Capítulo 1 - A Audiência

Dizem que quando estamos perto da morte, um filme com todos os momentos de nossas vidas passa diante de nossos olhos. Eu morri mais vezes do que podia contar, e em todas elas, a única coisa que eu vi foi o meu fracasso.

Eu estava sentada na sala de espera do grande e imponente salão do Conselho, aguardando a hora em que eu seria chamada para a minha sentença.

A audiência que decidiria o meu futuro estava prestes a começar, e só de saber que eu conheceria o Amor, o tão ocupado e soberano Amor, eu já me sentia como se fosse desmaiar.

Ansel Elryn, a líder do Conselho, dissera-me que a minha situação era tão crítica que o Amor decidira que participaria da minha audiência junto com o Conselho e alguns outros enxeridos que não perdiam a oportunidade de ver uma Alma fracassar.

Fiquei pensando em todos os meus anos de treinamento, e em todos os casais que tentei juntar, para entender como foi que me meti nessa situação. Será que eu realmente escolhia sempre os casais mais incompatíveis e era por isso que os romances não davam certo? Será que tinha alguma coisa errada com a forma como eu germinava e produzia as sementes do amor que eu plantava em seus corações?

Eu não sabia. A única coisa que eu tinha certeza, é a de que o destino que me aguardava não era nada glorioso.

Eu posso morrer de verdade hoje. Depois de todos os meus fracassos, é o que eu mereço, e tenho consciência disso. Ninguém virá me salvar.

Vivi a maior parte da minha vida para esse trabalho, e por falhar em quase todas as missões, morreria por ele.

A porta de madeira se abriu, e meu coração acelerou quando encarei a temida Ansel Elryn. Seu cabelo grisalho estava preso em um coque bem elaborado, e ela usava um dos seus famosos terninhos de cor opaca. Ela pigarreou, e eu me levantei com o coração na mão.

— Estamos prontos para você, Lyhua. — disse Ansel, com seu tom de voz polido e sério. Eu me levantei de forma desajeitada, cambaleando. Meu corpo todo tremia, e eu tentei me manter calma enquanto adentrava o grande salão de audiência do Conselho.

Encarei cada rosto naquela sala, e o que encontrei foi um reflexo de rostos inexpressivos e olhares vagos. Eu me sentei no banco de réus, e me senti exposta ali no meio de tanta gente. Percebi que no outro banco de réus se encontrava Anlyn Erlt, uma outra Alma que vivia se metendo em confusão. Eu não sabia que fariam a nossa audiência junto, e aquilo me deixou um pouco aliviada. Pelo menos tinha alguém na mesma situação que eu, então eu não seria totalmente o centro das atenções.

Ela parecia estar tranquila ali sentada. Talvez eu estivesse em uma situação mais grave que a dela, isso explicaria a sua tranquilidade. Provavelmente deve esperar que as minhas falhas distraiam o resto do Conselho em relação as suas próprias confusões.

— Isso não vai começar não? — indagou a doida da Anlyn quase dois segundos depois de eu terminar a minha reflexão, ao que todos a encararam de um jeito que me fez encolher em meu assento, mesmo que não fosse eu que encaravam.

Me cumprimenta agora a boa e velha vergonha alheia.

— Estamos esperando o Amor chegar. — respondeu Taylyn, taciturno. Ele era um dos membros mais bestas do Conselho — Tenha paciência.

A loira bufou ao meu lado e revirou os olhos, calando-se logo em seguida.

Aquela espera conseguia deixar tudo ainda pior. Pelo visto, eu era a única naquela sala que estava apreensiva, já que a minha colega de "réu" só demonstrava impaciência por estar entediada com a espera.

O meu planeta se chama Klimpf, e ele é cheio de Almas como eu que nascem e treinam para se especializar nas artes do amor. Eu moro na Cidade das Almas Secretas, onde fica a sede do Conselho e mais uma penca de gente rica. Eu não sou rica, moro em uma casinha modesta perto do lago, e gosto do sossego e da natureza que tenho a disposição todos os dias.

Eu sou o que todos no planeta Terra chamam de Cupido, só que diferentemente do que os terráqueos pensam, estou longe de ser um anjo com arco e flecha. Eu tenho um corpo que se parece muito com o de um humano, só que sou mais forte e resistente do que um, mas a minha forma natural mesmo é a de uma Alma cintilante que uso para viajar entre o meu planeta e o planeta Terra. Eu até sei manejar bem um arco e flecha, mas não é dessa forma que fazemos os humanos se apaixonarem.

A Cidade das Almas Secretas tem duas partes: A parte em que o dia é eterno e a parte onde só tem a noite. A parte da noite e a parte do dia eterno são divididos por uma Barreira Mágica. Quem está do lado da noite não pode atravessar para o outro lado, pois é lá onde fica o Limbo das Almas Rejeitadas. As Almas que ficam nesse limbo são as que cometeram infrações graves e ficam condenadas a pagar sua pena dentro desse Limbo. Dizem que lá o sofrimento é eterno. Muitas Almas que renascem do outro lado da Barreira Mágica não conseguem voltar e ficam presas no Limbo ou vagando pela parte Sombria para sempre.

