Capítulo 4
Capítulo 4
Janeiro de 2012
Alyssa
Quase 7 horas e 40 minutos de voo, ainda restavam quase 3 horas para chegar a São Paulo, de lá pegar uma conexão para Navegantes e depois mais 40 minutos de carro até Blumenau. Espero que a estrada esteja boa. Tentava repassar mentalmente os últimos quatro dias. Foi tudo tão corrido, tive que resumi em três dias os últimos dois anos que estive em Boston e colocar tudo em malas e caixas. Falei pessoalmente com Mr. Baker, expliquei toda a situação e ele foi muito compreensivo, entendeu e ajudou a acelerar minha documentação de conclusão do curso. Anthony e Valentina foram incríveis, graças a eles consegui organizar minhas coisas em tempo recorde. Durantes os anos que passei em Boston tentei não acumular muitas coisas, já que tinha data certa para voltar para casa.
Anthony e Valentina Harris não apenas me acolheram durante o tempo em que estive nos Estados Unidos, eles também foram como verdadeiros pais, sentirei muita saudade deles. Nossa despedida foi em meio às lágrimas. No coquetel de formatura foram tantas emoções, homenagens, discursos, felicitações, mais despedidas e promessas de um futuro repleto de oportunidades.
Há aqueles que me chamam de cínica, outros me acham sincera demais, particularmente não me considero nem um dos dois, sou apenas prática. Acredito que a vida é curta demais para se viver aprisionada ao passado em um relacionamento que não pode ser vivido, pois a distância não permite. Você vê a vida passar diante dos seus olhos e não pode vivê-la, pois está enterrado em momentos que foram incríveis, mas que existem apenas em suas lembranças, deixando de ser feliz. Não é uma realidade que eu deseje viver, como minha mãe fez. Por amar tão cegamente meu pai esqueceu até que tinha uma filha. Aprendi muito nova que minha felicidade depende única e exclusivamente de mim. Esse tempo fora, me fez amadurecer e aprender a enxergar as coisas de diferentes formas.
Chego a São Paulo e tenho que esperar mais 20 minutos para conseguir embarcar na conexão, a espera parecia infinita. Quando finalmente entrei no avião, me dei conta de que em alguns minutos estaria desembarcando no meu estado. Só consegui avisar a tia Liliana e a vovó Clara, tentei falar com Gaspar ou Henrique só que não consegui, em meio a toda a correria para organizar minha viagem de volta, não houve tempo.
Quando o avião aterrissa e o desembarque inicia, minha ansiedade estava tão elevada, que meus movimentos são automáticos. Não sabia quem estaria a minha espera. Pego minha bolsa e mochila para seguir a fila e desembarcar. Foço o check-in para pegar minha bagagem, duas malas enorme, uma menor e duas caixas gigantes. Peço para um dos seguranças próximos me ajudar a colocar tudo no carinho, agradeço e sigo meu caminho.
Ao sair pelo portão, começo a procurar por algum rosto familiar, não demora muito até encontrar o enorme sorriso de boas vindas da minha tia que estava linda, como sempre. Corro em sua direção e abraço-a o mais forte que consigo. Assim que nos separamos, ela acaricia meu rosto enxugando algumas lágrimas que teimavam em cair. Enxugo seu rosto que estava repleto das teimosas gotas salgadas e ambas começamos a sorrir histericamente.
— E a vovó? — Pergunto momentaneamente recuperada, mas antes que tia Liliana pudesse responder algo, uma voz grave e muito familiar desperta minha atenção.
— Achei que vocês duas estavam tendo um surto ou algo do tipo. — Henrique fala, aproximando-se de mim. Atiro-me em seus braços, ele me envolve me dando um grande abraço que me envolve por completo. — Senti saudade, maluquinha!
— Também senti! — Nos separamos, ele me dá um beijo no rosto, sorrimos um para o outro.
— Vamos para casa, meu bem. Mamãe quase me enlouqueceu desde que disse que estava voltando, ela não veio porque estava terminando de organizar tudo para sua chegada — vovó Clara e tia Liliana tinham uma relação muito engraçada, e ao mesmo tempo muito íntima e profunda. Era bom estar de volta. Vamos juntos pegar minha bagagem, depois seguimos direto para o estacionamento.
— Como estão todos? — Pergunto, enquanto caminhamos em direção ao carro.
