Capítulo 25 - O Invasor

— Rewick? — Ela indagou, descrente. Rewick levantou as mãos para o alto, demonstrando um alto grau de nervosismo.

Com o arco firme em minhas mãos e os olhos bem em cima de Rewick, pude reparar no quanto sua aparência tinha mudado. Ele não era mais aquele cara engomadinho do nosso julgamento. Sua roupa se encontrava amarrotada e desleixada enquanto olheiras profundas em seus olhos quase me fizeram confundi-lo com um panda. Além disso, sua barba, que ele fazia questão de aparar sempre, estava maior do que um dia eu já vira, assim como seus cabelos, que se encontravam rebeldes e despenteados.

Eu até sentiria um pouco de dó da situação se não soubesse o que eu sei sobre o Conselho. Rewick era um deles, e não merecia minha compaixão.

— O que você quer? — perguntei, firmando ainda mais o arco em minhas mãos.

— Eu vim em paz.

— Tá, mas porque está aqui? — Anlyn tomou a frente. Eu nunca tinha lhe visto tão aborrecida antes.

— Eu quero pedir desculpas. O que eu fiz com você no dia do julgamento foi... horrível. Queria que houvesse um jeito de me redimir. Slahat, também sinto muito por tudo o que você teve que passar. — Slahat, que ainda estava um pouco fraco, revirou os olhos e o ignorou. Ele era seu sobrinho, e só agora eu tinha me dado conta daquilo.

Rewick ter conseguido nos achar era uma grande preocupação para mim. Ele poderia facilmente contar para o Conselho que fomos nós as responsáveis pela invasão ao laboratório clandestino, e pelo histórico de falsificação de provas, tenho certeza de que Ansel não se incomodaria em providenciar duas passagens de ida para o nosso exílio. Os guardas ou até mesmo o resto do Conselho poderiam nos encontrar facilmente ali, e isso era algo que me aterrorizava.

Infelizmente, Slahat ainda não havia se recuperado o suficiente para que pudéssemos encontrar outro lugar. Ele precisava urgentemente de cuidados.

— Quer mesmo se redimir? — Ele fez que sim com a cabeça — Então ache o celular que a Lyra deixou cair. Ele deve estar na lateral do laboratório. Denuncie a sua tia e o resto do Conselho para o Amor e sua redenção estará completa. — Sua voz estava repleta de sarcasmo. Pelo visto, ela não acreditava que Rewick fosse ser capaz de fazer isso.

Rewick fez que não com a cabeça incontáveis vezes. Ele nem de longe parecia ser aquele rapaz bonito e imprudente que Anlyn acusara no dia do julgamento. Rewick sempre foi medroso, mas naquele momento, ele parecia quase desesperado. Um contraste interessante para alguém que parecia não ter nada a temer.

— Não posso fazer isso! Minha tia está obcecada com as experiências, ela é capaz de qualquer coisa.

— Então enfie as suas desculpas no rabo! — Anlyn esbravejou, irritada. Rewick arregalou os olhos. Acho que ele também não conhecia esse lado irritado dela.

— Eu sinto muito... — Ele disse tristemente antes de se embrenhar de novo na mata. Seus olhos estavam marejados. Abaixei o arco quando Rewick se afastou.

— Dá pra acreditar nisso? — Minha amiga apontou com descrença para o lugar onde Rewick estava antes de ir embora.

— Acha que ele pode nos dedurar? — Anlyn permaneceu pensativa com a minha pergunta. Algo me dizia que não, mas eu que não ponho minhas mãos no fogo por isso.

— Eu não sei. Talvez. — Ela encarava a mata com um olhar vazio.

— Rewick é um otário. — Slahat disse com dificuldade. Nós todos olhamos para ele de modo perplexo, já que até então ele mal conseguia completar uma frase sem arfar. Ele suava muito, mas parecia melhor do que antes. Lehinf colocou um pano molhado em sua testa para ajudar com a febre.

— Como você está? — Me abaixei em sua frente e coloquei a mão em seu pescoço para sentir a temperatura. Ainda estava quente.

