Salazhar


Montanhas do Medo


Quando a noite chegou e todos os convidados já haviam se retirado para os seus aposentos, Salazhar decidiu que a hora havia chegado.

Seu quarto ficava a apenas um lance de escadas do quarto do Dominante, e apesar de saber que aqueles degraus exigiriam muito de sua atual condição, o caminho seria menos penoso que a imensa sala de audiências daquela manhã. Mas a grande verdade era que agora teria que passar por cima de qualquer dificuldade, pois a procura pela chave que abria o alçapão não poderia passar daquela noite; com ou sem dores.

Seus espiões de maior confiança no castelo estavam avisados de sua fuga e os caminhos já estavam preparados, incluindo um barco já devidamente posicionado por um dos homens de Mereniz Touler.

Todavia, ainda que o exótico prato de lampreia com cebolas que levava na mão desse errado como primeira opção de suborno, ainda havia um plano B. Ele faria de tudo para que não chegasse a tal ponto, pois apesar de achar o homem abjeto e asqueroso, tentaria convencê-lo a entregar a chave por boa vontade. Contudo, também havia decidido que o mataria sem pestanejar para que pudesse levar consigo a espada se preciso fosse.

Antes de sair ele entreabriu a porta lentamente e observou se havia alguma movimentação no corredor, e quando constatou que não havia, saiu.

Agarrado ao corrimão da íngreme escada em espiral, o beymutita avançou degrau por degrau, e com muito esforço chegou ao piso superior.

Ele deu uma breve e desconfiada olhada para o corredor antes de prosseguir, e pôde ver que os três imensos lustres dispostos ao longo do caminho que levaria ao quarto do Dominante proporcionariam uma boa iluminação de toda sua extensão, e assim constatou que tudo estava calmo, então pôs-se a andar novamente.

Normalmente, naquela hora da noite, havia pouca movimentação; com exceção dos serviçais que, de tempos em tempos entravam com bandejas cheias, e não muito depois as levavam vazias, mas ele notou que hoje nem isso estava acontecendo; o que achou muito estranho.

Somente as pessoas de maior confiança em todo o castelo tinham acesso àquela ala, entre elas, alguns parentes distantes do Dominante que o serviam ali e alguns de seus mais fiéis conselheiros, como o próprio Salazhar Mouth.

Com o prato exótico exalando cheiro de cebolas assadas em suas narinas e uma faca alocada em sua cintura, Salazhar partiu em direção ao quarto do Dominante.

As paredes do grande corredor eram bem altas e em toda sua extensão havia enormes e largos vasos com grandes Dracenas vermelhas a embelezando. Intercalando com os vasos, as bonitas pinturas com imagens da cidade e belas cortinas azuis escondendo as amplas janelas que iam do teto ao chão, eram dispostas a cada cinco metros até se perderem de vista. Salazhar sentiria falta de todo aquele luxo.

Ele caminhou lentamente pelo belo carpete marrom aveludado que ornava todo o chão, e ao se aproximar do quarto no fim do corredor, notou algo estranho: a porta estava totalmente aberta e sem nenhum guarda na entrada.

De súbito ele diminuiu a velocidade de seu lento caminhar, então se aproximou de forma ainda mais lenta e ouviu vozes.

Não eram as habituais vozes dos conselheiros do Dominante ou de qualquer outra pessoa que conhecesse no castelo, de toda forma não eram estranhas a ele; algo estava acontecendo.

O beymutita habilmente esgueirou-se para trás de um dos enormes vasos e observou com cautela, e então viu os pés dos dois guardas do Dominante caídos no chão, provavelmente mortos. Imediatamente seu coração acelerou.

A conversa dentro do quarto continuava, mas para poder ouvir melhor teria que se esgueirar para um vaso mais próximo.

Ele deixou o prato no chão, olhou com bastante atenção e ganhou coragem para se mover quando percebeu que ninguém transitava pelo corredor.

Seu coração estava acelerado e batia descompassadamente.

Um dia havia sido jovem e ágil, mas agora não passava de um homem de meia idade, gordo e se recuperando de graves ferimentos; manter sua vida era a melhor escolha.

