Capítulo 22 - O plano
Atenção: Esse capítulo contém 3.059 palavras.
Tenho certeza de que eu estava com uma expressão estranha no rosto, pois tanto Anlyn quanto Dellyn me encaravam como se eu fosse desmaiar a qualquer momento. Quero dizer, não é todo dia que você vê a pessoa que te persegue constantemente na sala da sua casa. Sem contar que sua perseguidora pode ser alguém querida para amigos próximos, e isso aumentava ainda mais o meu choque.
— Você é a Dellyn do Hahue e do Slahat ou essa é só uma coincidência? — indaguei, lembrando-me das histórias que meus amigos tinham me contado sobre Dellyn e de como ela supostamente havia morrido. Eu até usava um manto que lhe pertencia.
Seus olhos se arregalaram quando mencionei os dois e foi aí que eu soube que eu tinha acertado em cheio. Seu rosto tinha muitas rugas de expressão, e seu cabelo estava preso em uma trança mal feita.
— Como você os conhece?
— Eles me ajudaram quando renasci na Área Sombria. — expliquei a ela, que me encarou como se já me conhecesse — Ele me disse que você tinha morrido.
Dellyn abriu um sorriso triste para mim. Ela pediu para que nós nos sentássemos, pois a sua história era longa.
— Eu adoro histórias longas. — Anlyn se sentou demonstrando empolgação, mas pelo semblante de Dellyn dava para ver que era doloroso visitar aquelas memórias.
— O Hahue contou para você como eu "morri"? — Fiz que sim com a cabeça — Os guardas que tentaram me matar ainda alvejaram outras Almas perto de mim. Eu estava fraca e ferida, mas precisei fingir que tinha morrido. Ouvi uma conversa estranha entre eles sobre um plano do Conselho em relação às Almas da Área Sombria, mas eu sentia tanta dor que eu não consigo mais me lembrar de tudo o que foi dito. Antes eu ficava me perguntando porque eu só conseguia me lembrar dessa parte específica da conversa, mas agora eu sei. — Dellyn abaixou sua cabeça e soltou um suspiro. Seus olhos se desfocaram por um instante, mas ela logo se recompôs. — Quando eles foram embora, eu me arrastei pela floresta. Lehinf, o ex curandeiro do Conselho me achou e cuidou dos meus ferimentos.
— O curandeiro Helinf? — exclamou Anlyn, com os olhos arregalados. Eu não a julgava, pois estava tão surpresa quanto ela — Mas o Conselho disse que ele tinha morrido!
— Não acredite em tudo o que o Conselho diz. Ele me disse que o Conselho o baniu porque não gostaram do posicionamento que Lehinf tinha acerca de uma experiência que o Conselho estava planejando realizar. Essa experiência consiste em pegar as Almas banidas, autorizar a entrada delas na Barreira Mágica e fazer experiências para aumentar o sucesso das sementes do amor e os poderes das Almas. Essas experiências usam as Almas de cobaias de uma forma desumana e ilegal.
— Por isso o Hahue disse que as Almas não estão voltando. Não devem estar aguentando os procedimentos. — constatei, preocupada com Slahat.
— O pior de tudo é que o Amor não sabe de nada disso. O Conselho só vai parar quando conseguirem produzir a Semente perfeita. Tem um cientista no Conselho auxiliando nessas experiências. Dizem que estão desesperados com o índice de mortalidade dos casais que as sementes produzem com a ajuda das Almas. Depois que o curandeiro me contou tudo, eu estava disposta a correr de volta para Hahue e Slahat para explicar tudo a eles. Porém, uma legião de coiotes e Almas Atormentadas apareceram querendo vingança. Eles queriam matar o Lehinf por ele ter sido membro do Conselho e a mim por tabela, então nós tivemos que fugir. O curandeiro me colocou dentro de uma Árvore Mágica que me trouxe aqui. Ele me pediu para mentalizar um lugar seguro e me deu uma mochila com alguns utensílios que ele tinha guardado para si. Quando eu vi vocês chegando, eu soube que eram de Klímpf. Estou morando numa caverna na floresta. — Absorvi sua história contada de forma apressada em silêncio.
— O que você quer de nós?
Ela me encarou como se fosse óbvio demais o que eu perguntava.
— As Almas lá em cima precisam da nossa ajuda.
— Se houvesse um jeito de voltar, eu já estaria lá em cima. Slahat se deixou ser capturado e isso me preocupa todos os dias.
Seus olhos quase saltaram para fora quando eu lhe falei sobre Slahat.
— Eu não acredito que ele fez isso!
— Na sua cabeça, Ansel não pegaria pesado com ele.
