3 - Olhos de águia
Assim que fechou a porta do quarto de hóspedes, Isis empurrou a fragilidade que tentava dominá-la para longe e fez de tudo para controlar o nervosismo.
Respire fundo, garota. Respire fundo.
Certo. Precisava raciocinar com calma.
Queria trancar a porta, mas não encontrou nenhuma chave.
Isis pigarreou baixo.
Droga; tudo tinha saído do controle.
Enterrou os dedos nos cabelos, sentindo os dentes tiritarem. Aquele era seu primeiro descuido em mais de três anos. As roupas molhadas, coladas ao seu corpo, a faziam tremer de frio. Mas como poderia imaginar que seria surpreendida na estrada, durante um raro e abrupto tornado?
Havia corrido sem olhar para trás, pega pela chuva trazida pelo vento. Ao ver uma caminhonete estacionada na escuridão, achou que poderia pegar a lona sem ser notada, e proteger a si mesma e ao filho até que a tormenta passasse. Nunca imaginou que seria vista e seguida pelo dono do veículo. Jamais pensou que ele, depois de tudo, lhe ofereceria abrigo.
O choro incomodado de Davi a fez deixar os pensamentos de lado e focar completamente nele.
Assim como o fazendeiro de porte rústico lhe dissera, havia um banheiro anexo ao quarto. Isis tirou as roupas molhadas do filho, controlando a vontade de chorar ao sentir o quanto ele estava gelado. Levou-o até o chuveiro e deixou que a água quente o aquecesse.
— Vai ficar tudo bem, meu amor. Mamãe vai cuidar de tudo. Nada, nem ninguém, fará mal para nós.
Se não fosse pelo filho, jamais teria aceitado passar a noite ali.
Não conhecia nada sobre o homem que a acolhera.
E tinha dito seu nome verdadeiro para ele!
Que descuido, que descuido.
Isis fechou o chuveiro, pegou Davi no colo evoltou com ele para o quarto. Através da janela, podia ouvir as rajadas brutaisdo vento, enxergar a chuva que o vendaval trazia e que a tinha colocado naquelasituação.
Abriu os armários, procurando por peças de roupas. Como o tal Oliveira dissera, não havia nada infantil ali, mas conseguiu achar uma camiseta e vestiu o filho com ela. Colocou-o na cama e o enrolou nas cobertas, e só depois de se certificar de que ele estava bem, foi até o banheiro para se lavar e tirar as roupas encharcadas e sujas.
Com cuidado, tirou a blusa e se olhou no espelho. Não havia nenhum ferimento na barriga; o sangue no tecido não era seu. Tocou o lábio machucado, gemendo baixo de dor.
Enquanto a água quente caía por seu corpo, Isis tentou ordenar os pensamentos. Assim que a chuva desse uma trégua, iria embora daquele lugar. Não sabia até que ponto poderia confiar na gentileza daquele homem.
Embora...
Isis engoliu em seco.
Havia algo nos olhos dele que a fizera ceder e aceitar o convite.
Ela desligou o chuveiro, se enrolou em uma toalha e voltou para o quarto, procurando por uma roupa no armário. Achou uma calça de moletom com elástico e uma camiseta larga. As peças eram masculinas e tinham um cheiro de guardada. Mas, diante de tudo, aquilo era uma dádiva.
Girando nos calcanhares, começou a fuçar todas as portas e gavetas que encontrou pela frente. Seu coração batia rápido, vociferando com o retumbar dos trovões.
Enxergou uma tesoura perdida no fundo de uma das gavetas.
Ótimo.
Havia perdido seu canivete na estrada, assim como a mochila com a pouca bagagem e dinheiro que carregava.
Segurando a tesoura nas mãos, Isis se sentou na beirada da cama. As lágrimas teimavam em querer surdir, mas não cederia a elas. Chorar era um luxo com o qual não poderia perder tempo.
— Mãe... Fome.
— Tente dormir, Davi.
— Mas o Davi tá com fome!
Isis apertou os olhos, inspirando fundo.
