Ronnar


Portão Sul


No ano em que partiu de Kimuth para Beymuth, o jovem Ronnar Kharbrook havia deflorado a também jovem Dénnia Bendher, irmã de um certo Drahel Bendher, que ao tentar defender a honra da irmã, acabou com quatro dentes a menos, o orgulho ferido, e a promessa de um dia se vingar pela irmã e pelos dentes.

À época Ronnar já era quase tão alto quanto agora, mas a ira do irmão ofendido pareceu o ter impedido de notar. E hoje, depois de mais de vinte anos sem se verem, iriam se reencontrar novamente. Drahel havia se tornado o atual Comandante Guardião do portão sul, e o Kharbrook, seu mais novo guardião contratado para encorpar a guarda sul.

Ronnar não tinha ideia do que sairia daquele reencontro com Drahel e sequer pensara no assunto até então, mas não podia negar que estava sentindo certo incômodo em ter que encarar frente a frente o irmão ofendido da bela Dénnia Bendher.

Tebas e as sombras já o tinham apanhado na pensão em que ele vinha dormindo e agora estavam a caminho do portão sul e ao encontro de Drahel.

O grupo foi caminhando a pedido de Ronnar; ele dissera que queria aproveitar o belo alvorecer e também relembrar os caminhos da cidade para matar a saudade, pelo menos foi o que ele disse para Tebas. Na verdade, o que ele realmente queria era o mais rápido possível encontrar qualquer meio de poder chegar ao castelo Noutmander; e andar calmamente perto das altas muralhas era uma ótima forma de fazer aquilo, mas o cunhado não precisava saber.

— Senhor gigante! Senhor gigante!!

De repente os pensamentos de Ronnar foram interrompidos por uma voz infantil, e quando o grandalhão olhou para baixo viu uma pequena menina suja e maltrapilha.

— O senhor pode me levantar bem alto por favor? É que eu apostei com meus amigos que o senhor é tão grande que conseguiria me erguer muito alto até me pôr bem ali na janela da minha casa. — Ela disse apontando para o referido lugar.

— Ela vai lhe roubar, Ronnar. — alertou Tebas.

— Não vou nada, seu balofo! — a menina esbravejou e deu língua.

— Olha como fala! — Disse Tebas sorrindo.

— Vai seu gigante... Por favor... — Insistiu a pequena, ignorando o baixinho.

Ronnar olhou desconfiado para a janela.

— Naquela ali?

— Sim, por favor!!!

A janela parecia ser bem alta até mesmo para o imenso homem, mas só havia uma maneira de ter certeza.

— Está bem. — Ele a ergueu tão alto quanto pôde e a colocou lá. Com toda certeza seus dois metros e vinte e dois de altura o ajudaram um pouco.

— Obrigado seu gigante! — Ela gritou sorridente da janela e depois sumiu.

— Que menina sapeca... — Ronnar sorriu com ternura.

— É melhor olhar seus bolsos, Ronnar. — Tebas mantinha o riso no canto da boca.

— Você não havia dito que Kimuth era a cidade mais segura dos territórios? —Ronnar estava convencido que Tebas estava exagerando, mas só por precaução decidiu passar as mãos em seus bolsos. — Não se preocupe, é só uma garoti... DESGRAÇADA!!! — Esbravejou ao notar que seu dinheiro havia sumido.

— Eu o avisei! Hahaha! — Tebas pôs as mãos na barriga enquanto gargalhava sem parar. — Esqueça isso Ronnar, ganhará o mesmo valor todo dia!

O barbudo apontou em direção à janela e fez uma careta raivosa.

— AINDA VOU TE PEGAR SUA PEQUENA LADRA!!!

Tebas riu um pouco mais antes de voltarem a caminhar.

— Ela não mora ali, não é, Tebas?

O cunhado riu mais uma vez.

— Com certeza não, grandalhão... Hahaha!

Ronnar fungou com raiva mais uma vez e depois seguiu em frente.

O grupo prosseguiu perto da muralha até que começaram a subir uma íngreme e estreita rua que culminava em uma praça conhecida como Praça do Unificador.

Nela havia outra estátua de um homem com uma espada e um escudo, no entanto, esse monumento era pelo menos dez vezes maior que o outro que havia visto noutro dia.

— Você se lembra dele? — Tebas perguntou com certo desconforto na voz, pois sabia que o cunhado nunca esqueceria o homem.

— Eu o vi depois da batalha... — Ronnar respondeu com indiferença.