— Criança tola! — ralhou ela, com o rosto vermelho — Infelizmente, o único jeito de eu voltar seria pela Árvore Mágica, mas meu corpo não aguentaria a viagem de volta. Eu quase morri quando cheguei aqui. Por outro lado, vocês podem ir e voltar sem que a viagem exija tanto de vocês. Tem uma Árvore Mágica perto do aeroporto Santos Dumont, que foi a mesma por onde vim. Lehinf me garantiu que o Conselho não tem conhecimento dessa Árvore. Podemos planejar com calma o plano se vocês concordarem em prosseguir e seguirem todas as minhas instruções.
— Como teremos certeza de que podemos confiar em você? — Arqueei uma das sobrancelhas, com a desconfiança estampada no rosto. Ela poderia ser uma impostora, alguém enviada pelo Conselho para nos enganar.
— Tentem contatar o Hahue. Ele irá me reconhecer. Acho que é a única coisa que posso oferecer a vocês agora. — Ela encolheu os ombros no sofá.
— Então imagino que você já tenha algum plano em mente.
Dellyn abriu um sorriso astuto para mim.
— Era isso o que eu queria ouvir. O plano que eu bolei é arriscado, mas precisamos fazer isso. O Conselho precisa ser exposto para que o Amor possa descobrir tudo o que estão fazendo.
Se o plano falhar, ou se alguém nos reconhecer, vai ser o fim da linha para mim e para Anlyn, mas eu não podia mais ficar de braços cruzados. Se existe mesmo uma chance de voltar e reverter a situação, eu a aproveitaria. Pelo olhar de Anlyn, ela se sentia do mesmo modo que eu.
Já estava na hora de lutar contra esse Conselho que se mostrou ser totalmente desumano.
Optamos por deixar Dellyn junto conosco, uma vez que ela morava numa caverna no meio do nada e nós tínhamos um quarto sobrando. Também tem o fato de que ela pode ficar vigiando o comunicador quando nós não estivermos por perto
Toda aquela situação em Klímpf me deixara mal. Imaginar que o Conselho era capaz de tantas atrocidades era uma coisa, agora ter a confirmação de que aquilo ocorria era outra. Eu precisava me preparar para o que quer que estivesse por vir, mesmo sem saber direito o que eu iria encontrar pelo caminho.
Eu estava terminando de me arrumar quando a campainha tocou. Enfiei uma das pernas na calça e tentei enfiar a outra enquanto andava para fora do quarto, o que resultou em mim cambaleando pelo corredor como o próprio saci Pererê do folclore brasileiro. Vesti a calça e corri para atender a porta, pois Anlyn tinha saído mais cedo para o trabalho.
Quase tive uma síncope ao ver que Dellyn atendera a porta e conversava alegremente com Maurício.
— Oi, Lyra. Não sabia que a sua avó ainda era viva. — Maurício estava risonho, mas algo em seu tom de voz me dizia que estava chateado por eu não ter lhe contado isso. Dellyn abriu a boca para contestar a dedução do meu namorado, mas eu lhe dei um cutucão de leve com meu cotovelo.
— Pois é, nós nos reaproximamos de novo. Ela vai passar um tempo aqui em casa. — Eu disse, abraçando minha suposta avó de lado.
— Acho melhor você ir logo pra escola. Não quero que minha netinha chegue atrasada. — Ela me deu um pequeno empurrão em direção a porta, mas eu tive que me virar para dentro novamente para pegar a mochila. A sua falta de jeito seria engraçada se eu não estivesse tão nervosa com a situação. Peguei a mochila e me despedi de Dellyn.
Maurício e eu caminhamos algumas quadras no mais completo e absoluto silêncio.
— Você está muito calado...
— É que você nunca fala muito sobre a sua família. Você nem disse que a sua avó vinha te visitar.
Meu peito ficou apertado com o peso das mentiras, principalmente porque Maurício se sentia magoado por uma coisa que eu nem podia lhe explicar direito. Cada vez que ele pensava que eu não confiava nele o suficiente para me abrir, eu me sentia tentada a lhe revelar todos os meus segredos, mesmo sabendo que eu não podia.
— Eu também não sabia que ela vinha. Acredite, isso me pegou de surpresa. — respondi, encolhendo os ombros. Dellyn realmente tinha me surpreendido ao aparecer em minha casa daquela maneira.
Maurício ainda parecia cabisbaixo quando olhei para ele.
— Eu entendo que talvez seja difícil para você falar sobre certas coisas, mas eu só queria que você confiasse um pouco em mim.
— Eu confio em você, Maurício. De verdade. — Se eu pudesse, eu contaria a ele toda a verdade, mas não dependia só de mim. Esse segredo não era só meu.
