — gritou Anlyn, se agarrando as grades da cela.

— Elas não são Almas, são aberrações! Elas foram banidas!

— Quantas destas Almas não foram banidas injustamente? Slahat, Dellyn, Lehinf... Todos que discordam de você tem o mesmo destino.

— Vejo que ficou amiguinha desse povo. Eu sabia que você teve ajuda ao renascer naquele lugar.

Ela se referia as minhas mortes e renascimentos na Área Sombria. O Conselho sempre me questionou quanto a minha sobrevivência, sobre o fato de eu ter saído de lá todas as cinco vezes sem ajuda. Hahue e Slahat sempre me ajudaram, mas eu nunca confiei no Conselho para compartilhar esse fato. Meu instinto nunca me enganou.

— Você não vai se safar dessa, Ansel. Esse maldito Conselho vai cair! — Anlyn exclamou. Ansel deu uma risada repleta de deboche.

— Vamos ver quem vai cair quando o Amor chegar. — Ela nos encarou fixamente de cima antes de se retirar, com seu terninho cinza e seus cabelos grisalhos presos em um coque.

— Essa desgraça está muito confiante. — Minha amiga apontou para o lugar onde Ansel esteve há alguns segundos atrás.

— Sim, e com razão. — Encostei minha cabeça na parede surrada da cela e suspirei.

— Estou com medo. — confessou, olhando para baixo.

— Eu também, irmã. Eu também.

— Você se tornou a família que eu não tive, Lyra. Se algo acontecer conosco hoje, quero que saiba que eu te amo. — Seus olhos estavam marejados. Aquela foi a primeira vez que eu vi Anlyn chorando. Também senti vontade de chorar.

— Amo você, amiga. — Nós duas sorrimos em meio às lágrimas — Se pelo menos tivéssemos as fotos, ainda teríamos uma chance. — refleti, fazendo os olhos de Anlyn se iluminarem de uma forma diferente. Ela retirou um grampo de seu cabelo e o enfiou na fechadura.

— Eu vou tirar a gente daqui. — Ela disse, com uma determinação de aço.

O barulho do grampo na fechadura não era muito alto, mas eu temi que Ansel nos ouvisse mesmo assim.

— Isso! — Anlyn comemorou baixinho quando a porta da cela se abriu com um rangido. Ela correu até mim com o grampo em mãos para me libertar. Assim que me libertou, eu saí da cela e observei bem a sala. Tinha uma janela pequena na parede do meio que com certeza tornaria impossível a nossa fuga.

— O jeito vai ser tentar a porta da frente.

Para a nossa sorte, a porta não estava trancada. Porém ao abrirmos, demos de cara com um guarda armado.

Droga, o arco e flecha foi junto com a bagagem sabe-se lá para onde.

O guarda avançou em nossa direção. Ele apontou a arma para a minha testa. Anlyn o pegou de surpresa quando golpeou seu braço com força, fazendo com que ele largasse a arma. Chutei sua virilha e ele gemeu de dor enquanto se ajoelhava no chão. Anlyn usou a arma para dar uma coronhada na cabeça do guarda, que na mesma hora desmaiou.

— Me ajuda a coloca-lo ali dentro! — Nós arrastamos seu corpo pesado para a minha cela e começamos a andar com cuidado pelo corredor.

— Nós precisamos chegar ao gabinete da Ansel. Tenho certeza de que ela esconde alguma coisa lá.

A sede do Conselho era enorme. Eu não conhecia bem o lugar, mas Anlyn sim. Ela já tinha vindo com Rewick várias vezes, então deixei que ela me guiasse.

O movimento dos corredores era quase nulo por causa da ala em que estávamos. A prisão nunca enchia, e se enchesse, não ficava cheia por muito tempo. Nós nos esgueiramos pela lateral do corredor e dobramos a direita e depois a esquerda sem dar de cara com ninguém.

Abrimos a porta da saída de emergência e subimos as escadas correndo. De acordo com Anlyn, o gabinete da Ansel ficava no segundo andar. Saímos das escadas de emergência e nos escoramos na parede que antecedia a sala do gabinete. Taylyn e Ansel falavam baixinho. Ele segurava o seu braço com força enquanto Ansel tentava se soltar.

