Skiff



O Administrador



Assim que o dia começava no Condutis Rullefort, Vilgort, o administrador do lugar, passava em frente às celas com sua espada curta batendo em cada viga de ferro, fazendo o máximo de barulho possível para que todos acordassem lá dentro. Skiff odiava aquilo, e também começava a odiar aquele homem a cada dia que passava.

Ao ouvir os irritantes barulhos nas grades, prontamente todos os lutadores se levantavam e se aproximavam delas.

Então Vilgort refazia o caminho, mas agora fazendo a contagem matinal em alto e bom som para se certificar que nenhum dos lutadores havia fugido.

Skiff ainda não se acostumara com aquela dura rotina a qual estava sendo submetido, e estava certo que nunca se acostumaria.

Em Beymuth, a primeira coisa que fazia ao acordar, era tomar o desjejum e em seguida levar o de lorde August.

Entretanto, ele havia descoberto da pior forma que em um Condutis não era assim. Lá, os homens tinham que primeiro merecer para depois poder desfrutar, o que acabou por deixá-lo com fome todas as manhãs, pois apesar de não ser um lutador como todos os outros, também tinha que aguardar o final dos treinos para que pudesse comer.

Segundo Vilgort, os treinos matinais com o estômago vazio era a melhor forma de se obter um bom desempenho dos lutadores, já que estavam descansados e leves.

Mas para Skiff aquilo não passava de mais um dos muitos atos de maldade da vil criatura. De dentro de sua grade ele olhou para fora e pôde ver Karum, que já esperava no centro da arena com as mãos repousadas nas costas.

Diferente dos outros lutadores, o homem tinha aposentos especiais e não era obrigado aturar os abusos de Vilgort. Mas de qualquer forma parecia que ele não dormia, já que toda vez que Skiff olhava para o lado de fora assim que acordava, lá estava ele, parado como uma árvore e com um olhar concentrado como nunca havia visto em ninguém.

O jovem beymutita estava muito intrigado com aquele homem. No dia em que chegou achou ser ele o senhor do Condutis, e não um escravo. Mas de fato ele não parecia ser um escravo; pois nenhum escravo teria tanto prestígio com o seu senhor.

Todos os senhores de Condutis usavam administradores letrados e bem vestidos para a compra de escravos, ou eles próprios o faziam, mas por algum motivo o senhor deste Condutis usava Karum, e Skiff havia notado que o fato era a causa do grande ciúme de Vilgort, já que a importante função teoricamente seria de incumbência dele.

Contudo, a decisão do mestre parecia estar dando muito certo, já que o Condutis Rullefort era o que produzia os melhores lutadores em toda Skalun, pelo menos era o que todos eles viviam se gabando.

Karum, apesar de claramente já haver passado dos quarenta anos, mantinha um condicionamento físico invejável. Era alto, esguio e musculoso. Sua pele era escura como o breu, e sua fala era mansa como a de um velho, a não ser que fosse perturbado. Por algum motivo parecia ter uma tristeza permanente no olhar, fato este que não passou despercebido pelo Beymutita.

Skiff descobriu que o mestre do Condutis no qual estava cativo chamava-se Abiran Rullefort, e ao que parecia era um dos mais importantes em Skalun. Provavelmente os homens que havia visto ao lado dele na arena do lixo no dia do primeiro teste eram ricos apostadores em busca de novas apostas, pois notara que eles não se vestiam como os demais em Skalun, então deduziu que não eram de lá.

No longo caminho que os escravos haviam feito até o Condutis Rullefort depois do primeiro teste, Skiff pôde notar como tudo ali era diferente.

Apesar de ser a maior ilha escravagista de Dohan, ele percebeu que havia alguma liberdade nas ruas, pois era comum vê-los transitar para lá e para cá com certa frequência.

A grande verdade era que, fora os novos escravos trazidos pelos corvos do mar para serem negociados na praça das Estacas, raramente se via grilhões pela ilha. Na verdade havia muita movimentação no lugar, tanto de lutadores quanto de escravos comuns, e também mestres e apostadores.

Mas o que havia realmente lhe chamado a atenção naquele dia, fora a visão de dois homens que andavam lado a lado com grandes lanças e vestiam uma armadura bem peculiar; com saias e coletes de aço e uma espécie de capacete em forma de punho. Skiff pensou em perguntar para alguém a respeito, mas pela forma como se vestiam e pelo sugestivo adereço em suas cabeças, deduziu que eram do Punho de Aço.

Depois que o comboio seguiu para o Condutis e ele pôde conhecer um pouco mais a ilha, notou por todo o caminho que havia tantos deles que às vezes era até difícil contá-los. Provavelmente esse era o motivo implícito para que até mesmo os escravos tivessem certa liberdade ali, pois Skiff deduzira que fugir da ilha seria praticamente impossível; e ainda que tentassem, sempre esbarrariam nas centenas, ou quem sabe milhares de homens de aço patrulhando por todos os lados. O Punho de Aço até podia ser uma organização bem rudimentar, mas parecia levar seu lema bem a sério, e de alguma forma Skiff sabia que a instituição o fazia valer para todos.