Já por trás do outro vaso, ele tinha uma ampla visão do quarto do Dominante, e seus olhos se arregalaram com o que viu. Ali estavam Hamudd Leyfout, Andrel Finley, os conselheiros de Mikar Noutmander II, o general Ernest Donahill, alguns soldados e Benaffar Binn.

Todos estavam reunidos em volta de uma imensa pessoa, que tudo indicava ser o próprio Dominante, e agora Salazhar já conseguia ouvir o teor da conversa em alto e bom som, mas estranhamente a estridente voz de Mikar II não era ouvida.

Por trás das costas dos homens, Salazhar pôde ver as enormes pernas do obeso Dominante, que se mantinha em silêncio.

— O corpo não estava lá.

Salazhar ouviu Andrel Finley dizer.

— Ele mentiu. — Respondeu a voz monocórdia de Hamudd Leyfout.

— Nós fizemos tudo o que nos foi ordenado, senhor, se ele não foi depositado nas criptas, não sabemos onde possa estar!

Agora a voz era de um dos conselheiros do Dominante, e ela saiu trêmula ao dizer as palavras.

— É verdade, meu senhor, fizemos o que nos pediu, mas acho que o paradeiro da espada foi embora junto com ele.

Junto com ele?

Antes que Salazhar pudesse concluir o pensamento, Benaffar deu um passo em direção ao conselheiro que havia falado, e ao fazer aquilo, o homem concedeu a visão necessária para o beymutita poder ver que o Dominante estava morto com uma lança atravessada em sua boca.

Os olhos de Mouth se arregalaram ainda mais.

Mas o que está acontecendo? Por que eles fariam isso?

— Vocês inúteis só tinham uma única coisa a fazer desde que os pago... Vigiar o beymutita e descobrir o paradeiro da maldita espada! Mas não conseguiram nem uma coisa nem outra! — Mesmo mantendo um tom de voz equilibrado, Benaffar Binn exalava ameaça por sua simples presença.

— E-Ele sabe, meu senhor! Se alguém sabe onde ela está, é o beymutita! — Cacarejou outra das galinhas do Dominante, como o próprio mandatário gostava de falar.

— Então para que vocês me servem?

Ao dizer aquilo, Benaffar olhou de relance para Hamudd Leyfout e em seguida deu um passo atrás. E, como se tivessem acatado um comando direto de um general, os soldados sacaram as espadas e iniciaram uma carnificina.

De repente os oito conselheiros de Mikar Noutmander II começaram a gritar suplicando por suas vidas, e enquanto as lâminas os atravessavam sem nenhuma piedade, eles iam tombando; e depois de alguns segundos, o silêncio.

Salazhar olhava tudo com o terror estampado no rosto, mas logo sua atenção foi tirada daquela cena por inesperados sons de grandes explosões que vinham de fora do castelo. A profusão de sons era tanta que até o fez lembrar das comemorações do dia da unificação em Kimuth.

E, como se fizesse parte de uma reação em cadeia, os sinos de alerta começaram a ser badalados por toda a cidade, e então uma grande movimentação começou por todos os lados, inclusive dentro do castelo.

Salazhar sabia que não se tratava de uma festividade, ele já havia presenciado uma guerra e conseguia diferenciar perfeitamente sons de fogos de artifício dos sons dos barrios lançados pelos navios; Kimuth estava sendo atacada pela baía, como há vinte e cinco anos, e ao que parecia, tudo havia começado por dentro do castelo no momento em que Mikar Noutmander II havia aberto suas portas aos traiçoeiros convidados.

— O que estão esperando? Vão logo buscar o maldito beymutita! — O comando de Benaffar Binn saiu de sua boca como um açoite de chicote, e imediatamente os soldados saíram do quarto do Dominante morto e foram em direção ao quarto de Salazhar; e o homem atrás do vaso não ousou sequer respirar enquanto os soldados passavam por ele.

— Nosso acordo continua de pé, não é? — A pergunta de Andrel Finley soava mais como um pedido a Benaffar que propriamente uma indagação.

Então o misterioso beruíta pôs uma mão nos ombros do general e sorriu.

— Sou um homem de palavra, Andrel. Você terá o governo provisório de Kimuth até que haja uma votação entre todos os lordes kimutitas para decidir quem governará. Eles exigiram isso para me apoiarem a derrubar o monstruoso. Mas não fique preocupado, acredito que tens grande chance de vencer a votação, eu mesmo o recomendarei para o cargo. É melhor jogarmos com jogadores já conhecidos, não é mesmo?