Se ao menos tivesse conseguido chegar até ele...

A imponente estatua de Mikar Noutmander, o unificador, pairava sobre eles como um verdadeiro deus, como muitos gostavam de o imaginar, mas para Ronnar ele sempre seria aquele que levou destruição a b e a sua família.

De repente Tebas parou.

— Ronnar, meu amigo... me perdoe por falar, mas você está em Kimuth agora, trabalhará em Kimuth, viverá em Kimuth... E aqui, Mikar Noutmander é a figura mais importante para os Kimutitas. Seria prudente não se esquecer disso. Mesmo usando toda a minha influência, foi bem difícil lhe conseguir esta posição, considerando seu histórico com Drahel. — Tebas suspirou. — Não deixe que fantasmas do passado venham interferir em sucessos do futuro, meu amigo.

Ronnar notou a súbita mudança no tom de seu cunhado.

— Você tem razão, Tebas, estou sendo um mal agradecido, vou tentar esquecer o que passou, afinal... voltei pra casa. — O grande homem rangeu os dentes enquanto sorria para Tebas, mas logo continuou caminhando depois de dizer o que o cunhado queria ouvir.

— Não foi ele quem as matou, Ronnar. Tudo se tornou um caos depois dos campos Azuis. Nem mesmo seu amigo Malakar Jones e seus bravos cavaleiros reais conseguiram defender Beymuth, como você bem sabe. Milhares morreram naquele dia, foi realmente terrível o que aconteceu com aquela cidade e com sua família, mas você está vivo, meu amigo, então viva e não procure a morte!

Estou mesmo vivo?

O portão sul encontrava-se não muito depois da praça. Alto e imponente, permanecia ali há séculos, intransponível. Quando se aproximaram dele, perguntou do outro lado:

— Quem vem aí?

— Tebas Kiryátis, coletor do Dominante!

Depois de alguns momentos os portões se abriram, então dois guardiões com elmos quadrados e capas azuis os escoltaram por um longo túnel que levava a uma escadaria em espiral, terminando em frente a uma larga porta retangular, onde pararam.

— Esperem aqui. — Disse um dos guardiões e depois entrou para os anunciar.

Momentos depois a porta se abriu.

— Seus guarda-costas ficam, Kiryátis. — Ordenou o soldado.

Tebas fez um gesto e as sombras permaneceram imóveis, enquanto ele e Ronnar caminharam pela ampla sala de tijolos vermelhos e chão de madeira escura. No caminho passaram por pelo menos mais seis guardiões com elmos quadrados e mantos azuis. Nas paredes, lamparinas queimavam gordura de baleia para alimentar o fogo que iluminava o lugar. Eles atravessaram a extensa sala e se aproximaram de uma mesa com diversos livros espalhados sobre ela

Por trás das luzes amareladas do candelabro em cima da mesa, um homem com um manto azul escrevia alguma coisa em papéis envelhecidos e com a cabeça abaixada.

— Tebas...Trouxe o dinheiro? — Perguntou sem levantar a cabeça.

— Sim. E também trouxe meu cunhado, como havia dito, você se lembra dele, não?

O homem levantou a cabeça e olhou para Ronnar sem demonstrar qualquer emoção.

— Lembro que tinha cabelos, mas pelo visto não diminuiu de tamanho.

O pretendente a guardião deu um passo à frente.

— Senhor Comandante Guardião, estou à sua disposição.

Drahel encarou o alto homem fixamente, levantou-se bem devagar e andou ao redor dele como se o inspecionasse.

Ronnar recordava muito bem da aparência de Drahel Bendher; braços fortes, estatura mediana, cabelos castanhos lisos e escovados para trás, lembrava-lhe vagamente sua irmã; naquele momento foi impossível não pensar na bela Dénnia Bendher.

— Continua forte também. — Completou Drahel, tirando Ronnar de seu breve devaneio do passado. — Vai servir.

— Obrigado senhor, espero poder servi-lo bem. — Disse Ronnar tentando ser aceito por seu outrora desafeto.

O homem o olhou com desdém.

— Não é a mim que servirá, e sim a Cidade Mãe! Eu apenas o pagarei. Se não fosse um Kharbrook nem estaria aqui agora, considerando o lugar em que viveu por todo esse tempo.

— Espero que não haja mágoas entre nós, senhor. — O alto homem tentou amenizar o comentário ácido do guardião.

Em resposta Drahel apenas sorriu, revelando seus quatro bizarros dentes de madeira.

