Capítulo 23 - O Começo da Jornada
O plano já estava pronto. Durante as últimas semanas, Hahue esteve presente através do comunicador. Ele encontrara o curandeiro, e com a sua ajuda, nós conseguimos desenhar uma réplica de onde o Conselho mantinha as Almas. Dellyn terminava de preparar as armas e eu e Anlyn a ajudávamos.
Nós iríamos voltar para Klímpf no próximo final de semana, pois faltar o trabalho ou a escola poderia fazer o Conselho desconfiar de alguma coisa, e nós não queríamos chamar a atenção deles desse jeito. A nossa prioridade era não prejudicar as nossas missões mais do que já estaríamos prejudicando.
— Você está bem? — perguntou Maurício, deitado ao meu lado na cadeira de praia.
A verdade é que eu estava aterrorizada com o meu futuro. Com o plano. Com tudo o que poderia me acontecer. Slahat, Anlyn e meus amigos da terra também eram preocupações em minha cabeça. Balancei a cabeça para afastar as lágrimas.
— Estou só um pouco preocupada com algumas coisas mesmo.
— Que coisas?
— É coisa boba, não se preocupe. — Meu namorado não gostou muito do que eu disse, pois seus olhos se focaram em alguma coisa no chão e ficaram por lá.
Decidi que compartilharia pelo menos metade da minha aflição com ele.
— É que as vezes eu fico pensando no meu futuro e me dá muito medo. — Eu não estava tão longe da verdade quanto parecia. Maurício afagou meu queixo.
— Eu te entendo, mas acho que não deveria ficar sofrendo por antecipação. Nós não sabemos o que nos aguarda, e apesar de ser aterrorizante não termos o controle do que vai acontecer amanhã, também nos preserva de possíveis decepções antecipadas.
— Você tem razão.
— Nós não temos controle do nosso futuro, mas podemos fazer o possível para que as coisas fluam ao nosso favor. — Suas mãos fizeram um carinho gostoso em minha bochecha, o que me fez fechar os olhos para aproveitar o carinho. O tempo estava nublado e até um pouco frio, mas eu e Maurício, ainda assim, decidimos ir para a praia.
Parece que o simples fato de o tempo fechar já é o suficiente para afastar as pessoas da rua, pois eram poucas as que passavam por nós. Acho que todo o mundo já esperava a hora em que ia começar a chover.
Esse tempo cinzento só contribuiu para que meu humor piorasse e meu coração, mais uma vez, se encheu de tristeza quando me lembrei de que eu teria que ir embora para sempre assim que meu tempo aqui na terra terminasse.
Naquele momento, eu me dei conta do quão fraca eu era por não ter dado um fim nessa relação com Maurício. Ele não merecia sofrer de novo, e só de pensar na ideia de magoá-lo já fazia meu estômago se embrulhar. Quanto mais o tempo passava, mais difícil ficava terminar tudo.
Escondi a minha cabeça em seu peito para que Maurício não visse meus olhos marejados. Já estava na hora de encarar a realidade de que eu e ele nunca poderemos ficar juntos. Aquela vida era uma farsa, e eu precisava acabar logo com isso.
Me agarrei mais em seu corpo, meus dedos tocando a sua camiseta como se aquele pedaço de pano fino pudesse transmitir a mim toda a força que eu precisava. Eu tentava a todo custo controlar o turbilhão de sentimentos que me dominaram enquanto respirava fundo para regular a minha respiração. Engoli em seco o nó que se formou em minha garganta e levantei a cabeça pronta para dar um fim nisso tudo.
— Maurício, eu...
— Sabia que eu encontraria vocês aqui! — Emily exclamou, alegre e saltitante. Peter vinha logo atrás, ofegante pela corrida.
— Vamos comer alguma coisa na Estação dos Lanches. Tá tendo promoção de combos. Eu pago! — Peter acrescentou antes que eu ou Maurício pudéssemos dizer alguma coisa.
— Se você vai pagar, quem sou eu para recusar não é mesmo? — indaguei, fazendo meus amigos gargalharem.
— O que você ia me falar? — Maurício segurou meu braço, puxando-me para seu corpo. O terror dominou meu corpo quando me lembrei que eu estava prestes a terminar com ele. A coragem e o momento tinham passado, esse assunto teria que esperar.
— Acho que me esqueci. Se eu me lembrar, eu te falo.