— Vivendo um dia de cada vez, não está sendo fácil, para nem uma das duas famílias — quem responde minha pergunta é minha tia, Henrique permaneceu em silêncio, foi através dele que percebi que as coisas não estavam nada bem. Ele sempre foi um cara alegre e extrovertido, brincalhão e de bem com a vida, seu silêncio não combinava nada com sua personalidade. — Laura teve que voltar para Blumenau para ajudar o Gaspar. — Confirmo com a cabeça e tia Liliana continua. — Agora ela está aqui novamente. Ettore e Lívia ajudam no que podem, Samara está sendo um apoio enorme para Gaspar em relação à Isa, Mael também está ajudando no que pode, mas a Faculdade de Medicina ocupa muito seu tempo e esse jovem aqui — fala se referindo a Henrique, que continuava sem dizer uma palavra. — Está administrando sozinho o Sabores.
— Não faço mais do que meu trabalho e obrigação, além disso, Gaspar não é apenas meu sócio, ele é meu primo e melhor amigo. As coisas estão complicadas, o mínimo que posso fazer é ajudar. — Acho que alguém amadureceu bastante nos anos em que passei fora, me tranquiliza saber que Gaspar e Duda o tiveram por perto.
— Falaram de todos, menos da Duda. Vocês têm visto ela? — Entramos no carro e nos acomodamos, percebo que minha tia e Henrique se entreolham ao invés de responder minha pergunta.
— Duda está indo bem com o tratamento — quem responde minha pergunta após alguns instantes é tia Liliana. — Não está sendo fácil. Mesmo com Laura aqui com eles, Gaspar teve que contratar um Chef para substituí-lo e assim poder acompanhar o tratamento. — Encaro Henrique pelo retrovisor, já estávamos em movimento e eu nem tinha percebido.
— Gaspar não contou detalhadamente como estavam as coisas, tudo o que me disse foi que há dois meses, Duda tinha sido diagnosticada com um tipo raro de câncer e que estava fazendo um tratamento muito delicado — continuo encarando Henrique. — Por que ninguém me contou o que estava acontecendo? Que tipo de câncer é esse?
— Duda pediu para não falarmos para você, na verdade ela exigiu que não te falássemos nada. — Henrique me responde. Desvio meus olhos dos dele, que direciona sua atenção para o trânsito. Gaspar tinha comentado comigo sobre ela ter pedido que ninguém me contasse, mas poxa vida, somos amigas desde criança, não foi justo da parte dela.
— É verdade, meu bem. Ela não queria que você se preocupasse.
— Que eu não me preocupasse! Tia, somos amigas. Nos conhecemos desde os oito anos, ela é como uma irmã para mim, ouvir algo assim magoa, sabia? — Era difícil acreditar que a Duda tomou uma decisão como esta, me deixar no escuro enquanto ela passava por tudo isso. — Quero vê-la.
— É claro, querida, podemos ir no fim da tarde até...
— Não, tia! Quero vê-la agora. Henrique pode, por favor, seguir até a casa da Duda? — Falo sem permitir que minha tia continue.
— Lys, são quase 10h00min da manhã, você não dormiu, passou a noite inteira viajando. Não acha melhor descansar primeiro?
— Não, eu não acho. Estou ótima, tia. Henrique! — Se não visse a Duda, se não falasse com ela, não seria capaz de descansar.
— Não demora muito até chegarmos lá, uns quarenta minutos mais ou menos. — Fala já mudando o percurso. Olho através da janela observando a paisagem da minha terra, que amo tanto e conheço tão bem.
— Lys! — Desperto dos meus pensamentos quando minha tia me chama. — Querida, antes de chegarmos, é bom que saiba que a Eduarda está diferente por causa da doença. Ela está um pouco debilitada, não apenas fisicamente, mas emocionalmente também. Ela tenta se manter forte pela Isa e pelo Gaspar, só que dá para perceber o esforço que ela faz. — Claro que Duda colocaria suas preocupações com todos em primeiro lugar, ela sempre foi assim.
— Nunca esperei encontrá-la saltitando e sorridente, tia, sei que ela não está bem. — Ela assente.
Em menos de quarenta minutos chegamos ao condomínio onde Gaspar e Duda estavam morando. Sabia que não encontraria a mesma Duda. Ela estaria diferente, debilitada por causa da doença. Porém, por mais consciente que eu estivesse a respeito de seu estado seria difícil ver alguém tão jovem, fragilizada e vulnerável por causa de células malignas microscópicas, que tinham se alojado em seu organismo.
Subimos os três em silêncio pelo elevador. Aquele comportamento do Henrique estava me dando nos nervos, ele estava preocupado, isso era evidente, mas aquele silêncio me afligia. Assim que estamos de frente para a porta, tia Liliana aperta a campainha, alguns segundos depois, a porta é aberta por tia Laura, mãe da Duda. Sorrimos uma para a outra, era visível que estava emocionada em me ver, ela me envolve em um abraço apertado. Adorava seus abraços de mãe, eram muito parecidos com os da vovó Clara.