— Tudo bem... Acho que agora não há mais volta, não é? —Finley disse se afastando do toque de Binn.

Benaffar apenas sorriu ironicamente para o general Kimutita.

Agora a teoria de Marec Benneton se confirmava de fato para Salazhar. O homem realmente tinha razão todo o tempo. A viagem que Finley havia feito para Léssia não fora para reafirmar alianças, como queria o Dominante, mas sim para traí-lo pelas suas costas.

Mas na verdade aquilo não surpreendia o beymutita, pois estava claro que mais dia menos dia algo assim acabaria acontecendo.

Ninguém queria que o monstruoso e incapaz Mikar II reinasse sobre Valanthar. O homem pagou o preço por sua ignorância, e agora restava esperar para ver o que iria acontecer dali para frente.

Mas aquilo era assunto para o amanhã, por hora tudo que interessava a Salazhar era a espada.

— Meu senhor, ele não está em seu quarto! — A voz do soldado estava carregada de urgência.

— Procurem-no imediatamente! E não o machuquem, tenho perguntas a fazer.

O soldado assentiu e partiu novamente com outros à procura de Salazhar.

A decisão de sair do quarto naquele momento havia salvado a vida do Beymutita, mas ele ainda corria grande perigo atrás do vaso, por isso também teria que sair dali o quanto antes.

Quando novos sons de explosões ecoaram pelo castelo, pareceram chamar a atenção dos homens no quarto.

A agitação por todos os lados era inevitável, e tudo ia escalando exponencialmente com os gritos lá fora se tornando em choro e desespero.

Certamente as ruas de Kimuth amanheceriam banhadas de sangue, e como sempre acontecia, os inocentes pagariam a conta.

— Você tem que ir, Finley... Tem que proclamar a rendição de Kimuth abertamente o quanto antes, não vai querer perder muitos de seus homens desnecessariamente, vai?

Sem responder a Benaffar Binn, o general Kimutita saiu do quarto levando dois soldados consigo, mas ainda deixou outros com os homens ali dentro.

Para Salazhar agora estava claro que o general kimutita obedecia às ordens do misterioso beruíta, mas aquilo não o surpreendia, pois há muito tempo já conhecia sua forte influência, e pelo que agora podia comprovar, o homem realmente sempre fora a voz ativa do próprio Dominante de Beruhim.

Mas por que meu informante em Beruhim afirmou com tanta veemência que Nêmenas K'leut poderia estar morto? Não consigo entender...

— Donahill. — Binn chamou o comandante. — Quero que comece imediatamente a convocar todos os vassalos kimutitas a prestarem juramento ao governante interino até que haja a votação. Precisamos formar um exército o quanto antes.

— Farei o que me pede, senhor.

— Quantos parentes dessa criatura em idade de governar vocês conseguiram reunir?

— Todos os que importavam. Cerca de vinte homens; sete homens feitos, oito rapazes, e para a minha vergonha, cinco crianças também. Agora não poderão mais reivindicar a cadeira do gordo.

— Não fique assim tão consternado, Donahill. Você sabe que o nome Noutmander era um cancro impregnado nessa cidade há séculos. Ele precisava ser extirpado, e todos ajudaram a fazer isso.

— Eu concordo que o tempo dos Noutmander acabou, só não concordo com os métodos usados para se alcançar esse propósito. Mas acho que agora não faz diferença. Só o que peço é que se lembre do nosso acordo... Quando acabarmos com aquela corja que me pegou desprevenido em Beymuth, eu serei o primeiro conselheiro real. Se já não posso mais comandar as tropas como antigamente, isso é o mínimo que exijo!

— Faça sua parte, Donahill, e terá a palavra de um Rei!

Sem mais questionar, o antigo general saiu do quarto para cumprir o pedido de Binn.

— Onde acha que o gordo realmente escondeu a espada, Benaffar?

Hamudd Leyfout não aparentava sentir qualquer emoção em meio a tudo o que estava acontecendo, ou mesmo parecia se importar com a espada, e se houvesse interesse, não deixava transparecer.

— Não faço a mínima ideia. Achei que ele falava a verdade. — Respondeu Binn.