— Tudo bem. Vou ver se encontro algo para você comer. Mas você não pode sair desse quarto, entendeu?
Enrolado nas cobertas, Davi assentiu.
Isis se levantou da cama e enfiou a tesoura no cós da calça, usando a camiseta folgada para escondê-la.
Tentando não fazer barulho, abriu a porta do quarto e espiou os dois lados do corredor. Um silêncio visceral recobria toda a casa, entrecortado apenas pelo som cadente da tempestade. Ela andou com cuidado, sempre com o olhar à espreita, certificando-se a todo instante de que a tesoura ainda estava ali.
Parou na entrada da cozinha, se perguntando se deveria acender ou não a luz.
— Imaginei que você ainda precisaria de algo.
Isis se sobressaltou diante da voz grave e máscula.
Oliveira estava encostado no balcão, de braços cruzados, com a camisa molhada ainda colada ao corpo. Somente a luz dos relâmpagos constantes provinha um pouco de luminosidade na cozinha.
— Eu não... Não queria abusar da sua hospitalidade.
Ele se desencostou do balcão.
— Do que você precisa?
— Só quero um copo de leite. É para o meu filho.
— E para você?
— Estou bem.
Oliveira assentiu e foi até a geladeira, onde pegou uma caixa de leite, encheu um copo e o levou ao micro-ondas para aquecê-lo. Isis aproveitou cada um daqueles movimentos para observá-lo de relance.
A experiência — e a necessidade — lhe ensinaram a olhar para um rosto uma única vez, de forma rápida e fugaz, e gravar todos os detalhes.
O semblante daquele homem havia se marcado como fogo em brasa na sua mente.
Um rosto queimado de sol, típico dos fazendeiros do interior de Minas Gerais, marcado com linhas rústicas, viris, que formavam caminhos ao redor dos olhos escuros, descendo para a mandíbula firme, acentuando o contorno dos lábios. Os cabelos, da cor forte do café, deixavam sua presença ainda mais evidenciada.
— Aqui está o leite quente. — A mão grande e larga dele lhe entregou o copo.
— Obrigada.
O roçar entre suas mãos fez Isis erguer o rosto involuntariamente e fitar os olhos escuros.
O raio que despencou do lado de fora iluminou a cozinha.
A boca de Oliveira se contraiu.
— Vi que havia sangue em sua roupa.
Um homem de traços rústicos e olhar de águia. Isis percebeu que teria que ser mais cuidadosa.
— Tentaram me assaltar na estrada. — Aquela era uma verdade que podia contar sem correr risco.
Um lampejo ardente e inesperado queimou nos olhos dele.
— Te machucaram?
— Me defendi com um canivete. — Isis engoliu em seco, algo dentro dela estremecendo ao ser olhada daquela forma tão... Intensa. — Quando consegui, corri para a cidade e fui pega pela chuva. Tentei achar alguém para me ajudar, mas tudo estava fechado por causa do tornado. E quando vi a lona da carroceria da sua caminhonete, não pensei duas vezes. Desculpa.
Ele estreitou os olhos, entreabrindo os lábios, e Isis achou melhor cortar qualquer pergunta.
Perguntas eram perigosas.
— Preciso levar o leite para o meu filho.
Oliveira assentiu, sem deixar de olhá-la.
— Me avise se precisar de mais alguma coisa.
— Ok. Mais uma vez, muito obrigada por tudo.
Quando percebeu que ele não iria falar mais nada, mas que não romperia aquele contato visual que poderia desarmar qualquer pessoa, Isis se moveu primeiro e virou, voltando para o quarto, controlando-se para não andar rápido demais.
Davi vibrou com o copo de leite. Isis esperou que ele bebesse tudo, se enrolou nas cobertas e puxou o filho de encontro ao corpo, observando a chuva até sentir que ele havia adormecido em seus braços.
Por segurança, deixou a tesoura embaixo do travesseiro.
Assim que o dia irrompesse, iria embora.
Porque nenhum lugar jamais seria seguro o bastante.
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