Um desconforto percorreu pelo corpo do Kharbrook, e então Tebas tomou a frente demonstrando evidente nervosismo.

— O-Obrigado por nos receber, Drahel. Viajo para Beymuth em alguns dias e fico feliz por saber que está tudo bem entre você e meu cunhado.

O Comandante Guardião continuava olhando fixamente para Ronnar.

— Não se preocupe, Tebas... ele estará em ótimas mãos, começará amanhã ao anoitecer.

— Pois bem então. — Continuou Tebas, tentando sair o quanto antes daquele lugar. — Já é hora de irmos, conheço uma certa irmã que está louca para ver o irmão. — Disse com um sorriso nervoso no rosto. — Logo depois, ele e Ronnar se viraram para ir embora.

— Só mais uma coisa... — Disse Drahel por detrás dos dois.

Quando Ronnar se virou para olhar o homem, sentiu um impacto tão forte no rosto que o fez cair sentado no chão.

— Fiz uma promessa, Ronnar Kharbrook... e sempre cumpro minhas promessas! — Drahel tinha um sorriso marrom de satisfação no rosto.

Uma nuvem de tensão pairou no lugar, e do chão, Ronnar olhou para o homem com uma fúria inumana, pôs uma mão no cabo do seu machado e o apertou com tamanha força que parecia a ponto de esmagá-lo entre os dedos.

Os guardiões e o comandante rapidamente sacaram suas espadas, enquanto Tebas perdia a voz e parecia ter visto um fantasma de tão branco que ficou.

Do chão, Ronnar continuava a encarar o guardião fixamente, mas depois de algum tempo levantou-se, respirou profundamente, cuspiu um dente e disse: — É justo. — Depois tirou a mão do machado e gargalhou alto.

Todos ali trocaram olhares incertos, mas logo depois também começaram a rir sem mesmo saberem exatamente por que faziam aquilo.

Tebas e Ronnar aproveitaram o momento de descontração para saírem do lugar.

— Pelos Antigos!!! P-Pensei que você fosse nos matar!!! É justo?!! Essa foi boa! — Dizia Tebas com voz claudicante e riso nervoso.

Ronnar não respondeu, apenas massageou o rosto dolorido.

— Drahel é um homem razoável, Ronnar. sei que se darão bem. — Disse Tebas, tentando pôr fim àquilo de uma vez por todas.

— E como anda a bela e doce Dénnia? — Ronnar brincou.

— Nem pense nisso seu grande tolo! — O cunhado respondeu com espanto.

— Só estou brincando, Tebas.

— Não faça mais isso! Meu coração é frágil, Ronnar! Além do mais, até onde sei, ela se casou há dez anos e partiu com o marido para Bérniff, já deve ter pelo menos oito filhos pelo que fiquei sabendo. — De repente Tebas parou e virou-se para as sombras — Moghor, Lauthor, vão buscar os cavalos!

Os homens saíram em silêncio, para logo depois aparecerem montados e trazendo consigo mais dois cavalos marrons. Tebas e Ronnar também montaram e partiram à galope.

Eles cavalgaram pelas ruas estreitas do porto, descendo e subindo ladeiras. Até que saíram em uma larga estrada de barro, onde avistaram imensas plantações de trigo e pimenta no caminho.

Não muito depois, saíram da estrada principal e entraram em um pequeno campo, onde havia dezenas de camponeses arando a terra. Ao passar, Tebas era cumprimentado por todos. Ronnar pôde ver que o cunhado havia prosperado muito desde que o conhecera ainda na juventude, e ele sabia a que preço.

Não muito depois daquele campo, terminava a pequena estrada e começava um muro enorme que cercava uma grande propriedade atrás dele, ali encontraram um largo portão azul de ferro que se dividia em dois.

Ao ver o grupo se aproximando, alguém do outro lado abriu a pequena portinhola na parte inferior e disse com certa euforia:

— Meu senhor, voltastes! — Depois destrancou o portão. — Bom vê-lo, mestre!

— Bom ver você também, Mick. Chame a senhora Kiriátis. — Disse Tebas ao franzino menino com pele clara, olhos puxados e roupas desbotadas, que logo partiu correndo em direção à grande casa azul de dois andares com bonitas janelas em estilo colonial.

— Senhora Kiriátis? Como foi que isso aconteceu? — Ronnar perguntou a Tebas em tom risonho.

— Não a chame assim na sua presença, você a conhece. — Havia certa seriedade na resposta do baixinho.