A Estação dos Lanches era uma das lanchonetes favoritas da galera. Eles vendem hambúrgueres muito bons, além de açaí, batata frita e milk shakes. Nós já tínhamos feito os nossos pedidos e fomos para a mesa aguardar a chegada dos nossos combos. O cheirinho estava maravilhoso.
— Vamos brindar à nossa amizade! — Emily disse assim que chegaram os nossos refrigerantes junto com os lanches. Abrimos nossas latinhas de refrigerante e erguemos cada uma no ar. — Eu só quero dizer que amo muito vocês, por me apoiarem, me ajudarem e por sermos o melhor grupo de trabalho da escola. Lyra, você é novata no nosso grupo, mas já tem todo o meu carinho. Eu te amo!
Aquela declaração inesperada me deixou surpresa e emocionada. Me curvei sobre a mesa para abraça-la.
— AMO VOCÊS! — gritou Peter e Maurício em uníssono, arrancando gargalhadas de nós e alguns olhares estranhos das outras mesas.
Observei cada um deles com muito carinho enquanto dizia para os três o quanto os amava. Se eu nunca antes vivi esse sentimento, agora eu os transbordava. Meu peito doeu de novo quando me lembrei que em breve, eu teria que partir.
Cheguei em casa com os pensamentos desanuviados. A tristeza me consumia quase que por completo. Agora que eu entendia a gravidade da situação em que me meti, eu só sentia vontade de bater a minha cabeça contra a parede. Eu me deixei levar por sentimentos que eu nem sabia que poderia ter, e acabei me envolvendo com uma pessoa que não merecia o amor de alguém que em breve irá partir.
Encontrei Anlyn e Dellyn arrumando algumas coisas dentro de duas mochilas grandes. Um arco lindo demais com uma aljava cheia de flechas repousava em cima da mesa de centro.
Quando o olhar das duas encontrou o meu, eu soube que tinha chegado a hora.
— É amanhã, Lyra. Amanhã voltaremos para Klímpf.
Eu vi o exato momento em que a noite virou dia. A pouca claridade em minha janela me dizia que o tempo estava nublado. Se a previsão do tempo acertar, talvez até chova hoje.
Daqui a pouco eu teria que levantar da cama, mas eu não queria fazer isso. Eu estava congelada pelo medo e pela ansiedade por tudo o que poderia acontecer. Ontem à noite repassamos o plano diversas vezes para evitarmos falhas, e quando fomos dormir eu continuei repassando cada detalhe mentalmente como um mantra. Quando dei por mim, já se passava da meia noite. Meu corpo estava tão agitado quanto a minha mente, o que me impediu de pregar os olhos à noite inteira.
Joguei as cobertas para o lado e me levantei da cama quando meu celular despertou. Desci as escadas e fui checar para ver se faltava algum equipamento dentro da mochila, mas estava tudo ok. Dellyn desceu as escadas coçando os olhos.
— Você não conseguiu dormir, não é?
— Não.
Anlyn foi a próxima a aparecer. Ela estava mais séria do que nunca. Acho que ela entendia a gravidade do que íamos fazer tanto quanto eu. Mesmo tendo uma natureza imprudente, Anlyn sabia que aquilo era muito mais sério do que simplesmente entrar na sede do Conselho para tomar banho de banheira.
Segurei o arco e coloquei a aljava com as flechas em minhas costas. O arco era branco, grande e bonito, ornamentado de um modo rústico que me lembrava muito Klímpf. Ajudei as duas a guardar as coisas dentro do carro enquanto comíamos algumas torradas. Vesti o manto branco que era de Dellyn e que Hahue me dera. Os olhos de Dellyn brilharam ao ver o manto.
— O Hahue me deu, mas eu te devolvo se você quiser.
— Não precisa. — Ela disse amavelmente — Ele ficou lindo em você.
Anlyn vestiu o manto azul claro. Nós estávamos prestes a nos acomodar no carro quando a campainha tocou. Era 8 horas da manhã, o que quer dizer que em Klímpf ainda eram 4 horas da manhã. Nós pretendíamos chegar lá por volta de 6 horas, onde o fluxo de pessoas seria menor, mas não ao ponto de ficar tudo deserto e suspeito com a nossa movimentação. O horário de chegada correspondia a um meio termo.
— Quem será? — Anlyn indagou, franzindo o cenho.