— Será que o beymutita de alguma forma a encontrou e a deixou com o aleijado?

— Também pensei nisso, e assim que a reunião terminou, a primeira coisa que fiz foi mandar alguém atrás dele, mas meu homem disse que não havia ninguém morando ali há um bom tempo.

— Talvez a baleia realmente tenha falado a verdade e nossos homens apenas não souberam procurar.

— Talvez sim. Não confio nenhum pouco na perícia desses idiotas, é melhor irmos pessoalmente às criptas e averiguar. O inútil balofo disse que ela estava enterrada com o pai, mas não disse que era especificamente com ele, talvez esteja lá em algum lugar da cripta e eles apenas não encontraram.

— Você pode ter razão, acho melhor irmos então. — Após concordar com Binn, Hamudd Leyfout saiu do quarto levando consigo os últimos homens ali.

Antes de também sair, Benaffar andou até o corpo do Dominante morto aos pés da imensa cama e puxou a lança bem devagar. Em seguida limpou a ponta suja de sangue nas roupas engorduradas do cadáver e foi embora.

Todos foram passando em frente ao imenso vaso que Salazhar estava escondido e nem sequer imaginaram que ele poderia estar ali atrás.

Depois que Benaffar enfim passou, Salazhar ainda permaneceu por um tempo. Tinha que se certificar que estava realmente sozinho antes de sair detrás de sua frágil proteção.

Sons bem distantes de aço contra aço insinuavam que havia alguma luta acontecendo dentro do castelo.

Salazhar não sabia ao certo quanta resistência os traidores encontrariam ali, já que o próprio general do exército kimutita havia sido comprado, mas se existisse alguma, com toda certeza seria liderada pelo cão de guarda, Baron.

Ele achou por bem esperar o máximo possível, até que criou coragem e saiu.

O antigo conselheiro entrou no quarto do Dominante com toda cautela e contemplou no chão o corpo sem vida do imenso homem que havia servido por mais de um ano, mas nada sentiu; nem remorso, nem tristeza, nada, apenas indiferença.

Salazhar passou por cima dos corpos dos conselheiros caídos no quarto e começou a procurar o que lhe interessava.

Ele sabia há muito tempo que Binn queria a espada, mas não tinha a vantagem de saber que o corpo de Mikar Noutmander estava escondido em um alçapão na cara de todos; e nem sabia que havia uma chave específica que o abria. No momento aquela era a vantagem do beymutita, e ele pretendia usá-la.

Onde essa criatura poderia ter escondido a chave?

Salazhar revirava todos os móveis, lençóis, tapetes, e nada! Nenhum sinal da chave.

Ele tinha que ser rápido, pois não fazia ideia de quanto tempo permaneceria sozinho ali sem que ninguém o visse.

O homem pensava em todas as possibilidades e já havia procurado em todos os lugares, mas não tinha ideia de onde a maldita chave poderia estar; supondo que ela realmente existia. E então, quando já estava quase desistindo, se lembrou de algo.

Salazhar sabia há muito tempo que, quando mais jovem, o gordo rapaz tinha uma asquerosa mania de esconder comida embaixo de seu colchão para que seu pai não visse.

O Dominante estava determinado a mudar os hábitos alimentares do filho para torná-lo um guerreiro, e durante um bom tempo ele conseguiu, ou pensava que estava conseguindo. Mas a verdade era que desde que Salazhar havia chegado ao castelo, trazia iguarias escondidas todas as noites ao esfomeado, e o que sobrava ele escondia embaixo do colchão para comer depois.

Mesmo após a morte do pai, e ainda que não precisasse mais fazer aquilo, Mikar Noutmander ll mantinha o nojento hábito.

Salazhar foi até o colchão, fez um enorme esforço e conseguiu afastá-lo apenas um palmo do lugar.

Ainda assim sentiu uma pontada em sua cintura ao fazer aquilo, e quando passou a mão em seu ferimento ela voltou empapada de sangue.

O beymutita se sentou e respirou fundo para descansar um pouco.

Ainda estava debilitado para tamanho esforço, mas era fazer aquilo ou sair de mãos vazias depois de ter ficado naquele castelo por todo aquele tempo.