Ele apertou a minha mão e me deu um selinho.
Tratei de contar a Emily e Peter sobre minha suposta avó assim que chegamos ao colégio. Meu namorado disse que gostara de Dellyn pois ela era muito engraçada. Tive que inventar que Dellyn era minha avó por parte de mãe. Enviei uma mensagem para Anlyn avisando que Dellyn tinha se tornado nossa avó materna.
Ela visualizou e não respondeu, mas pelo menos tinha captou a mensagem.
As semanas se passaram rapidamente sem que houvesse notícias sobre Hahue. Dellyn encarava o comunicador oscilando entre a esperança e o sofrimento. Nós ainda nos preparávamos para o plano, pois haviam muitas coisas que precisávamos acertar antes de ir.
Por mais que desejássemos voltar para Klímpf o mais rápido possível, nós não podíamos agir sem um plano sólido.
Apesar das preocupações que habitavam a minha cabeça acerca do meu mundo, eu e Maurício estávamos bem. Emily e Peter também. As minhas notas no colégio eram uma das melhores, o que me enchia de satisfação e orgulho.
— Lyra! — Ouvi uma voz distante e distorcida me chamar. Olhei para a frente e levei um susto ao dar de cara com o holograma de Hahue. Eu tinha acabado de deitar na cama quando ele apareceu.
Acendi a luz feito um foguete.
— Hahue, espera aí! Tem uma pessoa querendo te ver. — Ele me olhou sem entender, mas eu não lhe dei maiores explicações. Corri pelo corredor e chamei Dellyn, que lia um livro de romance.
Ela levantou a cabeça quando me viu na porta do quarto.
— O Hahue fez contato! — Os olhos dela se iluminaram na mesma hora. Dellyn largou o livro em cima da cama e andou o mais rápido que conseguia até o meu quarto.
Hahue quase caiu para trás quando viu o rosto de Dellyn. Ela já estava aos prantos quando se ajoelhou com dificuldade em frente à cama, onde o comunicador estava.
Os deixei a sós para que ela pudesse inteira-lo de todos os últimos acontecimentos. Os dois ficaram por um tempo conversando, depois Dellyn chamou a mim e a Anlyn para o quarto. Quando entramos, notamos que ambos tinham os olhos marejados.
— Não fomos apresentados ainda. Me chamo Anlyn. — Ela estendeu a mão para Hahue, que a encarou de forma confusa. Anlyn recolheu a mão envergonhada quando percebeu o que tinha feito, uma vez que ainda não inventaram hologramas tocáveis.
— Prazer em te conhecer, Anlyn. Sou Hahue. Vou tentar fazer contato com vocês pelo menos duas vezes na semana para acertarmos os detalhes do plano. — Pelo modo como ele dizia, Dellyn já tinha lhe deixado a par de tudo — Slahat ainda está vivo, mas estou preocupado, pois seu sensor está piscando devagar. Não sei se o aparelho está ficando com defeito ou se ele está fraco demais.
— Esse plano precisa ficar pronto logo. — Eu disse, ansiosa.
— Nós precisamos de equipamentos e disfarces. A Guarda do Conselho está trabalhando com tudo nesse projeto insano. Até os coiotes e as Almas Atormentadas estão sendo capturadas facilmente. Precisamos estar preparados para tudo.
— Eu não sou tão boa com armas, mas sei me virar. Sou melhor lutando com as mãos. — Anlyn levantou os próprios punhos para ilustrar sua habilidade.
— Eu sou melhor no arco e flecha.
— Tente encontrar o curandeiro Lehinf. Eu acho que ele pode estar vivo. — instruiu Dellyn para Hahue — Ele sabe onde o Conselho está com as Almas e pode nos fornecer uma planta do lugar. — Hahue fez que sim com a cabeça.
— Nos avise se você o encontrar. — pedi a ele, que assentiu mais uma vez com a cabeça.
— Ele estava no lado sul quando fomos atacados. — comentou Dellyn. Aquela era uma boa dica para que ele começasse a procurar pelo curandeiro — Talvez esteja escondido por ali.
— Isso se ele ainda estiver vivo. Ele é curandeiro e não mago.
— Não seja pessimista. — Dellyn o repreendeu.
— Se tivéssemos como usar magia, seria uma grande ajuda. Agora eu tenho que ir. Se cuidem. — Hahue fixa seu olhar por último em Dellyn, e os dois ficam com os olhos marejados novamente enquanto se despedem.
— Amanhã bem cedo vou começar a fazer algumas armas para nós. — Ela se levantou com dificuldade, fungando. — Quando você passa a viver na Área Sombria, aprende a sobreviver e a construir todo o tipo de coisas.