— Você está linda! — Fala ao se separar de mim acariciando meu rosto. — É bom ter você de volta em casa, Gaspar comentou comigo que você estaria retornando para o Brasil, só não me disse quando.
— Obrigada, tia! Foi tudo rápido demais. É muito bom estar de volta. — Ela parecia abatida, com um semblante cansado, tinha certeza que eram as preocupações.
— Como vai, Liliana? Henrique, Gaspar foi para o restaurante, não faz muito tempo.
— Estou bem, Laura. — Minha tia responde com um tom solidário. Ela sabia muito bem a dor de se ter um filho doente, assim como a dor da perda.
— Então eu vou para o restaurante, Gaspar raramente anda passando por lá, vou aproveitar. Vocês duas vão ficar bem? — Henrique pergunta solícito.
— Vamos sim, querido, pegaremos um táxi para chegar à chácara. Obrigada por ter ido comigo buscar a Lys.
— Imagina, Liliana, foi um prazer. — Ele beija o rosto dela, depois a testa da tia Laura, se volta para mim.
— Ligo para você mais tarde para conversarmos, tudo bem? — Apenas aceno com a cabeça. — Vou deixar a bagagem com o porteiro. — Ele me dá um beijo no rosto e se retira.
— Que indelicadeza a minha, por favor, entrem. — Adentramos no apartamento. O imóvel não me parecia tão diferente do anterior, era maior, com cores mais alegres, os cômodos pareciam bem mais amplos, ainda assim o ambiente me pareceu triste.
— Como foi à viagem, minha querida? — Laura pergunta assim que nos acomodamos na sala.
— Tranquila e longa. Nunca fui muito fã de aviões, mas é só colocar uma música que consigo relaxar.
— Voar não é uma das minhas formas preferidas de viagem também. — Parecia que ela não tinha dormido bem. — Querem um chá, um café ou alguma outra coisa?
— Eu adoraria um chá, Laura, mas pode deixar que eu faço, sei onde ficam as coisas — minha tia fala já se levantando e indo em direção à cozinha, antes que Laura ou eu falássemos qualquer coisa.
— Quero muito vê-la.
— Duda está dormindo. Ela fez quimioterapia ontem. A medicação, deixa-a cansada e enjoada, as manhãs são bem complicadas.
— Não me importo em esperar. Faz tempo que ela está dormindo?
— Não. Normalmente, ela acorda, faz sua higiene pessoal, toma café da manhã e volta a dormir, não muito, apenas umas duas horas.
— Tia Laura, pode me contar como ela está de verdade?
Seu estado cansado me pareceu evoluir para a exaustão, em um piscar de olhos. Agora tinha certeza absoluta que Gaspar não me falou tudo.
— O diagnóstico oficial é Mesotelioma pleural maligno, o mesmo tipo de câncer que o meu João teve. No caso da Duda afetou o estômago. No meu marido foi na pleura que reveste o pulmão. Locais diferentes. O tipo de câncer da Duda não é tão violento como o do pai dela, mas é tão perigoso quanto. — Estava visível para mim, como a situação toda parecia ser cruel e injusta. Não consegui deixar de imaginar o quanto Duda vinha lutando pela sua vida, e como essa mulher que estava diante de mim, vinha sendo forte.
— E quanto ao tratamento?
— Ela teve que se submeter a uma cirurgia para retirar os tumores, não conseguiram retirar tudo. Essa é a segunda sessão de quimio. As aplicações duram entre três e seis meses, dependendo da necessidade e da evolução do quadro clínico. — Ela inclina apoiando-se ao encosto do sofá, passando as mãos pelo rosto. — Vejo o otimismo nela, não sei por quanto tempo vai durar. Mas sei que está lutando, pela Isa e pelo Gaspar.
— E por você também, tia, ela te ama — seu meio sorriso é triste. — O que a senhora quis dizer, quando disse que não sabe por quanto tempo vai durar o otimismo?
— É um tratamento sofrido, desgastante, não apenas para o paciente, mas para toda a família. Às vezes os pacientes se desgastam demais. Tudo muda, não só fisicamente, emocionalmente também. Mexe com o humor, a autoestima, afeta muito a parte emocional. Vi acontecer com meu marido. Duda é tão doce e carinhosa. Não queria que ela estivesse passando por isso. — Seu desabafo assim como suas lágrimas mexem comigo e sei que ela vem guardando tudo isso por muito tempo. Ela chorava sem perceber.
— Conheço Maria Eduarda como conheço a mim mesma, tenho certeza que ela não vai se deixar vencer, ela vai passar por tudo isso e vai ficar boa — levanto-me da poltrona onde estou e vou até o sofá. — Não estou falando isso para aliviar o que está sentindo, falo porque sei que ela vai conseguir.