Entretanto, mesmo aquele pequeno arrastar do pesado colchão já revelava que seu esforço não havia sido em vão, pois ali já podia ver restos de comida; algumas recentes, algumas já podres e com bichos.

Salazhar ajoelhou-se ao lado da cama e vomitou o que havia comido nos últimos três dias.

Ele se levantou novamente, limpou a boca, respirou profundamente e arrastou o colchão com toda força de uma só vez.

Agora tinha a visão total da nojenta cena; nem nos chiqueiros dos porcos do castelo havia tanta imundície.

Eram restos de coxas de frango, tortas, manjares e inúmeras manchas que pareciam ser de sopas.

O estômago de Salazhar embrulhou novamente.

Ele pôs um pano no rosto para não sentir todo o impacto que aquele cheiro indescritível lhe trazia, e esforçou-se para não vomitar outra vez.

Com uma faca de jantar que pegou na mesinha de cabeceira, Salazhar começou a cutucar tudo aquilo na esperança de poder encontrar ao menos uma pista sobre a chave, até que um bolinho de favos de mel já apodrecido lhe chamou a atenção.

Ele notou que o gordo tinha dado apenas uma mordida e o colocara ali quase intacto; não podia haver nada mais surreal que aquilo.

Salazhar pegou o bolinho com um pedaço de pano e percebeu que já estava duro como pedra, mas também notou uma pequena fissura em sua base.

Então ele pegou a faca e a enfiou no bolinho. A ponta do objeto pareceu tocar em algo metálico, foi quando ele o partiu ao meio e então viu uma pequena chave prateada.

Tem que ser esta!

O pensamento de Salazhar mais parecia uma súplica.

Ele rapidamente enfiou o objeto em seu roupão, foi até a porta, observou o corredor e quando constatou que não tinha ninguém, saiu.

A sala de audiências ficava na entrada principal do castelo, e o caminho até lá era muito longo para um homem debilitado e com feridas abertas; naquele momento ele rogou aos Antigos que ninguém o visse até lá; contudo, os Antigos não o ouviram, pois assim que ele pôs o pé no primeiro degrau para descer até o nível inferior, um homem o viu e veio em sua direção.

Salazhar assustou-se inicialmente, mas a sorte parecia querer favorecê-lo aquela noite. Era um de seus homens de confiança no castelo, e ele se aproximou do beymutita e o apoiou em seus ombros.

— O que está acontecendo, meu senhor? Há uma intensa luta no porto, incontáveis navios posicionados na baía atirando a esmo, pelo castelo dezenas de soldados mortos, e agora o senhor ferido!!! Pelos Antigos! É uma nova invasão beruíta?

Salazhar não sabia como agradecer aquele apoio, talvez se o homem não tivesse chegado e o segurado, provavelmente teria desmaiado, mas o fato era que não tinha tempo nem forças para responder a quaisquer daquelas perguntas.

— Me ajude a chegar à sala de audiências, Zenon. — Foi tudo o que o beymutita conseguiu dizer.

O homem assentiu e começou a descer com o debilitado apoiado em seu ombro.

Ambos andaram se esgueirando pelas paredes, e só se movimentando quando constatavam que não havia qualquer sinal de agitação.

Por sorte a imensa luta pelas ruas da cidade parecia ter levado para fora todos os soldados que costumavam fazer suas rondas por ali.

Depois de inúmeros e exaustivos passos, Salazhar não conseguiu dizer como havia chegado à sala de audiências, mas o fato é que havia chegado.

A enorme sala tinha duas entradas: uma por dentro do castelo, por onde ele e Zenon estavam vindo agora, e outra por fora, por onde Salazhar havia feito o árduo caminho até a nefasta reunião naquela manhã. Por sorte esta entrada agora estava trancada por maciças portas de ébano polido, eles estavam sozinhos.

— Zenon, puxe o tapete para o lado.

Mesmo sem entender, o homem obedeceu, e depois do enorme esforço que fez ao arrastar os pesados carpetes, para sua surpresa notou que havia um alçapão com portas duplas de madeira com uma minúscula fissura, que parecia ser a entrada para uma pequena chave.

— Como o senhor sabia disso?

— Apenas ponha a chave. — Salazhar disse entregando o objeto ao homem.

Zenon se abaixou e demorou-se algum tempo sobre a porta.