— Pode me fazer um arco e flecha?
— Vou fazer o melhor arco e flecha que você já teve, netinha. — Ela afaga meu queixo com carinho.
— Por via das dúvidas, comprarei armas de choque para nós amanhã. — Anlyn disse, com uma determinação de aço no olhar.
Falar com Hahue fez o nosso plano andar mais rápido. Nós queríamos deixar todos os mínimos detalhes planejados para podermos ir para Klímpf o mais rápido possível. Slahat e as outras Almas precisavam de nós.
Eu estava sentada no sofá tentando estudar, mas eu simplesmente não conseguia me concentrar em nada.
Desde que Dellyn apareceu e a possibilidade de ajudar Hahue e Slahat se tornou real, que eu não me concentrava direito nas coisas. Não era importante me concentrar nos estudos porque este mundo não me pertencia, mas eu não conseguia parar de tentar. Acho que eu buscava um modo de me distrair do plano arriscado que eu e Anlyn iríamos executar, pois eu tinha plena consciência de que se o Conselho nos vir, ou se alguma coisa der errado, a possibilidade de sermos capturadas e exiladas era muito grande. O medo e a ansiedade do desconhecido faziam com que a minha mente ficasse dispersa e acelerada.
— Eu nunca pensei que mandariam vocês como humanas para uma missão. — disse Dellyn, sentando-se ao meu lado. Seus olhos, sempre observadores, me analisavam. — Deve ser difícil não criar laços com os humanos.
— Bom, nós temos que manter o disfarce. — Eu disse, tentando me esquivar do assunto.
— Sim, mas imagino que você tenha se apegado aos seus amigos. É difícil não se apegar, principalmente quando são pessoas que passam muito tempo conosco. — Ela me encarava com um olhar observador. Olhei para o lado, tentando não dar assunto para Dellyn, mas percebi que ela não iria desistir tão fácil.
— É verdade...
— Principalmente aquele garoto. Maurício, o nome dele? — Suspirei alto e a encarei com irritação.
— Onde você quer chegar?
Dellyn abriu um sorriso maroto enquanto se ajeitava no sofá.
— O Hahue lhe contou o que eu fazia antes de ser banida?
— Não.
— Eu sou uma Alma diferente das outras. Eu tenho um poder mágico que poucas Almas possuem. O Conselho não gostava de nada disso. Eles não gostavam do modo como eu levava minha vida e nem do modo como eu pensava. Já o Amor me via como uma espécie de conselheira.
— Então porque você foi banida? — indaguei, já imaginando que tinha alguma coisa a ver com o Conselho.
— A Ansel e o Taylyn armaram para mim da mesma forma que fizeram com o curandeiro. A diferença é que eles forjaram a morte dele, a mim eles queriam exilar, mas o Amor não deixou. Disseram que eu estava sabotando os resultados de alguns relatórios e forjaram provas contra mim.
— Eu nunca gostei muito da Ansel, mas não pensava que ela era capaz de fazer tantas coisas horríveis... — Pensei em seu olhar frívolo e em suas roupas de cor opaca. Ela aparentava ser uma mulher séria, fria, mas não imaginava que ela poderia ser uma tirana também.
— Ela não gosta de pessoas perceptivas como eu e você. — Surpresa, eu a fitei ainda sem acreditar que tinha ouvido certo.
— Eu?
— Sim, Lyra. Você sempre faz boas escolhas. Eu lia seus relatórios.
— Mas as minhas sementes não duram.
— Isso foi o que sempre me intrigou. De qualquer forma, eu vejo o quanto os seus amigos gostam de você, principalmente aquele garoto. — Seus olhos lampejaram em minha direção fazendo o constrangimento tingir as minhas bochechas de vermelho.
— Eu não deveria estar com ele. — Encarei as minhas mãos que brilhavam pelo suor. O caderno aberto repousava em meu colo. — Mas eu não consigo evitar. O Maurício despertou em mim uma coisa que eu nunca pensei que fosse capaz de sentir.
— Isso não deveria ser evitado. Eu não penso como a maioria das Almas, Lyra. Fique tranquila. — Ela segurou a minha mão entre as suas e me deu um sorriso amável. — O que eu quero dizer com tudo isso é que sinto que você é mais forte do que pensa, só não sabe disso ainda.
— Como assim? — Dellyn largou a minha mão, abriu um sorriso enigmático e se levantou.
— Essa jornada você precisa trilhar sozinha. — Ela se retirou e eu fechei o caderno. Refletir sobre tudo o que Dellyn havia me contado parecia mais interessante e desafiador do que qualquer matéria em meu caderno.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top