— Sei que acredita, meu bem. Não duvido da força da minha filha, mas tento manter os pés no chão e ter consciência das possibilidades. — Ela segura minhas mãos, e me encara. — Elas existem, Lys, negá-las não as farão desaparecer. Sim, minha filha pode vencer essa maldita doença, se recuperar e acompanhar o crescimento da filha, assim como ela pode não conseguir. — No fundo, bem lá no fundo sabia que ela tinha razão, assim como entendia seus motivos para dizer aquelas palavras. Mesmo assim não deixa de ser difícil ouvi-las.
— A senhora fala como se a situação da Duda já estivesse definida. Como se estivesse tudo definido.
— Não, meu bem. Falo como alguém que já viveu essa realidade e que sofreu uma grande dor. — Sinto-me culpada pelas palavras que tinha dito há pouco, sabia o quanto a Laura tinha perdido, como ela teve que ser corajosa e enfrentar a vida sem o marido. Diferente da minha mãe, ela lutou pelo futuro da filha e para se recuperar da morte prematura do marido. — Tentar fingir que a não recuperação da Duda possa ser uma possibilidade, não vai ajudá-la a passar por isso.
— Me desculpa, tia, você tem razão. É que ela é tão jovem, não é justo.
— Não, não é justo. A vida nem sempre é muito justa, mas cabe a nós não deixar que isso nos torne pessoas amargas e sempre procurar o lado bom dela. — Dou um meio sorriso que ela retribui, tia Liliana volta da cozinha com chá e café. Ficamos conversando sobre amenidades por um tempo.
— NÃO ACREDITO! — Uma voz incrédula e espantada soa por toda a sala.
Viro-me na direção do som da voz, me deparo com Duda de frente ao corredor que dava para os quartos. Ela está diferente, parecia frágil e bem mais magra do que o normal, ainda assim era a mesma Duda. Sua expressão era de pura incredulidade, parecia não acreditar que estava me vendo ali. Abro um enorme sorriso em sua direção.
— Surpresa! — Tento parecer o mais natural possível, mas acho que não tive muito sucesso.
Ela continua me encarando como se eu tivesse um chifre de unicórnio na testa. Parada como um dois de paus, com a boca meio entreaberta.
— Surpresa? — Fala ao se recuperar do choque, parecia estar meio chateada ou sem jeito, não tenho certeza — Você aparece na minha sala depois de dois anos, sem avisar que estava vindo e diz "surpresa", isso é sério? Poderia ter me falado que viria, quando nos falamos semana passada. — Caminha a passos lentos até onde estávamos.
— Se fizesse isso, não seria uma surpresa.
— Muito engraçada. A senhora sabia, mãe?
— Não exatamente.
— Isso significa que sabia. Inacreditável.
— Que boas-vindas mais acaloradas. Fico feliz em saber do seu êxtase em me rever. — Meu tom agora era irônico pela forma como estava falando, parecia até que não estava gostando da minha volta.
— Não é isso, é que eu...
— Sabe o que é inacreditável? É saber que minha melhor amiga está doente, precisando de mim e descobrir isso por outra pessoa e não por ela. — Falo antes que ela continuasse, levanto do sofá e ficamos frente a frente.
— Quem te contou?
— Isso realmente importa? A questão aqui é, por que não foi você quem me disse?
— Como se isso fosse mudar alguma coisa, Lys. Acha pouco eu ter modificado a vida da minha mãe, do meu marido e da família dele, sem mencionar na vida da minha filha. Queria que eu fizesse isso com a sua também?
— Acho melhor irmos para a cozinha, Laura. — Tia Liliana fala se levantando, indo em direção à cozinha, levando junto com ela tia Laura.
— É assim que define nossa amizade? Apenas os bons momentos quando não precisa de mim? Pensei que fôssemos mais do que isso uma para a outra.
— Não é isso e sabe bem. Está se vitimizando para que eu me sinta culpada.
— Vai usar de psicologia comigo agora? Poupe-me, Eduarda. Sabe que tenho razão e fica tentando encontrar justificativas para o fato de ter escondido o que estava acontecendo.
— O que você queria que eu fizesse, Lys? Queria que eu tivesse dito por telefone "Você não vai acreditar, amiga, acabei de descobrir que tenho o mesmo tipo de câncer que matou meu pai", enquanto me contava que tinha recebido uma proposta irrecusável para participar de uma turnê, com uma das maiores orquestras do mundo, ou talvez antes? — Seu semblante parecia exausto. Aquele bate boca comigo estava deixando-a ainda mais cansada, então resolvo tentar finalizar aquela discussão.