Eu fui uma das exceções que conseguiu sair da Área Sombria, e acho que esse foi um dos principais motivos que me levaram a audiência de hoje.

Nós, as Almas, temos somente uma missão: fazer o amor se proliferar nos corações de todos os casais. Se, por algum acaso, o casal que tentamos juntar se separa, nós morremos e renascemos cada vez mais longe de nossa cidade de origem.

Eu morri cento e vinte vezes, e foi por isso que fui parar na Área Sombria, onde a noite é eterna.

A primeira vez que eu morri foi uma das mais dolorosas. Talvez por ter sido a primeira vez, ou porque não nos avisam quando vai acontecer, fez tudo parecer ainda pior. Eu só sei que em um momento eu estava na Terra pela primeira vez, no Brasil, sondando as pessoas que passavam, e no outro, minha Alma se partia em dois e entrava no coração do casal que eu achei que tinha tudo para dar certo. Enquanto eu construía a Semente do Amor no coração do casal que eu tentava juntar, eu me senti como se fizesse a coisa certa.

O casal estava bem, e apesar de terem uns desentendimentos, parecia ser o início de uma união promissora. Eu construí bem a Semente, e quando estava prestes a dar meu serviço como encerrado, os dois terminaram e eu fui expulsa do coração dos dois na mesma hora.

Foi como se eu tivesse sido sugada a força para fora. Enquanto a minha Alma se juntava, eu fiquei suspensa no ar sem oxigênio por alguns segundos antes de ser jogada com força no chão. Enquanto eu agonizava, permaneci invisível aos olhos humanos.

Eu renasci dentro da minha cidade, já que aquela era a primeira vez que eu tinha morrido, e o Conselho exigiu que eu fizesse um relatório de possíveis falhas. Das minhas falhas, é claro.

Anlyn soltou um suspiro que me fez despertar no mesmo instante. As portas do Conselho se abriram e o Amor passou por ela com sua secretária e mais um acompanhante a tiracolo.

Fiquei boquiaberta quando o Amor se mostrou ser um homem comum com feições fortes e queixo quadrado. Tinha cabelos lisos e grandes que iam até o pescoço, e olhos oblíquos e marcantes. Usava um terno todo negro. Ele era alto, e parecia brilhar em sua imponência. Me encolhi em meu assento quando ele resolveu cumprimentar a mim e a Anlyn com um aceno de cabeça.

Seria o Amor tão cruel ao ponto de me mandar para o Limbo das Almas Rejeitadas? Ou ele realmente executaria a minha Alma na frente de todos?

Nós, as Almas, geralmente somos muito pacíficas. Algumas causam problemas sim, mas no geral, não existem tantas execuções entre nós. Somente infrações graves levam a nossa Alma a ser exilada em um ritual na frente de toda a população. Eu só assisti uma Alma ser exilada uma vez e confesso que não foi nada agradável.

As penas mais graves que existem no meu mundo são radicais: passar pelo sofrimento eterno no Limbo das Almas Rejeitadas ou ter sua alma exilada para todo o sempre.

Eu não tenho certeza de qual das duas punições é pior.

— Até que enfim isso vai começar! — exclamou Anlyn de forma teatral. Os membros do Conselho a encararam como se ela fosse a pessoa mais inconveniente do universo, e o Amor pareceu não ligar para a impaciência dela.

Todos ficaram de pé, e eu e Anlyn os imitamos. Fizemos um tipo de juramento, e logo nos sentamos novamente. Ansel e o Amor foram os únicos que continuaram de pé.

O Conselho é constituído de sete pessoas (porque um dos membros faleceu há alguns meses de uma forma estranha e ao mesmo tempo trágica). Essas sete pessoas são lideradas pelo Amor. Neste momento, todos eles folheavam os papéis que constituíam meu arquivo e acho que o de Anlyn também. Tenho certeza de que eles já tinham lido tudo e já estavam mais do que cientes do nosso caso, então não sei se o que eles faziam agora era somente para nos deixar mais impacientes ou se eles realmente queriam relembrar os casos fatídicos que nos levaram até ali.

Ansel Erlt e Taylyn Shiless são como se fossem os líderes imediatos depois do Amor. Os dois estão sempre muito sérios e parece que em seus armários só existem as cores cinza, branco e preto. Ambos já tem os cabelos grisalhos. Depois deles tem o Cientista Ghowey, Rewick Erlt, Traferyna Rewg e Biwkly Onlyns. As duas últimas são as mais jovens do Conselho. Quase não opinam em nada e estão sempre nos olhando com superioridade.

— Estamos aqui para decidir o destino de duas Almas. Lyhua Lyra Iseult — A Ansel anunciou, olhando para o meu rosto de uma forma que fez meu corpo todo petrificar — e Anlyn Erlt.