O cientista Ghowey e o restante dos membros do Conselho — com exceção de Rewick — apareceram. Alguma coisa tinha acontecido, pois ninguém ali estava com uma cara boa. O Conselho continuou a discussão, mas por mais que nos esforçássemos para ouvi-los, de onde estávamos não era possível entender nada. Eles caminharam para o lado oposto e continuaram discutindo. Esperamos que eles se afastassem para corrermos até o gabinete da Ansel.

A porta estava destrancada, então nós entramos com facilidade. Reviramos as gavetas e encontramos uma infinidade de relatórios. Fiquei me perguntando se eram forjados ou se ela ainda pretendia forja-los. Tentei abrir a última gaveta de sua mesa, mas percebi que a mesma estava trancada.

Indiquei a fechadura para Anlyn que retirou seu grampo novamente do cabelo e fez a sua mágica. Porém, no mesmo instante que abrimos a gaveta, a porta do gabinete foi aberta, revelando Ansel acompanhada de Taylyn e mais quatro guardas.

— Peguem-nas! — Anlyn e eu ainda tentamos correr, mas os quatro guardas que a acompanharam nos cercaram.

Suas mãos seguraram meus braços e o viraram para trás de um jeito brusco que me fez soltar um grito de dor. Os guardas foram nos retirando da sala de forma agressiva enquanto eu me debatia com todas as forças. Virei o rosto na direção do gabinete. Eu precisava voltar para lá, aquele local era a nossa última esperança. Cada vez que eu me afastava mais do gabinete, mais eu sentia as minhas chances de salvação escorregarem pelos meus dedos.

— O Amor chegou. Vamos exilar essas duas. — Ansel avisou, caminhando a nossa frente.

Enquanto nos arrastavam para o exílio, eu vi Rewick oculto pela escuridão parcial que envolvia o fim do corredor. Anyln também o vira.

Ele segurava o celular que usamos para fotografar o laboratório clandestino. Ele estava em posse da única coisa que poderia nos salvar.

O exílio de uma Alma era um "evento" que toda a população que vivia fora da Área Sombria participava. Então, quando um dos monges de manto marrom nos levou até o altar, não me surpreendi ao ver grande parte da população de Klímpf a nossa volta.

Eu e Anlyn ainda usávamos os nossos respectivos mantos e como mandava o ritual, nossas cabeças estavam cobertas pelos nossos capuzes. A cada passo que eu dava para a morte, meus olhos mantinham-se focados no Amor. Ele usava um manto negro e, como sempre, estava sério.

Eu já tinha morrido muitas vezes, mas nada me aterrorizava mais do que isso. O Conselho ganhara, no fim das contas.

Mesmo que eu os acusasse, sem provas, seria somente a palavra de uma suposta desordeira contra a de um Conselho aparentemente sério e influente.

O caminho até o altar pareceu mais longo do que o normal. O tremor que eu sentia reverberar pelo meu corpo era proveniente do medo de encarar a morte de novo, porque eu tinha consciência de que era a última vez que eu o faria. Isso deveria me confortar. De alguma forma, morrer aqui hoje me libertaria para sempre de uma vida de fracassos e sofrimentos. Eu não iria mais falhar e não morreria mais, o que de certa forma seria bom.

Mas morrer para sempre não era bem o que eu queria.

Subi os degraus que me levavam até o altar e me ajoelhei de frente para o público junto com Anlyn. O Amor estava um pouco mais a frente, de costas para nós. Na lateral, num lugar de grande destaque, se encontravam sentados todos os membros do Conselho. Eles também usavam seus próprios mantos. Ansel tinha no rosto um olhar vitorioso, e aquilo encheu meu peito de ódio. Eles continuariam matando as Almas e não havia mais nada que eu pudesse fazer.

O silêncio no recinto era sepulcral, o que me deixou com ainda mais medo. O Amor caminhou mais para a frente do altar e sua voz soou como um trovão pelo lugar. Os monges estavam posicionados atrás de nós no altar. Sérios e mudos, eles pareciam estátuas ali em cima.