— Acha que está sendo justa. Você sabe que mesmo vivenciando meu sonho, sempre desejei voltar para casa e que não tinha decidido nada ainda — ela desiste de ficar de pé e senta-se na poltrona onde tinha me sentado. Fica por um tempo em silêncio.
— Não queria que soubesse, porque não queria que mais uma pessoa abrisse mão de seus planos e sonhos por minha causa. Pode chamar de egoísmo se quiser, mas esse é meu modo de amar e é o único que conheço. Por mais que fosse difícil não tê-la aqui comigo, prefiro que esteja vivendo seus sonhos, ao invés de estar enterrada viva, como todos ao meu redor.
— Alto piedade não combina com você, sabe? — Sento-me ao seu lado.
— Foi o Gaspar não foi? Ele anda me deixando doida.
— Realmente importa quem me falou? Se foi sua mãe, Henrique, Gaspar, minha tia ou minha avó isso realmente é importante?
— Acho que não. — Fala se sentando de lado ficando mais uma vez de frente para mim. Seus olhos já estavam embargados de lágrimas. — Eu só não queria que você abrisse mão de uma oportunidade tão importante por minha causa.
— Duda, você sabe muito bem que eu não havia decidido nada ainda e que estava mais inclinada a voltar para casa do que a aceitar o convite. Quando soube que estava doente, vim o mais rápido que pude. Não apenas por sua causa, mas também por mim, porque era importante para mim estar ao seu lado.
— Me perdoa por ser tão idiota. — As lágrimas que ameaçavam cair, agora já inundavam seu rosto.
— Perdoo. Mas é bom você saber que vou querer algo em troca. Vamos começar com uma daquelas sobremesas deliciosas que só o seu marido sabe fazer. Depois uma noite tórrida de orgia com muito chocolate de preferência. — Ela até tenta segurar o riso, mas não consegue.
Nós duas desenfreamos a rir, parecia que não conseguíamos parar.
— Senti tanto sua falta. — Fala assim que consegue se recuperar das risadas. Ela se atira em meus braços me envolvendo. Aquele tipo de abraço, que consegue arrancar de você tudo o que está sentindo. Duda era ótima nesse tipo de abraço.
— Também senti saudades, branquela.
Após nosso momento "lavar roupa suja", Laura e tia Liliana retornam da cozinha, ficamos as quatro conversando por um tempo, Duda me explica melhor sobre o tratamento, conversamos principalmente sobre a Isa, como ela está grande e linda. Noto o enorme esforço que a minha amiga tem que fazer para participar ativamente de uma simples conversa. Ela me fala um pouco sobre os efeitos colaterais do tratamento, seus cabelos já tinham começado a cair, não muito, mas o médico disse que a cada dia cairiam mais. Quando percebo que já abusamos suficiente, resolvo me despedir.
— Tia, acho melhor irmos.
— Já? Vocês acabaram de chegar, não vão ficar nem para o almoço? O Gaspar já deve estar chegando.
— Acabei de chegar de viagem, Duda, passei quase dez horas viajando, vim diretamente te ver, estou cansada e doida para tomar um belo banho.
— Vou pedir para seu Manoel chamar um táxi e ajudar com suas bagagens. — tia Laura se oferece.
— Vou com você, Laura.
— Elas são tão sutis, que dá até medo — Duda fala rindo da atitude nada discreta para nos deixar a sós.
— Verdade. Você já viu alguma mãe ser discreta quando se trata de filhos?
— Não, nunca. Nem eu sou discreta quando se trata da Isa, adoro corujar tudo relacionado à minha pequena. — Seus olhos sempre brilhavam quando falava da filha, devia ser difícil para ela ter que mandar a Isa para a casa da cunhada nos dias que ela não estava tão bem. — Isa ficou triste quando Gaspar levou a Lika para a casa da Samara, pedi para ele deixar a cachorrinha aqui, mas não adiantou nada. — Seu comentário me desperta dos meus pensamentos.
— E por que ele fez isso?
— Porque o médico falou que minha imunidade fica muito baixa, depois das sessões de quimioterapia e com o tratamento contínuo eu estaria mais exposta. Depois disso ele meio que pirou — ela inspira com profundidade e esfrega as têmporas, parecia estar com dor.
— Está se sentindo bem?
— Sim, depois de um tempo a dor se torna parte de você, por ser tão constante. — Seguro uma de suas mãos, queria poder dividir essa carga com ela. É difícil imaginar como deve estar sendo doloroso todo esse processo. — Estou bem, de verdade. Não se preocupe. Já tenho pessoas de mais a minha volta com essa cara que está fazendo agora, sou forte e não vou quebrar assim, com tanta facilidade.