— Melhor não atender. — instruiu Dellyn, olhando com desconfiança para o portão — Uma hora a pessoa desiste e vai embora.
— Nós não podemos ficar aqui plantadas esperando. Deixa que eu atendo.
Coloquei o arco dentro do carro e me deparei com Emily assim que abri a porta. Ela olhou para mim com estranhamento, e foi aí que lembrei que eu estava com o manto e a aljava nas costas.
— Por que está vestida assim? — Retirei o capuz do manto que cobria a minha cabeça e arregalei os olhos.
— Estou indo para uma reunião de família. O tema esse ano é medieval.
— Fez as pazes com o resto da família? — Ela cruzou os braços acima do peito, e alguma coisa em sua expressão me dizia que ela não acreditava em mim.
— Isso é o que vamos ver. Vou passar o fim de semana todo fora.
— Eu tinha vindo te chamar para irmos para um clube que meus pais são sócios. Lá tem piscina. Não consegui falar com você no telefone e Maurício não me disse que você iria sair. O tempo está meio ruim, mas eu não recuso uma piscina por nada.
— É que nem ele sabe. Foi meio de última hora. Planejo avisá-lo durante a viagem. — Emily assentiu, mas notei que seu olhar brilhava com um pouco de ressentimento. Ela desaprovava as minhas atitudes e mentiras, e eu fiquei me sentindo mal mais uma vez.
— Lyra, seja lá o mistério que cerca você e a sua família, não tem motivos para desconfiar da gente. Nós somos seus amigos, não tem porque ficar mentindo para nós. — Emily suspirou tristemente — Boa viagem. — Ela acrescentou com um olhar magoado antes de se retirar. Meu coração se partiu.
O ano estava quase acabando, e a minha missão logo terminaria também. Talvez seja melhor cortar os laços a partir de agora. Abri a conversa de Maurício no celular e decidi que não diria nada a ele sobre a "viagem". Sei que estou agindo como uma covarde, mas vai ser mais fácil se Maurício me odiar.
Entramos no carro e nos dirigimos até a Árvore Mágica que nos levaria de volta para Klímpf.
Anlyn estacionou o carro na rua de trás a do aeroporto Santos Dumont. Nossas roupas chamavam a atenção das poucas pessoas que passavam por nós, mas eu não ligava. Naquele momento, só o que me importava era salvar meu amigo.
Dellyn nos conduziu por uma rua pouco movimentada. Atravessamos para o outro lado e seguimos para uma praça arborizada. Dentre tantas árvores, Dellyn apontou para a maior de todas. Paramos em frente a ela, seu tronco era grosso e seus galhos elevavam-se para vários lados diferentes. Sua folhagem era de um verde escuro e eu senti a magia me tocar assim que encostei nela. Dellyn segurou o comunicador que Hahue fizera para mim.
— Estarei sempre com ele. — garantiu ela. Coloquei a mochila nas costas e com a outra mão segurei o arco. A aljava estava transpassada em minhas costas.
— Boa sorte. — Dellyn nos abraçou ao mesmo tempo. Logo em seguida, fizemos um círculo de mãos dadas. As minhas mãos suavam tanto quanto as de Anlyn. Nós tocamos na árvore e uma fenda se abriu como se fosse as portas de um elevador de madeira. Olhei com assombro ao meu redor, mas ninguém parecia ter notado.
— Só as Almas conseguem ver as Árvores Mágicas. Estamos seguras. — Dellyn nos assegurou com um sorriso tranquilo no rosto.
Eu e Anlyn entramos na árvore. O espaço ali dentro era muito maior do que eu esperava. A porta foi se fechando lentamente, enquanto Dellyn nos observava com o comunicador em mãos. Ela acenou para nós segundos antes da passagem se fechar completamente.
Dei alguns passos para trás pensando que iria encostar na parede e quase caí no chão. Assustada, eu me virei para trás e Anlyn me imitou. Nós duas nos deparamos com um corredor escuro cheio de portas laterais.
— Lembre-se do que Dellyn nos disse. Vamos mentalizar o local em que Hahue pode estar. — Anlyn fechou os olhos para se concentrar e eu fiz o mesmo que ela. Limpei a minha mente de qualquer pensamento secundário na minha cabeça e mentalizei Hahue.
Senti o corredor se estender ao meu redor e meu corpo girou. Comecei a me sentir tonta e enjoada de repente, mas me recusei a abrir os olhos. A árvore parou de repente e o que era um corredor escuro e sinistro voltou a ser o local que entramos.