Momentos depois ela apareceu.

Rondah não era exatamente o que podia se chamar de senhora.

Apenas poucos centímetros mais baixos que seu irmão, formava um casal nada convencional com seu marido Tebas.

Cabelos castanhos e curtos, bem pouco se aproximavam dos ombros, rosto largo e quadrado, com grandes olhos marrons e um nariz avantajado. Vestidos eram roupas que nunca a tinham visto usar. Tinha braços muito fortes para uma mulher e um tronco que fazia inveja a qualquer homem. O que tinha em tamanho e força lhe faltava em beleza e delicadeza.

— IRMÃOZINHO!!! — A imensa mulher bradou ao ver seu irmão. Logo em seguida correu ao encontro dele e o levantou do chão com um forte abraço. — Quanta saudade, meu querido Gigante! — Disse entre lágrimas.

— Que bom revê-la, pequena. Agora pode me soltar. — Ronnar sorriu.

Os Kharbrook eram lendários por seu tamanho e força, e poucos em qualquer lugar conhecido se equiparavam em quaisquer dos quesitos. Haviam sido guardiões do portão sul por muitas gerações, até que a morte de Ronthar Kharbrook, pai de Ronnar, e igualmente grande como ele, havia encerrado essa tradição.

Mas até onde se tinha registro, não existiu em Kimuth ou em outro lugar conhecido, um homem capaz de superar os incríveis dois metros e trinta e dois de Lothar Kharbrook, o irmão mais velho de Ronnar, morto na batalha dos campos púrpuras. Até existia na cidade um velho dizer: grande como os Kharbrook.

— Como foi de viagem? Você se alimentou? E essa boca inchada? Já arrumou confusão? Entre, entre, entre!!! Vamos cuidar disso e depois comer! — Dizia a eufórica Rondah.

Ronnar sorriu e a acompanhou.

Ao entrarem na imensa casa, uma mesa incrivelmente farta já havia sido posta pelos empregados.

— Todos os dias tenho preparado um grande banquete para a sua volta, não queria ser pega de surpresa. Sentem-se, sentem-se!

Eles sentaram-se e começaram a comer.

— Levem comida para as sombras. — Ordenou Tebas aos empregados.

Na mesa havia peixes, frutos do mar, javali e tortas de arenque; era uma infinidade de comidas. Sua irmã vivia uma vida muito abastada em Kimuth, bem diferente dos beymutitas, que comiam bem apenas nas épocas de colheitas, mas no restante do tempo tinham que se virar com o pouco que os Unificados lhes deixavam.

Ronnar pegou um pedaço de pão e começou a comer meio constrangido. Sentia-se mal por estar desfrutando o que a maioria esmagadora dos beymutitas não poderia desfrutar. Contudo, sabia que tinha que se manter forte para que pudesse ajudar o sofrido povo a recuperar um pouco da dignidade roubada.

— Veio para ficar, Gigante?

Ronnar engoliu a comida.

— Sim pequena, não há nada mais para mim em Beymuth.

Aquilo não era verdade, mas não queria magoar sua irmã logo na primeira conversa que teriam depois de cinco anos.

Rondah apertou a mão do irmão com suavidade.

— Somos sua família, Ronnar... e não vamos deixá-lo ir.

Ronnar sorriu.

— Temo que não possa ficar com vocês, Rondah... tenho um trabalho na zona portuária e morar aqui dificultaria minha locomoção, mas estarei sempre presente, não se preocupe.

Rondah era apenas dois anos mais velha que Ronnar, mas depois da morte de sua mãe Naylah, por febre do mar, havia cuidado do jovem Ronnar como se fosse sua própria mãe, até que ele partiu para Beymuth, partindo também seu coração.

— Eu o entendo, irmão, mas saiba que sempre estarei aqui para você. — Ela prometeu. — Agora coma, e prometa-me que não sumirá!

— Claro que não, irmãzinha, fique tranquila.

Depois de comerem, Rondah o levou a um quarto previamente preparado. Quando chegaram lá, Ronnar notou que sua cama já estava pronta. lençóis de seda vindos de Léssia, travesseiros de plumas de faisões, água e vinho na cabeceira. Talvez Ronnar Kharbrook tivesse uma noite de sono como nunca tivesse tido desde sua tragédia. Por um momento vislumbrou um futuro diferente do qual estava disposto a trilhar.

— Você parece feliz, Rondah. — O comentário retórico de Ronnar saiu com naturalidade.