— Tudo bem, senhora "sou a mulher maravilha". — Falo tentando fazer graça. — Voltando para o Gaspar. Ele é seu marido e acredito que te enlouquecer seja obrigatoriamente a primeira função dele.
— Não está entendendo, Lys, ele contratou um Chef para tomar conta da cozinha que ele passou dois anos lutando para ter, para ganhar reconhecimento e espaço. Treinou o cara durante uma semana, hoje é o primeiro dia que ele pisa no restaurante depois de quase dois meses. Sei que entregar algo que ele batalhou para ter e que é seu mundo está acabando com ele, eu sinto.
— Duda, o mundo do Gaspar é você. O restaurante é apenas o trabalho dele, algo que ele ama fazer. Conhecemos o Gaspar ao mesmo tempo, óbvio que não o conheço tão bem quanto você, mas sei que tudo o que ele quer é cuidar de você e da filha de vocês. — No fundo, no fundo, também penso que era um exagero abandonar por completo o trabalho, como aquele maluco estava fazendo, mas essa não era uma conversa para eu ter com a Duda e sim com o Gaspar. Essa atitude dele não estava fazendo bem a nem um dos dois.
— Sei que está certa, só que isso está começando a me incomodar.
— Querida, o táxi chegou e seu Manuel já está com suas malas nos esperando. — Minha tia fala ao entrar na sala com Laura.
— Bem, acho que é melhor eu ir. Estou exausta e precisando descansar, assim como você. Amanhã, eu venho ver a Isa e enchê-la de beijos, trouxe um monte de presentes também. — Falo ao me levantar.
— Aproveita e fica para o jantar.
— Pode ter certeza disso. Acho bom pedir para o Chef da casa fazer um incrível jantar de boas-vindas. — Duda sorri, levanta-se e nos abraçamos.
— Te espero amanhã.
— Estarei aqui. — Nos separamos.
— Até amanhã, querida. — Abraço tia Laura. Termino de me despedir e saio.
No táxi, enquanto ia em direção à chácara, não consigo evitar pensar na Duda e em como tudo estava confuso em sua vida. Voltar foi a melhor decisão que eu poderia ter tomado, sabia que Duda precisava de mim. Encontrá-la fragilizada daquele modo, me deu a dimensão verdadeira do que ela está enfrentando e também do que está por vir. Nunca fui boa com relacionamentos amorosos ou em construir relacionamentos novos, sempre fui desconfiada e receosa em deixar as pessoas chegarem muito perto, as exceções a essa regra acabaram se tornando parte da minha família. Nem os poucos amigos que fiz enquanto estive fora, considero de fato pessoas intimas. Duda, Henrique, Samara, Mael, algumas outras poucas pessoas e até mesmo o Gaspar são essas exceções, um dos motivos pelo qual decidi voltar foram eles.
— Está tudo bem, querida? — Tia Liliana pergunta e volto minha atenção para ela. — Sempre fica perdida em pensamentos quando algo te preocupa ou angustia.
— Me conhece tão bem que até me assusta — tento fazer graça, abro um meio sorriso sem graça. — Estava apenas pensando na Duda, ela está bem diferente. Ainda consigo vê sua doçura, assim como a pessoa incrível que ela é e sempre foi. Mas eu sou a melhor amiga dela, crescemos juntas, então acho que é normal que eu consiga enxergar isso. — Pensar sobre o que estava acontecendo, falar em alto e bom som tornava todos àqueles meus medos reais, e de todos eles o maior era pensar que talvez, Isa não tivesse a chance de conhecer esse lado incrível da Duda por completo.
— Sei que está preocupada, Lys, Laura também, todos nós estamos. Não tem que ser forte o tempo todo, sei que mexeu com você encontrar a Duda tão fragilizada — Minha tia estava certa, estava tentando segurar a onda, mas era tão cansativo não expressar o que eu realmente sentia. — Sabe que a mudança dela é por causa da medicação, o emocional dela está abalado, assim como a autoestima, não é fácil passar pelo que ela está passando.
— Sei de tudo isso, tia, acho que só fiquei impressionada. A imagem que eu tinha dela quando parti foi dela feliz com o Gaspar e a Isa, cheia de planos e saudável. Acredito que tenha sido isso que me impactou. Foi apenas o primeiro momento — ela assente, ia falar mais alguma coisa, mas chegamos à chácara e ela não disse nada.
O taxista nos ajuda com as minhas imensas malas e caixas. Quando tia Liliana pagava pela corrida, vovó Clara abre o portão.
— Até que enfim chegaram! Por que demoraram tanto? — fala com aquele jeito expansivo e dramático.
