PRÓLOGO
Prólogo
Fevereiro de 2013
Alyssa
Existem inúmeras maneiras de lidar com o luto. Podemos nos perder dentro de nós mesmos e apagar a existência do resto da humanidade, podemos fingir que não está acontecendo com a gente e que essa pessoa querida que tanto amamos apenas está de férias ou fazer como eu faço, se refugiar.
Acredito que seja qual for sua maneira de lidar com suas perdas, a dor ainda é inevitável.
O dia amanheceu frio, escuro e nublado desde a primeira luz da manhã. Quando ergo minha cabeça para olhar o céu, uma gota solitária de chuva cai em minha face e uma fina garoa começa a nos envolver. Enormes guarda-chuvas pretos são abertos e erguem-se deixando o cenário ainda mais mórbido. Desde que o pastor tinha começado a falar, que eu não escutava nada, só conseguia olhar para o imenso caixão cor mogno a minha frente. Mesmo com os últimos meses que tive para me preparar emocionalmente e psicologicamente para este momento, aparentemente não foi suficiente.
Pela primeira vez desde que me sentei nesta cadeira olho a minha volta, vejo minha tia Laura, mãe da Duda, ela estava a minha direita. Seu semblante evidenciava um cansaço que me era familiar, mas a dor em seu olhar era o que mais se destacava. Ela não era minha tia de sangue, mas era como se fosse. A mulher forte que ela sempre foi desapareceu aos poucos no momento em que ela recebeu a notícia do falecimento da única filha. Essa notícia abalou a todos nós, mas acredito que a dor de perder um filho só sabe quem realmente sente. Minha tia Liliana e minha avó Clara estavam cada uma ao lado dela, segurando sua mão e reconfortando-a. Ambas sabiam bem como era vivenciar essa dor, desvio minha atenção daquele momento, seu sofrimento tornava tudo mais real do que eu conseguia suportar no momento, estava meio entorpecida desde que recebi a notícia.
Vivenciei algumas perdas em minha vida, mas nunca soube lidar muito bem com elas, sempre tentava anular ou agir como se não me afetasse diretamente até que a dor passasse e restasse apenas a saudade ou simplesmente até o tempo passar. Só que a realidade era outra. Ao meu lado Henrique aperta minha mão, tentando me dar apoio. Desvio minha atenção, procuro não olhar para o caixão de madeira no centro de um círculo de pessoas, algumas estranhas, outras conhecidas, olho na direção do pastor ainda declamando seu sermão, ouço um trecho da passagem de Epitáfio. Meus olhos recaem sobre Gaspar com sua família sempre ao seu lado. Seu terno preto sem gravata parecia o retrato do seu humor. Ele estava com o rosto baixo, provavelmente, desejando estar em qualquer outro lugar, uma sensação que eu conhecia bem. Fico encarando-o, ele parece sentir meu olhar sobre ele e ergue a cabeça.
Mesmo ele estando com os óculos escuros estilo aviador, a dor em suas feições era latente, parecia que ele sofria uma dor física aguda, tão forte que chegava a ser insuportável. Talvez não muito diferente do que eu estava sentindo. Porém, quem pode julgar a profundidade desses sentimentos? Quando perdi minha mãe parecia que todo meu corpo tinha sido cortado, cortes profundos, cheguei a pensar que sangraria até a morte. Mesmo que não fôssemos tão próximas quanto gostaria, a dor foi indescritível. Tinha apenas quinze anos na época, mas consegui superar e seguir em frente. Gaspar volta a abaixar a cabeça após alguns instantes, e eu volto minha atenção para o pastor que já finalizara seu sermão.
Depois dos discursos fúnebres e de finalmente o caixão onde jazia Duda descer até a obscuridade do alicerce da sepultura, as pessoas finalmente começam a se dispersar. Permaneço sentada, aguardando o fim da comoção em volta de Laura e de Gaspar diminuir. Henrique beija meu rosto e vai até onde o Gaspar se encontra, os dois eram mais do que sócios, eram primos e melhores amigos. Isabella tinha ficado com a irmã mais velha do Gaspar, não seria sensato trazer uma criança de três anos a um funeral, principalmente pelo fato da pequena ainda não ter um entendimento claro do que significava a morte.
Quando a quantidade de pessoas em volta de Laura diminui, caminho até onde ela está, abraço-a forte e dou meus pêsames. Ela acaricia meu rosto seco, sem lágrimas, eu não usava óculos escuros, não era necessário, eu conhecia a minha dor e não me importava com a opinião dos outros.
— Eu sei. — é tudo o que ela diz antes de beijar minha face e sair amparada por sua cunhada, irmã de seu falecido marido. Sem me explicar o que aquelas duas palavras significavam. Apenas fico observando-a se distanciar e sendo abordada por algumas pessoas que provavelmente queriam lhe dar suas condolências, algumas delas nem conheciam a Duda direito.
— Ela é uma mulher forte, não vai ser fácil, mas ela irá superar. Tenho certeza. — Me viro e dou de cara com minha tia.
— Tomara! — Volto novamente minha atenção para elas, que já entravam no carro, que em poucos instantes começa a se distanciar. — Estou indo pra casa, preciso tomar um banho e tentar dormir um pouco. — voltando a olhar para minha tia, massageio minhas têmporas. — Todos já foram? Onde está a vovó? — pergunto já correndo meu olhar pelo imenso tapete de grama verde.