A passagem se abriu e eu encontrei Hahue de guarda numa árvore a frente segurando uma espingarda. O curandeiro Lehinf estava ao seu lado.
Corri na direção de Hahue e o abracei apertado.
— Senti a sua falta, Lyra. — Ele afagou meus cabelos com carinho.
— Eu também senti a sua.
Cumprimentei o curandeiro Lehinf e apresentei oficialmente Anlyn a Hahue.
— Prontas? — Lehinf perguntou para nós. Suas vestes estavam sujas e rasgadas. Ele sempre me pareceu um cara calmo e justo. Quando ele fora banido, o Conselho disse que ele tinha falecido subitamente. Foi difícil para eu acreditar, mas era possível. As Almas quase não ficam doentes, mas não quer dizer que somos imortais. Podemos morrer de doenças como qualquer ser humano.
Como a maioria das Almas — com exceção de Hahue — o Curandeiro era muito alto. Ele tinha pele negra e olhos amarelos.
— Vou levar vocês para uma das entradas secretas do lugar. Achem a sala A de funcionários que é lá que ficam os uniformes. Lembrem-se, é a sala A de anexo. A B é onde eles ficam descansando então é melhor se manterem longe dessa sala enquanto não estiverem devidamente disfarçadas.
Nós escolhemos executar o plano nesse dia excepcionalmente porque chegariam mais Almas para trabalhar no laboratório clandestino do Conselho. Dizem que a maioria das Almas são obrigadas a trabalhar lá e que assinam um termo de sigilo muito ameaçador, então a movimentação e a desordem no lugar seria grande, de modo que facilitaria a nossa infiltração.
Passei os olhos pela Área Sombria que estava, como sempre, repleta de escuridão e reparei que tinha algo diferente sobre esse lugar. Talvez seja a tensão palpável das Almas banidas que eu conseguia sentir, ou talvez eu esteja alucinando.
— As Almas que ainda não foram capturadas ficam escondidas. Os guardas todos os dias vem à Área Sombria para nos levar para o laboratório.
— E Slahat?
— O sensor está quase falhando. Temo que ele não sobreviva. — Hahue olhou para baixo, suspirando tristemente.
— Ele vai sobreviver. — Eu estava confiante de que as coisas iam dar certo. Segurei o rosto de Hahue com as duas mãos para lhe passar um pouco de segurança. Ele assentiu para mim e eu vi a determinação retornar ao seu rosto.
— Vamos, nós não podemos perder tempo.
A viagem através da Árvore Mágica não fora tão rápida quanto parecia e o enjoo ainda não tinha passado completamente. O trajeto por este meio de transporte — se é que podemos chama-la assim — é um pouco mais rápido do que os meios convencionais que temos a nossa disposição, mas ainda assim é um percurso que demora cerca de uma hora e meia para ocorrer.
Nosso grupo caminhava cuidadosamente pelos terrenos da Área Sombria. Meu arco estava devidamente preparado com uma flecha caso alguém decidisse nos atacar. Apesar de lutarmos contra o sistema, ainda podem existir Almas por aí disposta a nos atacar.
Hahue tinha em mãos a espingarda, nas costas sua mochila e um rifle pendurado em seu ombro esquerdo. Já Anlyn tinha uma arma de choque na cintura e algumas facas.
Chegamos ao lado esquerdo da Barreira Mágica. Antes dela havia um montinho irregular cheio de raízes de árvores e plantas, onde nós nos abaixamos.
— A entrada que vocês vão acessar fica bem ali. — Lehinf iluminou o mapa improvisado que fizemos com uma lamparina e depois se levantou e apontou para o lado esquerdo do laboratório clandestino, que estava próximo a nós, só que do outro lado da Barreira Mágica. — Vocês memorizaram o mapa? — Fizemos que sim com a cabeça.
Subimos o morrinho de terra e nos escondemos atrás das árvores que antecediam a nossa passagem pela Barreira Mágica.
— Nos encontrem no lugar combinado dentro de vinte minutos. — Assentimos positivamente para Hahue. Eu estava apreensiva, mas também tinha sangue nos meus olhos.
Nós precisamos resgatar Slahat desse lugar medonho.
Coloquei o capuz do manto sobre a cabeça e caminhei junto com Anlyn para a entrada secreta do laboratório clandestino do Conselho.
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