— A senhora saberia se carregasse seu celular de vez em quando, ou se atendesse quando ligamos.
— Por favor, Liliana, é claro que meu celular está carregado e eu sempre atendo. Que desaforo falar dessa forma. — É impossível não rir da relação daquelas duas. Enquanto respondia aos comentários de tia Liliana se aproximava de mim.
— Como é bom tê-la de volta em casa, quero saber de tudo, todos os detalhes. E então, por que demoraram tanto? Pode me responder, meu bem, já que sua tia adora me desafiar por meras trivialidades.
— Fomos até à casa da Duda, vovó, queria muito vê-la. Estava muito preocupada e passamos um pouco da hora, eu acho. Aliás que horas são?
— Já passou da hora do almoço, como conseguem não sentir fome? Por isso estão tão magrinhas as duas. — Eu e tia Liliana nos encaramos sorrindo, e não duvido que estejamos pensando a mesma coisa. Que essas palavras não fossem apenas exageros da vovó, que realmente estivéssemos magrinhas.
— Não seja tão exagerada, mãe. Vamos entrar! Lys tem que tomar um bom banho, comer e descansar e eu tenho que finalizar algumas preparações de terra para o trabalho amanhã. — Seguimos as três para o interior da chácara.
Tudo naquele lugar continuava igual tanto no interior como no exterior, os jardins estavam talvez um pouco mais sofisticados, mas a essência do lugar ainda continuava sendo a mesma, assim como os ambientes dentro da casa. Até mesmo os aromas eram iguais, adorava tudo ali, os mínimos detalhes me recordavam uma infância feliz, apesar de todas as dores pelas quais passei, algumas delas, ainda continuam dentro de mim. Felizmente aprendi a não deixá-las me consumir. A casa verde com detalhes em mogno de primeiro andar, com uma pequena varanda de madeira me fazia sentir acolhida como nem um outro lugar fazia.
Depois de um banho longo e relaxante, um almoço maravilhoso que apenas a dona Clara sabia preparar, fiquei exausta e decidi descansar um pouco. O fuso horário estava acabando comigo, tinha mais de dezessete horas que eu não dormia. Eram quase duas e meia da tarde quando me tranquei no meu antigo quarto, fechei as persianas das janelas e me deitei. Sentia-me tensa por causa de todas as emoções, misturadas com a viagem e com meu encontro com a Duda, mesmo com o cansaço não estava conseguindo desligar. Talvez demorasse um pouco para me adaptar ao fuso horário. Acabo indo até uma das minhas malas, pego meu mp4, música sempre me ajudava a relaxar. Coloco os fones e seleciono uma música aleatória, a melodia de Lanterna Dos Afogados dos Paralamas Do Sucesso começa a soar pelos fones, adorava aquela música, me acomodo na cama aconchegando-me em meio aos lençóis tento me concentrar na letra.
Quando está escuro
E ninguém te ouve
Quando chega à noite
E você pode chorar
Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar
Eu estou na Lanterna dos Afogados
Eu estou te esperando
Vê se não vai demorar
Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar
Aos poucos, meu corpo relaxa e finalmente mergulho na escuridão do meu inconsciente.
************
Quando desperto já passava das 19h00min, lá fora o tempo parecia estar frio. Coloco meias, pego meu velho xale de lã e me levanto. Dirijo-me até o térreo a procura da minha avó e tia, mas não as encontro, dou uma volto pelos cômodos, preparo um café com canela e leite. Tinha um cheiro ótimo vindo das panelas sob o fogão. Vovó devia ter ido até a estufa chamar tia Liliana. Caminho até a varanda lateral que dava para o jardim. As luzes estavam todas acessas, titia tinha feito um trabalho incrível, ela realmente era muito boa no que fazia, as cores eram impressionantes, mesmo a noite, a diversidade de plantas e o aroma.
— Perdida dentro dessa cabecinha, novamente? — Me assusto um pouco ao ouvir a voz da vovó, estava tão distraída que nem percebi quando ela se aproximou ou o que ela havia perguntado.
— Desculpa, vovó, não ouvi?
— Perguntei se estava mergulhada dentro dessa cabecinha novamente. No almoço ficou divagando, imersa dentro de si mesma por um bom tempo, estava com o mesmo olhar perdido. — Tinha me esquecido como era conviver com pessoas que me conheciam tão bem. Volto toda minha atenção para ela que estava sentada em sua cadeira habitual.
— Estava pensando em como adoro o cheiro desse jardim e também na Duda.
— Imaginei isso, não a parte em que você adora o cheiro do jardim, isso eu já sabia. — Ela pisca um olho para mim me fazendo sorrir.