— Estamos aqui para realizar o exílio de Anlyn Erlt e Lyhua Lyra Iseult. Apesar de completarem as suas missões, as duas se envolveram romanticamente com humanos e voltaram para Klímpf clandestinamente para visitar amigos na Área Sombria.

— Com todo o respeito, senhor Amor, nós não viemos aqui à passeio. — disse Anlyn subitamente, fazendo com que todo o mundo que estava ali assistindo se surpreendesse — Nós viemos resgatar as Almas do laboratório clandestino que o seu precioso Conselho construiu para fazer experiências com as Almas banidas. — O Amor ficou tão atônito com aquela informação que arregalou os olhos. A interrupção de Anlyn fez as pessoas ao redor começarem a falar ao mesmo tempo.

— Sei que farão de tudo para se safarem do exílio, mas nos acusar sem provas não vai lhes salvar de seu destino. — disse Ansel com tranquilidade. Aquela desgraçada tinha um sorrisinho irritante no canto dos lábios que era quase imperceptível.

VACA!

— Peço silêncio e respeito. Não adianta tentar reverter a situação de vocês. — O Amor se virou para nós, impassível. Olhando de baixo, ele parecia ainda mais poderoso e forte, mas naquele momento, eu o odiei. — Foi dada uma chance de redenção que claramente não souberam aproveitar.

Como pode um ser tão bondoso e amoroso não se importar nem em investigar o que acabamos de dizer? Por anos, eu dei tudo de mim a esse planeta e a esse trabalho, e apesar de todo o meu esforço, o Amor nunca demonstrou que se importava com a gente. Toda a raiva acumulada dentro de mim foi enchendo meu peito de um sentimento escuro e pesado que eu não conseguiria guardar por muito tempo.

— Você fechou os olhos para as Almas deste planeta! — Eu gritei — Você está tão cego que não percebe que o Conselho está agindo pelas suas costas, matando Almas e obrigando outras a trabalharem nesse projeto doentio. Prefere punir as Almas só porque experimentamos o mesmo sentimento que você pede que coloquemos nas pessoas! O Amor deveria existir para todos, não só para uns e outros, porque ele não faz acepção de pessoas. O Amor é bondoso e cuidadoso, mas você não cuida mais de nós!

O Amor virou para trás com os olhos furiosos.

— CHEGA! — Ele gritou de volta, claramente afetado pelo meu discurso. Quando ele levantou as mãos e uma luz azul saiu, eu percebi que era mesmo tarde demais para mim. — Lyhua, que as Almas do plano celestial te recebam e te guiem.

— NÃO! — Pude ouvir Anlyn gritar, mas no momento em que a luz me atingiu, eu não consegui mais me concentrar em nada do que acontecia ao meu redor.

Eu senti um clarão invadir meu corpo de fora para dentro. Meu corpo tombou para o lado e a dor começou a queimar meus flancos. Espasmos e tremores fizeram com que eu começasse a me debater no chão, enquanto a minha Alma tentava sair do meu corpo. Tudo doía de uma forma excruciante. Eu já me senti de forma semelhante em minhas mortes, mas isso era mil vezes pior.

Uma luz vermelha pousou suavemente em meu rosto, me fazendo notar que era a mesma borboleta vermelha neon que me seguira e me acompanhara em minha jornada.

Uma lágrima solitária escorreu pelo meu rosto e eu encarei o céu acima de mim. Pela primeira vez em toda a minha vida, eu não tentava escapar da dor. Enquanto cada pedaço do meu corpo queimava como fogo em brasa, eu me lembrava das histórias que Maurício me contara sobre as estrelas. Mesmo com a dor me rasgando por dentro, eu sorri com a lembrança, pois eu iria partir sabendo que um dia eu fui amada.

Por grande parte da minha vida, meu trabalho veio em primeiro lugar, mas aprendi a me priorizar no momento em que conheci Maurício, e eu não me arrependia de nenhuma das minhas escolhas, mesmo que elas tenham me levado até aqui.

Ouvi um grito, mas ele me pareceu longe e vago demais. Fui perdendo os sentidos e ficando cada vez mais fraca. A luz vermelha da borboleta ficou bem distante. Suspirei uma, duas, três vezes. Meus olhos foram se fechando devagar enquanto eu sentia que era chegada a hora de partir.

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