Ao final daquele dia, eles haviam parado em frente à uma grande grade levadiça e Karum anunciara:

— Chegamos!

Tamanho foi o espanto de Skiff ao ver os grandes muros que se elevavam à sua frente.

Quando a enorme grade foi erguida e todos enfim atravessaram, ele ficou ainda mais admirado.

Um Condutis era uma gigantesca arena de lutas com um formato redondo e inúmeras arquibancadas suspensas em vários níveis por todo seu entorno; Os mais baixos provavelmente eram para o povo comum, que adorava ver sangue. Os mais altos, deviam ser para apostadores e donos de escravos. E no último nível, uma gigantesca casa de onde se tinha uma privilegiada visão de todo o Condutis; certamente o lugar pertencia a Abiran Rullefort.

Na parte inferior havia dezenas de celas, que ele logo supôs serem dos lutadores.

Skiff sentiu-se como um inseto diante de toda aquela grandiosidade.

Pelo menos duas dúzias de guardas com coletes de ferro andavam armados para lá e para cá dentro do Condutis, e em frente a cada cela ele viu inúmeros ganchos de ferro, e em alguns deles, vários homens suspensos por grilhões.

Aquela visão logo lhe arremetera à fala de Karum no mesmo dia:

— Aqui não há espaço para insubordinações nem fugas! Lembrem-se disso!

O homem dissera as palavras encarando cada um dos novos escravos.

Assim que haviam atravessado a arena do Condutis, chegaram à um portão de ferro.

Um guarda o abriu e eles atravessaram.

Skiff notou que era uma imensa sala e havia incontáveis mesas.

Logo algumas escravas começaram a trazer comidas de todos os tipos:

Havia peixes, grãos, carnes e sopas.

Podiam até ser escravos, mas alimentavam-se como donos de escravos, pelo menos era o que Skiff havia pensado.

— Podem comer!

Karum havia autorizado e eles avidamente avançaram.

Hoje, depois de alguns dias ali, Skiff sabia que aquela ocasião havia sido atípica. Naquele dia, enquanto os escravos recém adquiridos comiam à vontade, Abiran Rullefort chegara com alguns guardas atrás de si, e então todos pararam de comer instantaneamente.

— Bem vindos ao Condutis Rullefort! — dissera Abiran. — Aqui vocês aprenderão a ser os melhores lutadores de Skalun! Se me servirem bem, terão as melhores comidas, e quem sabe até mulheres! Mas se me servirem mal... conhecerão um lado meu que nem mesmo eu gosto! — Após a breve introdução ele fez uma pausa. — Mas não quero que fiquem com medo. Os quero fortes, bem treinados e felizes! O Condutis Rullefort tem um nome forte e antigo, e é muito respeitado por toda Skalun! Somente os melhores permanecem aqui, e vocês verão que temos os mais letais lutadores. Treinem duro! Treinem o melhor que vocês puderem... E não me decepcionem! — Após falar ele apontou para Karum. — Este é um dos maiores lutadores ainda vivo. Poucos podem dizer isso. Eu os entrego nas mãos dele, obedeçam em tudo o que ele vos disser e se tornarão tão bom quanto ele, ou próximo disso pelo menos. — Depois de dizer o que queria, ele olhou para a arena. — Em uma semana serão testados de novo... espero ver melhoras em relação ao que vi hoje. — outra vez ele virou-se para Karum. — São todos seus, meu amigo! — Em seguida foi embora com os soldados.

Após terminarem de comer, os guardas acompanharam os escravos até suas celas. Cada um tinha a sua, e eram separadas por grossas paredes de tijolos e argamassa. Provavelmente para inibir planos de fugas ou motins.

Aquilo tudo havia causado certa estranheza a Skiff; Poderiam os lutadores realmente viverem felizes sendo obrigados a lutarem até a morte, como sugerira o mestre do Condutis? Se era assim, então por que todos dormiam em celas e ainda eram contabilizados pela manhã?

Ele tinha o pressentimento de que viria a descobrir.

Sua primeira noite ali não havia sido muito diferente da primeira noite que passara no porão dos corvos, pois sentiu-se tão solitário na sua cela quanto sentiu-se lá, mas ainda assim, nada poderia se comparar aos horrores que havia sofrido em poder dos malditos lixos do mar, e ainda com o agravante de nunca conseguir distinguir se era dia ou noite. Pelo menos na sua nova cela ele dormiria sozinho, sem ninguém para o importunar.