— Claro que sim, vovó, a senhora sempre foi muito perspicaz — me inclino e beijo seu rosto. — Vai amanhã para meu jantar de boas-vindas?
— Claro que vou, jamais perderia um banquete feito pelo Gaspar, aquele menino é um talendo — fala animada. — Meu amor, queria te perguntar algo e queria que você fosse sincera em sua resposta.
— Sempre, vovó, minha fase de mentir para a senhora acabou na adolescência — sorrimos as duas, aprontei muito na minha infância e adolescência, era uma rebelde sem causa, vovó teve muitas dores de cabeça comigo.
— Muito esperta. Lys, você voltou para Brasil apenas porque descobriu sobre a doença da Eduarda? Meu bem, você desistiu de uma oportunidade incrível que não se apresenta para qualquer pessoa. Fico preocupada, sei que é sua vida e são suas escolhas, mas não consigo deixar de pensar.
— Descobrir que a Duda estava precisando de mim, foi um dos motivos que me fizeram voltar, mas não foi apenas isso. — Me apoio ao encosto da pequena poltrona antes de continuar, o que eu tinha para falar não era segredo ou nada do tipo. — Senti falta do meu país, da sua comida, dos meus amigos, dessa casa. Amo a música, ela é uma extensão de mim, mas posso tocar em qualquer lugar. Anthony e Val foram incríveis, tenho muito a agradecê-los, sempre estiveram por perto e construímos uma amizade sincera, mas eles não eram minha família de verdade, entende?
— Entendo sim e fico feliz em saber que tomou essa decisão por você e não apenas pela Eduarda. Aquela menina está passando por um momento muito difícil, já carrega muitas coisas nas costas para carregar mais isso. Não faria bem a nem uma das duas, se tivesse voltado apenas por ela. — Ela estava certa, se eu tivesse voltado apenas por ter descoberto sobre sua doença iria criar entre nós duas uma culpabilidade que poderia gerar mágoas, e isso era tudo o que a Duda não estava precisando no momento. Então, consigo compreender claramente o que ela me disse sobre o Gaspar não está mais trabalhando desde que ela iniciou o tratamento, Duda sentia-se culpada, angustiada. Porque na cabeça dela, Gaspar estava abandonando algo que ele trabalhou muito para ter, e ela tinha medo de que se algo acontecesse, talvez ele a culpasse. — Meu bem. — Desperto dos meus devaneios.
— Desculpa, vovó, só estava pensando sobre uma coisa que eu e Duda conversamos.
— Faz isso desde pequena, se perde dentro de si mesma, sua cabecinha deve ser um lugar fascinante. — Ela acaricia meu rosto. — Fico feliz que voltou pelos motivos certos, isso tranquiliza meu coração. Eduarda vai precisar muito de você.
— Eu sei e estarei ao seu lado.
— Tenho muito orgulho de você, da mulher que se tornou apesar de tudo pelo que passou. Sua mãe deveria ter sido mais do que foi para você, pena que minha filha estava ocupada demais mergulhada em sua amargura, para se dar conta da filha maravilhosa que tinha. — Pensar na minha mãe e no egoísmo dela não era o tipo de conversa que eu gostava de ter.
— Onde tia Liliana está? Não a vi desde o almoço. — Mudar de assunto era melhor.
— Na estufa terminando um trabalho para a finalização de um jardim amanhã. Desculpe por ter tocado no assunto, sei como isso a magoa.
— Tudo bem, vovó, vamos esquecer isso, ok? — Não tinha raiva da minha mãe, tinha mágoa, tristeza, mas raiva não. Ela se enterrou viva no rancor e amargura, depois que meu pai nos deixou, o amor às vezes sabia ser destrutivo. — Ela trabalha demais. Depois do divórcio, nunca a vi namorando.
— Precisa saber de algo. As mulheres dessa família têm um enorme defeito. Quando elas amam é algo definitivo. Foi assim com minha mãe, lembro-me bem da paixão maluca que ela tinha pelo meu pai, seu bisavô, foi assim comigo, com sua mãe e com Liliana não foi diferente. — Esse tipo de amor, tão dependente e definitivo, com toda certeza, é algo que eu não quero para minha vida. — Talvez um dia Liliana volte a amar alguém, mas ele tem que ser um homem muito especial. Venha, vamos esquentar o jantar. Não sei você, mas eu estou faminta. Precisa se alimentar melhor, está muito magrinha. — É inevitável não rir com os comentários exagerados da minha avó, eu tinha o mesmo corpo desde os dezoito anos, só que para ela eu sempre estava magra demais.
— Senti tanto sua falta ,vovó. — Beijo seu rosto, enquanto caminhamos de braços dados em direção à cozinha.
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