Dei uma olhadela para o lado e reparei que a expressão de Anlyn era a de uma pessoa entediada. Ela não parecia nem um pouco preocupada em estar ali, e eu me perguntei se ela entendia a seriedade de tudo aquilo. Quero dizer, O Conselho só chamava as Almas mais problemáticas para uma audiência, e só o fato do Amor ter feito questão de marcar presença fazia o meu pânico aumentar.

— Anlyn, você foi convocada para esta audiência hoje pelo seu grande histórico de irresponsabilidade e negligência. Você abandonou seu posto de trabalho para se misturar entre os humanos, mesmo sendo contra as regras para beber cerveja e fazer amizades, tem mais taxas de mortalidade entre o amor de seus casais do que natalidade, e não faz combinações compatíveis. Você também arrombou a sede do Conselho, e fugiu no meio da noite para uma balada aqui no nosso planeta, mesmo estando em serviço. — Ansel disse, parecendo a porta voz de toda a audiência.

— Bom, não foi bem assim... — Anlyn disse, sentindo-se desconcertada. Ela se remexia em sua cadeira, e até o Amor a encarava.

— Então você nega que tenha se misturado entre os humanos em serviço? Nega que tenha negligenciado seu trabalho ao sair para a balada? Nega que arrombou a sede do Conselho? — Ansel indagou, encarando-a de forma firme. Até eu fiquei nervosa em meu lugar, e olha que a minha vez ainda não tinha chegado.

— Eu não arrombei a sede do Conselho! Eu tinha a chave! O Rewick me deu!

Arregalei os olhos e olhei para Rewick. Ele é sobrinho de Ansel, e é um besta engomadinho que só se dirige as Almas importantes ou bonitas de nosso planeta. Dizem as más línguas que ele vive enfiado nas baladas do subúrbio do nosso planeta, e por mais que eu nunca tenha frequentado uma, dizem que o lugar é proibido para todos justamente por estar quase do outro lado da nossa Barreira Mágica, na Área Sombria. Ele também é um dos membros mais jovens do Conselho.

Rewick congelou em seu assento, enquanto Anlyn o encarava de forma incisiva. Ela o desafiava com o olhar, mas eu tinha certeza de que ele nunca abriria o jogo. Já Ansel parecia descrente. Ela acredita na inocência de seu sobrinho.

— Você está mesmo envolvendo na sua confusão um membro tão respeitoso e dedicado como Rewick? — Ansel indagou, olhando para seu sobrinho como se ele fosse um anjo.

— Conte a ela, Rewick! Conte a todos tudo o que fizemos! Conte que fomos ao Club X do outro lado da Barreira Mágica, e que fomos mais de uma vez! Conte que nós dois ficamos e que você me deu a chave do Conselho para que pudéssemos tomar banho naquela banheira! Conte que me deixou sozinha e que o Conselho me achou e que você não teve coragem de admitir que estávamos juntos! — Anlyn gritou, vermelha e trêmula. Sua voz embargada já denunciava que o choro estava preso em sua garganta, e eu me senti tão mal quanto ela parecia se sentir.

— CHEGA! — gritou Taylyn, batendo com as mãos com força no tampo da mesa. Estremeci, e todos no recinto prenderam a respiração.

— Eu não sei do que você está falando. — disse Rewick, com a expressão mais cínica do mundo. Ele suava frio, mas aquilo era o suficiente para que sua tia e todo o Conselho acreditassem nele. — Eu nunca estive com você em toda a minha vida.

Anlyn tinha lágrimas nos olhos. A expressão entediada e impaciente de antes deu lugar a decepção e a raiva, e eu compartilhei do mesmo sentimento ao encarar aquele garoto engomadinho sentado ali. Anlyn parecia ser uns dois anos mais velha do que eu, e Rewick também, mas naquele momento, o sobrinho de Ansel parecia ser mais novo do que todos nós.

O amor se pronunciou pela primeira vez desde que chegou.

— Bom, dadas as circunstâncias, sua sentença já está selada. — Prendi a respiração, com medo do que o Amor diria para Anlyn. Seria ela exilada na frente de todos? — Porém, só a diremos no final.

— Agora vamos para Lyhua. — disse Taylyn, me encarando de um jeito sombrio.

Meu coração acelerou de pavor. Eu fiquei tão distraída com a novela que se desenrolou em minha frente com o caso de Anlyn que acabei me esquecendo que estava na mesma (ou até pior) situação que a dela.

— Você, Lyhua, fracassou em todas as suas missões até a Terra. Cento e vinte vezes, para ser mais exata. Seus casais não dão certo, suas sementes não germinam até o fim, e você já morreu tanto que chegou a renascer cinco vezes do outro lado da Barreira Mágica, na Área Sombria. Como você conseguiu voltar de lá todas essas vezes ainda é um mistério.

O interesse nos membros do Conselho em relação as minhas visitas involuntárias ao outro lado eram bizarras, para não dizer o mínimo. Desde que eu voltei de lá pela quinta vez, tudo o que eles tem feito é tentar tirar de mim todas as informações possíveis do meu regresso.

E eu me lembro exatamente de como cheguei lá pela primeira vez.

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