Açaí da Nice
O sol ameno de fim de tarde passava longe da barraquinha de açaí de Dona Nice, mas conhecida como Nicinha: dona do melhor açaí do subúrbio.
A voz de Paulo ecoava pela rua pouco movimentada, um vez que os carros e ônibus apressados passavam com baixíssima frequência aos sábados.
— Fala, Nicinha! Boa tarde! — saúda antes de estender a mão para a moça protegida pelo guarda sol embutido no carrinho.
— Fala, Paulo, como é que cê tá? — Sorrindo, ela aperta a mão do rapaz — Como é que tá tua mãe? Faz tempo que não vejo ela por aqui…
— Tamo bem, tamo bem! É que ela tá de dieta…
— Ah, essas dieta…o povo começa com isso e não compra minha comida! — reclama, balançando a cabeça de um lado a outro — Num tô dizendo que tá errado não, eu mesma tô precisano! — acrescenta, gargalhando e exibindo seus poucos dentes amarelados.
— Quê isso, Nicinha, a senhora tá ótima!
— Brigada, Paulo, seu puxa-saco!
Os dois dão altas risadas, e ela repara em uma garota ao lado do conhecido e pergunta: — Sua amiga?
— É!
— Júlia. Prazer — A moça sorri.
— Prazer. — Nice aperta a mão da moça também.
— A gente tava lá em casa fazendo trabalho, Nice, e a Júlia falou pra mim que queria comer uma coisa diferente; como ela nunca provou açaí, eu pensei: claro que eu tenho que levar ela pro melhor açaí da cidade!
— O quê!? — Nicinha arregala os olhos para a garota — Cê nunca comeu açaí, minha filha?
— Nunca.
— Então, o seu amigo esperto te trouxe pro lugar certo! — Nice solta outra gargalhada.
— Gostei dela… — sussura Júlia para Paulo.
— Agora que todo mundo já se conhece, quê que cês vão querer no açaí?
— Vô querê banana, granola e leite ninho. — responde primeiro o rapaz.
Júlia alisa o queixo por alguns instantes e pergunta:
— O que você tem de decoração, pro…pro topo do açaí, Nicinha?
— Ah, eu tenho granola, gota de chocolate, leite ninho, morango, banana, paçoca, "aminduim", calda de morango, "cal" de chocolate, "cal" de caramelo… — Enquanto ouvia com atenção cada acompanhamento, a jovem se interessava pelo sotaque nortista misturado da dona do carrinho.
— Hmm…
— Pode escolhê quantos cê quisé…
— Vô querê morango, banana e paçoca.
— Tá bom.
Dona Nice toma uma colher de sorvete e abre o compartimento do açaí. Enche um copo de 500 ml com quatro colheres do preparado e colocou banana, granola e leite ninho no topo.
— Aqui… — diz, entregando o copo na mão do rapaz. Em seguida, confirma com a outra: — O seu é morango, banana e paçoca, né?
— Isso.
Logo após Nicinha abrir o compartimento do açaí, Júlia a interrompe:
— Pera, só…só uma coisa que eu queria mudá…
— Pode falá…
— Você tem açaí sem xarope de guaraná?
— Sem xarope de guaraná? — questiona, franzindo o cenho.
— É.
Nice encontra o pote transparente de açaí e procura o rótulo, o qual lê espremendo os olhos.
— Eu nunca olho essas letrinha aqui de trás, não, eu compro os que os cliente fala que é melhor…e também os mais em conta, né?
— Posso lê pra senhora?
— Ih, pode, filha. Essas letrinha aí tá é me confundindo! Hahaha!
Os ingredientes listados são: água, açúcar, polpa de açaí, xarope de glucose, corante caramelo IV, estabilizante…
Júlia para por ali e devolve o pote à dona da barraquinha. Forçando um sorriso, revela:
— Então…eu não…é…eu não tô muito acostumada…é… — Júlia corta o contato visual para tentar reformular a frase e logo continua: — …a senhora vê problema de eu pedir só essas coisinhas que vêm em cima do açaí, só que sem o açaí?
— Sem o açaí? Então cê qué só as fruta e a paçoca?
— Isso…não, pera! Sem a paçoca. Só as frutas e…amendoim.
— Certeza, Júlia? — pergunta Paulo, segurando o riso.
— Sim, haha, agora tô certa disso! — responde, sorridente.
Nice refaz o processo do açaí mentalmente: açaí, banana, morango e amendoim, mas sem açaí; banana, morango, amendoim no açaí, mas sem o açaí…
Essa confusão quase gera um erro no pedido. Se a jovem não tivesse intervido, Nicinha teria colocado umas quatro bolas de açaí no copo.
— Agora vai certo! É que quase ninguém pede açaí sem açaí, aí já sabe: a Tia aqui fica toda confusa! — Ela cai na risada novamente.
Assim que Júlia recebe o copo repleto de frutas, entrega dez reais na mão de Nice, que recusa:
— Não, minha filha, quê isso! Cê pediu só fruta, pode me dá cinco.
— Ah, Nicinha, eu insisto, a senhora me tratô tão bem, me deu o pedido que eu falei! Fica com os dez.
— Tá bom, filha, brigada, viu? — Nice sorri, com as bochechas rosadas.
— Foi um prazer, Nice, como sempre.
— Foi muito te ver, Paulo!
— Tchau, Nice! — diz Júlia.
— Um beijo, Jú, foi um prazer!
— Bom fim de semana! — dizem os amigos.
— Pra vocês tamém!
Quando Nice já não conseguia vê-los, se aventurou a comentar para si mesma:
— É…agora a febre é salada de fruta. Vô tê que comprá aqueles potinho redondo, mais colhé pra acompanhá…ai, ai…
A vinda de mais um freguês interrompe seus pensamentos.
— Oi, boa tarde. A senhora vende salada de fruta?
Nice encara o sujeito por alguns milésimos de segundo, sem reação, até responder:
— Vendo, vendo sim.
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