Aquele primeiro dia havia sido tão cansativo e traumático, que assim que entrara em sua cela, adormeceu.

Com toda certeza aquele não era o futuro que o jovem beymutita queria. Ele não era um lutador, não era um assassino, e apesar de ter conseguido escapar da morte com o conhecimento que tinha dos livros, não queria passar o resto de sua vida servindo como escravo. O que queria era voltar para Beymuth, queria voltar para o castelo Redmond, voltar para a Ordem. Mas principalmente, queria voltar para Rikkar de Brunne.

A imagem do jovem Rei lhe dava forças para suportar todas as suas desgraças, mas ele se perguntava: Até quando?...

E então acordara pela primeira vez ali.

As batidas de ferro contra ferro fora algo tão incômodo que ele ficara em pé em um salto. Naquele mesmo dia conhecera Vilgort, o administrador do Condutis. Um homem magro, alto, careca e com um olhar cruel. Seu hálito cheirava a peixe podre e alho. Em pouco tempo Skiff compreendeu que a função dele ali era de suma importância.

Vilgort era responsável pelo perfeito funcionamento do Condutis, e pelo que pôde observar nos primeiros dias em que chegou, apesar de ser um homem odioso, ele o fazia muito bem.

Mas quando o assunto era a compra dos escravos e o treinamento dos lutadores, Karum era a autoridade máxima.

Muitos dias haviam se passado até então, mas todas as vezes em que Skiff era acordado pelo barulho da espada nas grades das celas, sentia a alma fugir do seu corpo. Na maior parte do tempo dentro do Condutis, ele permanecia ao lado de Karum, organizando documentos ou preparando promissórias para serem pagas ao Punho de Aço. Mas quando a tarde chegava, e com ela o segundo treino, Skiff ficava responsável por trazer água aos Lutadores, e logo depois, assim que o treino principal terminava, Karum tirava um tempo extra para ensiná-lo a também manejar uma espada.

O beymutita achava que o homem não havia falado sério em relação àquilo no dia em que o conheceu, mas os calos que vinham estourando em suas mãos lhe mostravam cada vez mais que Karum não jogava palavras ao vento.

Na hora em que o garoto sempre servia água aos assassinos, Vilgort gostava de se aproximar dele, fazendo gestos obscenos com a boca ou com as mãos. Aquilo deixava o beymutita inquieto e amedrontado, mas ele sequer pensava na possibilidade de reclamar com Karum, afinal, o homem não havia feito nada demais.

Tudo que Skiff queria, era passar despercebido naquele lugar. Ele não falava com ninguém e evitava até mesmo sorrir. Esperava que a estratégia estivesse dando certo, mas ao final da contagem desta manhã suas esperanças foram devastadas, Vilgort parou em frente a última cela, a sua.

— Hoje você não vai servir água, menino dos corvos...

Skiff hesitou antes de falar.

— P-Por quê?

Vilgort deu dois passos na direção do garoto e passou as costas da mão em seu rosto com suavidade.

O coração de Skiff bateu descompassadamente e ele afastou-se com timidez; o terror estava estampado em sua face.

— Não tenha medo de mim, garoto dos corvos... É meu amo quem solicita sua presença. Ele precisa de ajuda com alguns papéis.

Ao perceber que em breve sairia da presença do asqueroso homem, o jovem beymutita deu um sorriso de satisfação em seus pensamentos.

— Irei já! — Falou e rapidamente se virou para partir.

— Garoto dos corvos...

Skiff ouviu a voz maliciosa de Vilgort atrás de si. Seu coração voltou a bater forte, e sabia que não havia opção, teria que virar-se para ele.

Hesitante, voltou-se na direção do homem; e novamente o administrador foi até ele e tocou seu rosto.

— Desta vez é Abiran quem precisa de você... — o homem sorriu revelando dentes quebrados e amarelados — Mas muito em breve... Serei eu. — Depois passou a língua entre os lábios e sibilou como uma cobra.

Agora era oficial, o administrador do Condutis era uma verdadeira ameaça; ainda mais naquele lugar em que não passava de um simples escravo. Por um breve momento desejou ser um dos lutadores de Karum. Paralisado ante ao homem, ele não respondeu, apenas ficou olhando-o com medo.

Vilgort ainda tocou seu rosto por mais alguns segundos, mas depois voltou-se para os lutadores e gritou:

— AOS TREINOS, SEUS INÚTEIS!

Lá fora, no meio da arena, Skiff notou que Karum olhava para ambos e apenas analisava a cena no mais absoluto silêncio. Então os Lutadores foram saindo de suas celas e indo em direção a ele.

O garoto aproveitou o momento e seguiu para a grande casa ao encontro de Abiran Rullefort. Mas enquanto caminhava não ousou olhar para trás, pois tinha certeza de que os olhos do maldito Vilgort estavam sobre ele.



Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top