— Mamãe está falando com a Lívia, ela e Ettore ficaram, os outros já foram. — senti em sua voz que ela queria dizer mais do que disse. — Está sendo difícil para ele! — fala olhando em direção à sepultura, seguindo seu olhar, deparo-me com Gaspar e compreendo a quem ela tinha se referido.
— Está sendo difícil para todos nós, por que está me olhando assim, tia? Pode parar! — falo tentando me desvencilhar.
— Ele precisa de um amigo, alguém que entenda a dor pela qual ele está vivendo.
— Ele tem o Henrique! — falo na defensiva. — Você realmente acha que eu tenho condições de falar com ele neste momento? Eu não consegui derramar uma única lágrima, desde a notícia do falecimento da Duda, sou a pessoa menos indicada para ir falar com ele. — Minha atenção ainda estava nele, Gaspar não estava muito distante, fico apenas olhando. — Não sou uma boa companhia, nem para mim mesma. — Falo com sinceridade sem olhar para minha tia e sem desviar minha atenção do Gaspar.
— Às vezes não é preciso dizer nada, só é necessário que esteja perto. — Ela segura minhas mãos, volto minha atenção para ela. — Lys! Acho que vocês precisam um do outro. E o fato de você ainda não ter conseguido chorar não significa que não esteja sofrendo. — Ela me abraça forte, minha tia me conhecia tão bem, minha avó e ela eram como mães para mim, não sei o que teria sido da minha vida sem elas.
— Talvez o Henrique seja a melhor pessoa para falar com ele neste momento.
— Querida, vá falar com ele! — diz virando-se, indo em direção onde minha avó ainda estava conversando com Lívia.
Volto a olhar para ele, sozinho, olhando para o nada. Parecia que ninguém tinha coragem de chegar perto dele. Ele sempre foi um cara pra cima, romântico, sonhador mesmo não tendo muita paciência para pessoas esnobes e metidas, neste momento parecia que algo dentro dele havia se quebrado. Caminho até onde ele se encontra, assim que estamos lado a lado, o silêncio sepulcral que rodeia o ambiente se intensifica ainda mais. Assim como Gaspar, começo a observar com mais atenção os coveiros finalizando seu trabalho, ele parecia ter perdido a noção do tempo, era como se não estivesse ali.
— Fiquei tão furioso com ela... — ele finalmente interrompe o silêncio. — Por ter desistido. — Seu tom era melancólico e triste.
— Você não acha que está sendo injusto? Ela não desistiu, sabe disso melhor do que ninguém. — Me volto para ficar de frente para ele. — Ela lutou durante um ano, fez uma escolha, mas nunca deixou de lutar. Primeiro pela Isa e por você, depois pela vida. — Gaspar me encara. — Ela escolheu viver seus últimos dias com as pessoas que ela amava, estando lúcida e forte o bastante para ficar presente, ao invés de dopada, com drogas fortes e passando mal a maior parte do tempo. — Ele retira os óculos escuros e me encara com aqueles enormes e avermelhados olhos com uma tonalidade diferente um verde meio dourado ou azulado.
— Eu sei, ainda assim não deixa de ser difícil. Ela é o grande amor da minha vida, minha outra metade. — Nunca tinha conhecido alguém com uma voz tão profunda quando a dele, Gaspar sempre teve uma confiança inabalável. Sempre foi o tipo do homem com plena certeza das suas convicções, com sua postura firme que emanava confiança, mesmo que esse seu lado estivesse apagado pelo luto, ainda estava lá. O amor que ele sente pela Duda é de uma profundidade que assusta, quando estavam juntos, um parecia ser a extensão do outro.
— Sabe, ficar aqui não vai fazer bem a nem um de nós dois, e eu aposto que a Duda ficaria uma fera com a gente — tento colocar um pouco de humor nas palavras, mas não funciona muito bem. — O que acha de irmos para casa ou para o Nixy's? O Nicholas fechou, mas deve estar no apartamento em cima do bar.
— Contanto que você não encha a cara e caia matando em cima de mim para me consolar ou encontre algum ex-namorado babaca e queira me usar para fazer ciúmes, eu topo — ele também tenta ser engraçado, mas sua voz estava apagada. Ele tinha que me lembrar do dia que nos conhecemos, típico.
— Por que insiste em relembrar daquilo? Pelo amor de Deus, meu estômago ainda embrulha. — Falo sem conseguir conter um discreto sorriso.
— Não foi o marco da minha vida, mas é impossível não lembrar. Foi naquele dia que conheci a Duda — ele tenta forçar um meio sorriso que acaba saindo como uma careta.
— Vem! Vamos encher a cara. Aproveitar que a Samara está com a Isa — seguro sua mão e puxo-o em direção ao meu carro. Sabia que ele tinha vindo de carona com o irmão caçula, Mael, então o levaria para casa. Passamos onde minha avó, tia Liliana e seus pais Lívia e Ettore estavam e damos um beijo de despedida em cada um deles.
— Não estou com disposição de encontrar ninguém, Lys. — Fala quando já estamos dentro do carro.
— Eu também não estou, vai ser apenas nós dois, vamos para casa.
— Não quero ir para casa agora, as lembranças irão me esmagar.
— O Nixy's está fechado, não tem ninguém, talvez o Henrique esteja, mas ele é da família.
— Podemos ir para seu apartamento? Não quero ver ninguém, não tenho humor para isso. — ele não desvia os olhos da paisagem que passava pela janela ao falar.
— Claro! Acho que tenho uma garrafa de tequilaem algum lugar. — falo e enquanto seguimos nosso caminho para fora docemitério, vejo um discreto e triste sorriso em seus lábios.
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