Lenna
Rei
Lenna e Novath Longstrider andavam a passos firmes pelo corredor do palácio Twinter, desviando a cada momento das dezenas de pessoas que iam e vinham sem parar.
A ruiva não lembrava de já ter visto em qualquer outro castelo tamanha movimentação. Isso se devia ao fato de que aquelas antigas construções já não eram apenas as fortificadas moradias para lordes, agora elas haviam se transformado em um quartel general para o rei e toda cúpula militar que o seguia.
Havia Soldados, cavalariços, serviçais e uma infinidade de pessoas comuns que, aparentemente ainda não haviam sido designadas para quaisquer funções até aquele momento, mas perambulavam livremente para lá e para cá.
No dia anterior o rei autorizara todos aqueles que quisessem se juntar a causa a terem livre acesso ao solar. Lenna havia achado aquilo uma temeridade e estava bem preocupada por não conseguirem controlar tamanho fluxo de pessoas estranhas entrando e saindo ao seu bel-prazer, mas apesar de não gostar nada daquela ideia, também não o questionara, pois sabia que aquilo fazia parte do plano dele para tentar trazer todos os remanescentes em Beymuth para o seu lado. Além do mais, o rei sequer ia ao banheiro sem que pelo menos umas cinquenta pessoas o estivessem guardando.
Todos os últimos acontecimentos e o constante clima de guerra acabaram por trazer um distanciamento com Rikkar até então nunca vivido por ela. Não se podia dizer que Lenna não tinha acesso ao rei, pelo contrário, estava presente em todas as reuniões diárias, mas o contato vinha sendo muito impessoal e até um tanto frio por assim dizer.
Todos compreendiam as inúmeras mudanças comportamentais pelas quais o rei passava; ele agora já não era apenas o filho de Reston de Brunne, o protegido da Ordem, agora ele era o comandante que conduziria a massacrada Cidade Mãe à vitória. E esse orgulho que Lenna sentia de seu pupilo era o que a ajudava a compreender que, os laços profundos e sólidos que construíram por anos, momentaneamente precisavam ser enfraquecidos. Rikkar não podia passar a impressão de que não podia tomar suas próprias decisões, por isso ela vinha soltando um pouco as rédeas do seu protegido.
Antes de Rikkar se revelar ao povo, a incerteza e o medo eram a realidade dos beymutitas, entretanto, depois de seu acalorado discurso em praça pública, o sentimento de unidade agora podia ser sentido; uma esperança que a cada dia aumentava e se transformava em boas expectativas.
Ainda que sem a espada Régia, o rei e a Ordem haviam conseguido o objetivo para o qual haviam se preparado por quase dez anos: eles conseguiram unir em seu favor o que restara do castigado povo da Cidade Mãe.
— Já disse que você está linda, irmã?
Lenna voltava a realidade ao ouvir a voz do irmão.
— Você diz depois que entramos nesse corredor? Já sim... Pelo menos mais umas três vezes. — ela sorriu.
— O amarelo sempre lhe caiu bem. —Ele devolveu o sorriso a ela.
— E o que dizer de você, senhor alto cavaleiro de armadura reluzente? Pensa que não notei todos os olhares que o devoraram desde que cruzamos os salões?
E de fato ela tinha razão: uma das dez armaduras remoldadas e lindamente ornadas com o imponente amarelo dos Brunne, caíram como uma luva no belo e alto Novath Longstrider.
Além da coroação do rei, que aconteceria na capela Twinter, Novath e mais nove homens seriam sagrados cavaleiros da guarda pessoal de Rikkar de Brunne, e Jansen Hover obviamente seria constituído o capitão, título que outrora fora de Tim Baker, presumidamente morto desde a unificação.
— Acha que ganharemos esta guerra, Novath? — Lenna mudou de assunto inesperadamente, pegando o irmão de surpresa com aquela pergunta sem resposta.
Ele parou.