— E estou, irmão. — Ela sorriu. — Mas tenho a impressão de que você quer me dizer alguma coisa.

— Você realmente me conhece, né?

— Sim. E sei que algo está te incomodando.

Ele sentou-se na cama.

— Fico feliz que esteja vivendo tão bem... — Ele fez uma pausa. — Mas não te incomoda saber de onde vem o dinheiro?

Ela sentou ao lado dele.

— Sim, me incomoda. Mas se não for ele, será outro, Ronnar.

— Sim, eu sei disso, mas ainda assim me incomoda. — Ronnar rebateu.

De repente ela pegou na mão dele.

— Depois que você partiu eu fiquei sozinha... Tebas era nosso amigo de infância, e sempre esteve por perto. Quando tive que administrar os bens que nossos pais nos deixaram, acabei metendo os pés pelas mãos e perdi quase tudo. Peço perdão por não ter preservado um pouco pra você.

— Isso não tem importância, irmã. Eu jamais iria querer algo nessa cidade.

— Sim, eu sei disso. — Ela suspirou. — Quando Tebas se aproximou de mim eu estava sozinha e sem saber o que fazer do futuro.

Ele sorriu com tristeza.

— Me perdoe por tê-la deixado aqui. Eu deveria ter voltado pra te buscar.

— Você tinha sua vida e eu a minha, não o culpo por isso. Mas o fato é que Tebas foi o único homem que se interessou por mim, sobretudo, depois de eu ter perdido meu dote. Como você bem sabe... Não sou muito atraente aos olhos. — Ela emitiu um sorriso triste, mas Ronnar sabia que aquilo a magoava desde a infância. — Tebas, acima de tudo, é meu amigo. Ele me ama incondicionalmente... E eu o amo por isso. Por vezes já pedi para que deixasse outro fazer esse trabalho, mas ele sempre diz que o próximo ano será o último... E assim vai ficando. Se eu disser que não gosto do conforto que o dinheiro pode proporcionar, estaria mentindo. Mas a grande verdade é que no final das contas a decisão é dele, irmão, e mesmo que eu não goste, tenho que respeitar a decisão do meu marido.

Ronnar assentiu.

— Você tem razão, tem que ser uma decisão dele, mas se não deixou até agora, não creio que deixará mais. Mas não posso dizer que me sinto confortável em ver meu cunhado ir sempre a Beymuth para sangrar um pouco mais aquele sofrido povo.

— Eu entendo você, Ronnar... — Ela se levantou. — Mas esse assunto terá que esperar um outro dia, por hora, você tem que dormir e descansar um pouco. Que os Antigos te protejam, meu irmão.

Ronnar sorriu e assentiu para sua irmã. Em seguida ela saiu do quarto.

Ele então tirou as botas, pôs seu machado bem próximo a si e rapidamente adormeceu, mas logo iria descobrir que suas expectativas de um boa noite de sono não se concretizariam.

Desde pequeno Ronnar costumava sonhar os sonhos mais estranhos, e eles geralmente tinham algum significado, e naquela noite teve um que estava lhe trazendo angústia: ele se viu em um campo onde havia muitas pessoas plantando, e do meio da plantação levantaram-se duas aves carniceiras, um macho, outro fêmea, e elas começaram a grasnar alto; até que surgiram muitos homens com asas roxas, como se nas pontas delas houvessem facas, e eles começaram a matar todos os trabalhadores. Houve certa luta, mas as pessoas que colhiam estavam em menor número e despreparadas, e em pouco tempo já estavam sendo massacradas sem nenhuma piedade.

Foi então que surgiu um alto homem com asas amarelas que também parecia ter facas afiadas nas pontas, e atrás dele, muitos outros homens com armas em punho. E então, o homem que tinha asas amarelas começou a destroçar os de asas roxas com suas asas afiadas.

Ronnar acordou suado e assustado e pulou ofegante da cama.

Aquele sonho não fazia nenhum sentido. Não entendia o porquê de sonhar com plantações ou colheitas, mas algo lhe chamou a atenção, as cores.

O amarelo dos Brunne, e principalmente, o roxo da Unificação.

Poderia não ser nada, mas poderia ser alguma coisa que não conseguia compreender. Então ele foi até o pote, bebeu água e depois decidiu voltar a dormir.

Ele até se deitou e fechou os olhos na vã tentativa de conseguir adormecer novamente, mas agora a única coisa que via em sua mente era a enorme estátua de Mikar Noutmander empunhando espada e escudo.



Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top