Aquele pouco tempo de espera trouxe receio a Salazhar, mas então ele ouviu um som de chave sendo virada.

— Serviu meu senhor!

Salazhar soltou um longo ar de alívio, depois foi até a parede e retirou uma das tochas que a iluminavam.

— Abra a porta, Zenon.

Sem contestar, o homem obedeceu.

O ar que saiu de lá era sujo e uma visível poeira invadiu o salão.

Salazhar aproximou-se com cautela, mas em seguida começou a descer bem devagar com a tocha na mão. O corredor era estreito demais para que Zenon o ajudasse, então o homem veio logo atrás.

Algum tempo depois, ambos já estavam no final da escada, e ao chegarem no piso do lugar escondido, Salazhar girou lentamente a tocha em todas as direções, notando que havia estátuas espalhadas por todo o lugar. Ao que parecia, eram as estátuas de todos os Dominantes Noutmanders que haviam morrido ao longo do tempo.

Esconder os corpos dos Dominantes mortos naquele lugar se mostrava muito engenhoso, ao passo que nas conhecidas criptas solenes as urnas continuavam vazias. Aquele inteligente estratagema poderia evitar que os corpos dos Dominantes e o que quer que fosse colocado ali com eles fossem roubados.

Salazhar começou a passar a tocha lentamente por cima de cada um dos esquifes de pedras, e pôde ver ali famosos nomes Noutmanders que haviam governado anteriormente, como: Niltehn, Hellion, Mergus, Althir, Zendon, Durhas; de quem Dorendhor havia roubado o sobrenome, e o próprio Durendhor de Brunne, que havia abdicado de seu nome para assumir-se como Noutmander; na urna onde fora depositado os restos mortais do lendário Brunne, o beymutita demorou-se um pouco mais.

A vontade de empurrar a tampa de pedra para o lado e observar o que havia dentro era grande, mas ele sabia que teria que guardar aquela última força para o esquife mais importante: o esquife de Mikar Noutmander, o unificador.

Os dois homens seguiram em frente, passando por todas as lápides dos outrora governantes de Kimuth, mas não se detiveram mais até chegarem ao fim daquele salão, e então uma alta parede se apresentou a eles; mesmo com uma luz parcial, Salazhar pôde ver com clareza a enorme pintura que abrangia toda sua extensão.

Era o desenho de duas montanhas e em sua base havia dois garotos de costas com espadas brilhantes erguidas. Quando Salazhar ergueu um pouco mais a tocha, percebeu que dois enormes seres estavam por sobre as montanhas.

Um arrepio percorreu pela espinha do beymutita. Ele sabia que se tratava da lenda das montanhas Truskini, que provinha de Dohan.

Absorto em seus pensamentos, o homem parecia hipnotizado, até que Zenon o trouxe de volta.

— Olhe aquilo, senhor!

Quando Salazhar levou seu olhar na direção em que o homem apontava, percebeu que na base da parede havia uma espécie de plataforma, onde estava depositado uma grande urna de pedra.

O beymutita andou até ela e a observou fixamente.

— Me ajude a abrir, Zenon.

Assim que os dois homens conseguiram empurrar para o lado a pesada tampa de mármore rajado, o coração de Salazhar disparou.

O corpo de Mikar Noutmander estava depositado nela, abraçando a lendária espada Régia; e incrivelmente parecia ter morrido há poucos dias, tamanho era o estado de conservação em que seu cadáver se encontrava.

— O que quer que eu faça, senhor?

Naquele momento Salazhar Mouth se virou para Zenon.

— Tenho um presente para você, meu amigo, mas o que quero em troca é muito perigoso.

Logo que acabou de falar, Salazhar tirou de seu roupão um pequeno saco e entregou ao homem, que avidamente o recebeu e prontamente o abriu.

— O que quer em troca por tudo isso, meu senhor?

— Quero que me ajude a levar a espada em segurança até a praia solar, lá tem um barco me esperando entre as encostas rochosas. Faça isso e terá outro saco desses quando chegarmos. —O tom nas palavras de Salazhar passava toda seriedade possível, e o homem com roupas simples parecia confiar nelas.

— Considere feito. — Zenon disse com confiança.

E pela primeira vez naquela noite, Salazhar Mouth sorriu.



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