— Não fique preocupada, Lenna... Nossas chances aumentaram consideravelmente desde que Zathar confirmou seu apoio. O exército Bérniff encontra-se em nossos portões, assim como sua cavalaria, a cada dia que passa, mais e mais soldados chegam de todos os lugares jurando fidelidade, as muralhas têm sido restauradas desde que tomamos a cidade, os lordes que ainda se mantinham neutros, enfim responderam o chamado de Rikkar e logo estarão aqui para prestarem juramento, e se tudo der errado, ainda temos as misteriosas armas de Martillian. — ele sorriu e passou os dedos por seus cabelos ruivos que teimavam em cair na testa. — Isto é uma guerra, Lenna, em uma guerra nunca há verdadeiramente um lado vencedor. Muitos acabam morrendo para que alguém decida sobre o restante. Não posso dizer se podemos vencer ou não, mas posso afirmar que nossa causa é muito mais digna de ser defendida, e se vencermos, aquele que queremos que nos comande, é muito mais merecedor e justo que qualquer outro, e eu sei disso... — ele encaixou o rosto da irmã nas palmas das mãos e beijou sua testa. — por que nós ajudamos a moldá-lo. — Novath tirou as mãos do rosto de Lenna com suavidade.
— Você tem razão, Novath, acho que é apenas bobagem minha, o tal do sexto sentido tentando me desestabilizar. É que às vezes ainda não consigo acreditar que chegamos tão longe. Aí bate aquele aperto no peito, uma sensação de que algo ruim possa acontecer... — ela forçou um sorriso. — Mas sei que tudo ficará bem.
— Sim, ficará! — Ele concordou. —Agora vamos, ou perderemos a coroação.
— Vamos. — Ela confirmou.
Novath entrelaçou seu braço no da irmã, e juntos eles adentraram a grande capela onde os Twinter realizavam cerimônias religiosas, sagravam cavaleiros e faziam suas orações.
O lugar era muito bonito, com suas pilastras em estilo truskini em ambos os lados, que culminavam em um teto arqueado, onde belas gravuras mostravam mãos atravessando as nuvens. Era a representação de que nada estava fora do alcance das mãos dos Antigos.
O lugar estava totalmente lotado, e o amarelo era a cor predominante no recinto.
No final da capela havia um altar elevado do chão, e para acessá-lo era necessário subir cinco degraus. Lá em cima, já devidamente preparado, estava um Agente dos Antigos: os homens que quando criança eram entregues por suas próprias mães a fim de servirem a Fé Antiga até o resto de suas vidas. Eles perdiam seus nomes de nascimento e passavam então a serem chamados apenas de Agentes da Fé.
Era sabido que Valanthar, antes de ser dominada pelos Brunne, adorava outros deuses na antiguidade. Os antigos habitantes de Lynn, Balkíria e Kraiten, respectivamente Beymuth, Kimuth e Bérniff, sempre foram adoradores de Kuazhar, o deus dos ventos, enquanto Beruhim e Léssia, que mantiveram seus nomes originais, adoravam a Cobra Mãe, a divindade da Água e dos navegadores. Com o passar dos anos, aos poucos Beruhim foi adotando os deuses de seus conquistadores e deixou para trás a adoração a Cobra Mãe, mas Léssia sempre manteve sua firme fé na divindade das águas.
Alguns lugares remotos desses territórios ainda permaneciam firmes adorando seus deuses locais, mas o culto aos Antigos havia ganhado forma por todo continente depois da dominação dos Brunne, e agora, com exceção de Léssia, que sempre se manteve firme em sua fé na Cobra Mãe, era comum que mesmo as grandes e antigas famílias de Valanthar, como os Twinter, mantivessem capelas temáticas em reverência aos Antigos.
O agente da Fé que fora trazido da região aos pés das montanhas Iryárthis era totalmente desconhecido de qualquer pessoa ali. Um homem por volta dos sessenta anos, com cabelos brancos e esvoaçados, usava túnica, luvas e faixa na cabeça, e tudo o que compunha sua notória vestimenta era de cor branca, e, parado em cima do altar, ele já tinha em suas mãos o jarro com o azeite que derramaria sobre aqueles a quem iriam ser consagrados.
Na parte de baixo estavam oito cavaleiros com armaduras amarelas que aguardavam a consagração, com exceção de Novath, que decidira buscar a irmã que se demorava em sair do quarto, e Derick, que já vinha ao encontro deles. Mas a demora dos dois em aparecer, aparentemente valeu a pena, pois quando os irmãos com cabelos de fogo adentraram o recinto, todos viraram as cabeças para olhar.