— Já estive melhor. — Ele se ajeitou e pegou da mão do curandeiro uma vasilha feita de coco com uma mistura para meu amigo comer.

— O que fizeram com você, amigo? — Hahue perguntou, sentando-se próximo a mim e a ele. Todos nós fizemos silêncio afinal, aquele era um assunto extremamente delicado. Talvez ele nem quisesse tocar no assunto, principalmente no meio da refeição.

Slahat comia tão rápido que era doloroso de ver. Ele estava faminto, então terminou de comer em tempo recorde. Depois de comer, encarou a vasilha de comida vazia e soltou um suspiro melancólico. Provavelmente se recordava dos momentos horríveis que viveu naquele lugar.

— Nós só estamos aqui por causa de Dellyn. — Slahat levantou o rosto rapidamente, tentando entender se tinha ouvido corretamente — Sim, ela está viva e no momento mora conosco.

Ele esboçou um mínimo sorriso com a novidade que contei e fechou os olhos, como se estivesse revivendo novamente os horrores que sofreu. Acho que o reaparecimento de Dellyn o deixara feliz, mas ele não conseguia demonstrar de um jeito apropriado devido aos recentes acontecimentos.

— Todos os dias, eles pegam as Almas menos debilitadas ou as que chegaram recentemente e já passaram pelo Registro que basicamente é um cadastro nosso que contém todas as informações e as levam para uma série de testes que duram dias. Eles nos afogam, nos penduram, nos espetam, nos dão choques também... Eles fazem isso com um sorriso doentio no rosto. Quando Ansel me viu, pedia especificamente por mim. Ela gostava de fazer as experiências me usando de cobaia. Ela não teve nenhuma consideração mesmo eu sendo seu irmão mais novo. — Pude notar uma nota de ressentimento e raiva em sua voz. Minhas mãos se fecharam só de imaginar o que meu amigo passou nas mãos daquela mulher.

— E você achou mesmo que ela te consideraria depois de te jogar aqui dentro? — Eu perguntei, enraivecida. Eu sabia que aquele plano não ia dar certo. Se a própria irmã dele o jogou na Área Sombria para morrer, era certo de que ela não o ajudaria.

— Eles nos deixam sem comer ou beber água por dias a fio. Ir ao banheiro era um privilégio que ninguém tinha.

— Que coisa horrível... — Lehinf disse, chocado. — Eu quis tanto impedir...

Todos nós ficamos em silêncio absorvendo o peso das palavras de Slahat. Constatar que o Conselho realmente era capaz de realizar tamanhas atrocidades era tão chocante quanto presenciar as atrocidades sendo cometidas. As imagens que vimos nunca se apagariam de nossas mentes, e tudo era ainda pior para Slahat, que sofrera nas mãos de Ansel e do resto do Conselho.

— Lyra, nós precisamos voltar para a Terra. — Anlyn cutucou meu braço, abalada.

— Vocês precisam ir. — Hahue tocou meu ombro. Notei que seu rosto estava vermelho e seus olhos marejados.

— Muito obrigado por terem se arriscado por mim. Eu nunca vou me esquecer disso. — Slahat alternou olhares entre Anlyn e eu. Seu rosto estava mais corado do que antes.

Eu o abracei forte e seus braços envolveram meu corpo. Eu lutava para não chorar em seu ombro. Tudo o que ele e as outras Almas passaram era horrível e piorava saber que eu tinha deixado o celular com as provas cair.

— Eu sinto muito. — Eu disse a ele antes de beijar sua testa.

— Não é culpa sua. Você é mesmo uma grande amiga. — Slahat afagou a minha bochecha com carinho e retribuiu o beijo na minha testa — Agora vá. Se cuide.

Nos despedimos de Hahue e Lehinf antes de partirmos. Colocamos o capuz de nossos respectivos mantos em nossas cabeças e caminhamos para a Árvore Mágica novamente. Enquanto a porta se fechava, eu e Anlyn nos entreolhamos com um sentimento horrível e pesado dentro do peito.

De alguma forma, nós sabíamos que isso era só o começo.

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