Para Lenna aquele estava sendo um dia especial, o dia em que ela voltava a colocar um vestido longo, e não as funcionais calças, colã e o sobretudo sem mangas que ajudavam na ágil movimentação.
Sua enorme trança ruiva hoje descia por seu ombro esquerdo, e como de costume sempre terminava na altura do umbigo.
— Não se demore com minha irmãzinha. — Disse Novath, deixando Lenna ao lado de Derick, que parecia fascinado com a visão da mulher.
— Cuidarei dela com minha vida! —Derick prometeu com um sorriso no rosto.
Lenna posicionou-se ao lado do seu amado e sorriu de soslaio.
— Estou feliz que tenha tirado aquela barba de mendigo.
— Você não é a primeira pessoa a dizer isso. — Ele respondeu não conseguindo conter o sorriso.
Sem olhá-lo diretamente, Lenna procurou a mão dele abaixo e a segurou, e ambas se tocaram distribuindo carícias.
— No baile da minha segunda apresentação você vestia uma roupa amarela semelhante a essa armadura que veste agora, lembra?
Derick apertou os olhos com desconfiança. — Eu fui ao seu baile de segunda apresentação? Não lembro...
Lenna imediatamente se virou e o encarou com olhar furioso.
— Ora seu... Seu...
Naquele momento Derick Lancaster ignorou qualquer pudor e a beijou na frente das dezenas de pessoas que ali estavam. Ao findar o beijo ele disse:
— E teria como esquecer a mulher mais linda de Valanthar?
Lenna voltou-se novamente para frente e apenas sorriu, enquanto Derick foi tomar lugar ao lado de seus companheiros.
De repente dois enormes vasos, que se encontravam um em cada lado do altar, foram acesos, e por eles emanaram chamas de fogo.
O Agente da Fé segurou o jarro com óleo com as duas mãos e o ergueu sobre a cabeça. Em seguida fechou os olhos e começou a fazer uma oração aos Antigos. Após findar o ritual ele desceu os degraus.
Os dez homens com armaduras amarelas se dobraram sobre um joelho e baixaram as cabeças. Na sequência o sacerdote veio com o jarro derramando óleo sobre elas.
Assim que acabou a cerimônia, os dez homens se ergueram e se cumprimentaram com sorrisos no rosto. Agora já não eram apenas cavaleiros ou soldados, agora todos eram cavaleiros reais, e compunham a guarda pessoal do próprio rei.
Dentre eles estavam o capitão Jansen Hover, Timothy Cury, Novath Longstrider, Dennis Pennant, Aruel Carmout, Derick Lancaster, e os recém promovidos: Mark Audini, Túlio Beltran, Zakary Follen e o garoto de apenas quinze anos a quem apenas chamavam Jay. Todos pertencentes à Ordem e altamente compromissados com a causa do rei.
Depois desses primeiros procedimentos os cavaleiros reais colocaram seus elmos quadrados e saíram da capela, formando duas filas de cinco.
Minutos depois eles retornaram escoltando o rei, que assim como seus cavaleiros Reais, também usava armadura com ornamentos em cor amarela, entretanto, diferenciava-se pela longa capa da mesma cor e por não ter nada sobre a cabeça.
Os cavaleiros formaram um corredor de cinco homens em cada lado para conduzir o rei, que parou exatamente em frente ao altar, e na sequência já se ajoelhou.
O Agente da Fé parou bem em frente a Rikkar e ergueu a mão pedindo silêncio.
— Hoje começa uma nova era em Valanthar! Uma era de reparação e de justiça! Um tempo em que todos devemos nos unir para alcançarmos um objetivo maior, e essa união se personifica na figura de Rikkar de Brunne! — O homem novamente ergueu o jarro sobre sua cabeça e orou, mas logo na sequência ele derramou o óleo sobre a cabeça de Rikkar. — Você se ajoelhou como menino... Mas agora ergue-se como Rikkar de Brunne... O REI DE VALANTHAR!!! — Ele pegou uma fina coroa de ouro e a encaixou na cabeça do Brunne.
Naquele momento a capela se incendiou com euforia. Rikkar já não era rei apenas na forma de tratamento, ele agora era efetivamente o rei de Valanthar.
Passado aquele momento de frisson, o rei fez um leve assentir com a cabeça, e logo em seguida Zathar entrou com um pergaminho enrolado e entregou a ele.
— Meus amigos... Meus grandes amigos e irmãos! Hoje é um dia de muita alegria, mas também um dia para não esquecermos aqueles que se foram. Aqueles que há dez anos morreram tentando defender sua cidade, aqueles que foram brutalmente assassinados somente por não se ajoelharem diante de um facínora e ditador, aqueles que perderam suas casas, tudo aquilo que com tanto esforço conseguiram, aqueles que perderam suas liberdades, suas vidas... Não podemos esquecer jamais de nossos amigos Ronnar, Iryna, Skiff, Damie Sanders e aquele que tornou tudo possível para que hoje estivéssemos aqui... Não podemos esquecer jamais, August Redmond!!! — Ao percorrer o lugar com seu olhar, o rei pôde ver muitos olhos marejados naquele momento. — Meus amigos... Meus verdadeiros amigos! Todos somos a Ordem...
— TODOS SOMOS A ORDEM!!!
A capela inteira bradou em resposta.
Rikkar esperou até que se fizesse silêncio novamente, e então continuou:
— Lembrar daqueles que se foram é uma forma de honrar suas memórias, de não permitir que seus esforços tenham sido em vão, mas podemos fazer muito mais! Podemos lutar como verdadeiros filhos da Cidade Mãe, podemos lutar pela causa justa e legítima de restaurar a dignidade e a ordem ao nosso tão sofrido povo... E É ISSO QUE FAREMOS!!!
Lenna sentiu um arrepio subir por sua espinha. Não podia expressar sua alegria ao ouvir Rikkar falar daquela forma tão contundente, mas ainda assim, sem nenhum motivo aparente, seu coração continuava aflito.
O rei ergueu uma mão e pediu silêncio.
— Amigos! Quero começar meu reinado pautado na justiça! E por isso, já como meu primeiro decreto, quero reparar um exagero cometido por meu pai em um momento acalorado. — Logo depois que Rikkar falou as palavras, começou a desenrolar o pergaminho que estava em sua mão. Todos os olhos estavam curiosos para saber do que se tratava, então ele falou: — Aproxime-se meu tio.
Derick saiu da fila e caiu sobre um joelho diante do rei.
Rikkar ergueu o papel diante de seus olhos.
— Pelos poderes investidos em mim, e pelos anos de sua dedicação à causa e a minha vida, eu o restituo legalmente à linha sucessória! Você ajoelhou-se um Lancaster... Mas se erguerá como um Brunne! Aliás, como sempre foi!
O coração de Lenna estava exultante de alegria com aquelas palavras. Derick nunca falava abertamente sobre o assunto, mas ela sabia que ele sofria pela decisão extrema que seu irmão havia tomado. Não por apenas voltar para a linha sucessória, e sim por que o fato impedia de ser alguém completo, o impedia de ser quem ele nasceu para ser; um Brunne.
— Está decidido que a partir de hoje até o dia em que eu tiver meus próprios filhos, Derick de Brunne será meu único herdeiro! — O rei concluía ali o seu decreto.
Quando Derick se ergueu, seus olhos estavam marejados. Ele olhou para o seu sobrinho e apenas sorriu em agradecimento.
— Majestade. — ele curvou-se em reverência.
Rikkar tratou de quebrar o protocolo e abraçou seu tio com carinho.
Ao se desvencilhar, falou mais uma vez:
— Vamos todos ao banquete!
As dezenas de pessoas no recinto sorriram e comemoraram a notícia. E um a um foram saindo do lugar, indo em direção ao banquete previamente organizado do lado de fora do palácio, onde estava boa parte do exército e das centenas de pessoas que chegavam indiscriminadamente de todos os lugares.
Definitivamente o clima era de festa, e Lenna Longstrider se permitiu emitir o sorriso mais genuíno naquele dia, ainda que aquele incômodo desconforto em seu peito teimasse em não a abandonar.
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