Lenna
Lenna Longstrider
— Continue, meu senhor, por favor! Não devemos parar enquanto não chegarmos aos cavalos! Novath logo chegará, prometo! — Dizia a bela mulher ruiva em um tom que demonstrava medo e preocupação. Apoiado em seu ombro, o rapaz ferido ouvia as palavras, mas parecia não as entender. — Chegamos muito longe para desistirmos agora, meu senhor, venha por favor, esforce-se um pouco mais! — Insistia Lenna Longstrider.
— E-Estou tentando, m-mas, minha p-perna... não estou aguentando, temos que parar, Lenna.
Ela olhou rapidamente para trás e percebeu que não havia ninguém os perseguindo naquele momento, mas não significava que não viriam, ainda assim arriscou parar, tinha que fazer algo quanto a trilha de sangue que o rapaz deixava atrás de si, por isso pôs o punhal em uma mão e com a outra o ajudou a se sentar.
— Olhe para mim, meu senhor! — Disse segurando o rosto dele com a mão. — Se vossa majestade morrer estará tudo acabado! Tudo pelo que lutamos, entende? Tem que se esforçar um pouco mais!
O rapaz ferido levantou a cabeça e a olhou com ar cansado.
— Estou me sentindo muito fraco, Lenna... P-Perdi muito sangue... Vá sem mim...
Ela sorriu com tristeza.
— Sabe que nunca faria isso. Você é meu rei... É nosso legítimo rei. — Ela pegou o bonito lenço verde preso em seu pescoço e o cortou com o punhal, em seguida amarrou forte na perna do rapaz para tentar estancar o sangramento. — Levante-se, meu senhor, por favor!
Ele olhou com espanto para a ruína que estava sua perna, e em seguida olhou para Lenna mais uma vez.
Ela já presumia que ele não conseguiria se erguer, mas de alguma forma o rapaz conseguiu reunir forças que pensava não possuir mais.
— M-Me ajude por favor. — Ele disse estendendo a mão para ela.
Lenna esboçou um sorriso orgulhoso e o ajudou.
De repente sons de aço tilintando foram ouvidos não muito longe de onde estavam.
A chuva, que momentos atrás era apenas uma ameaça no horizonte, havia se concretizado e agora caía grossa e constante, escondendo parcialmente atrás de si a leve silhueta de homens lutando ao fundo.
Relâmpagos que cortavam os céus, por breves momentos revelavam a figura de Novath Longstrider, que bravamente enfrentava três inimigos armados com espadas e escudos.
Em um esforço sobre humano, o ferido enfim conseguiu levantar-se apoiado em Lenna; que apesar de ser magra, era forte; uma jovem, formosa e forte mulher.
Com quase vinte e cinco anos, Lenna tinha uma beleza impossível de não ser notada: longos cabelos ruivos entrelaçados que desciam até sua cintura e olhos de um profundo azul celeste, o que a tornava similar a uma figura angelical, ocultando perfeitamente sua verdadeira natureza assassina.
— Deixe comigo! — Disse Novath Longstrider com voz cansada.
Lenna espantou-se ao ver o irmão subitamente ao seu lado, e ele ajudou o ferido a subir no cavalo.
Como um fantasma surgira atrás deles, silencioso e mortal com sua espada bastarda pingando chuva e sangue.
— O que aconteceu com o rei? — Novath perguntou com espanto ao perceber o sangue no chão.
— Nos pegaram desprevenidos. Por sorte conseguimos fugir. Mas tudo o que importa agora é sairmos daqui irmão. — Ela respondeu.
Ele assentiu com seriedade.
Apesar de ter nove anos a mais que Lenna e ser homem, podia se dizer que Novath era versão masculina de Lenna. Não fosse sua alta estatura que a ultrapassava por quase dois palmos, uma barba espessa e curta da mesma cor, que o fazia parecer uma figura austera e carrancuda, seriam facilmente confundidos por irmãos gêmeos.
Os mesmos olhos, o mesmo tom de cabelo, mas não os sorrisos; Novath Longstrider quase nunca sorria, ao contrário de sua bela irmã, que sorria demais, como ele sempre fazia questão de lembrá-la.
Até onde Lenna se recordava, Novath tinha sido seu pai, mãe, irmão e mentor. Eram profundamente unidos por laços fraternais e de amizade que os tornavam inseparáveis, vinha sendo assim desde o assassinato de seus pais, quando há muito tempo ainda eram uma família nobre e rica.
— Onde eles estão? — ela perguntou com apreensão.
— Olhe você mesma, irmã, mas não se demore muito, pode haver mais. — O ruivo respondeu enquanto desamarrava seu cavalo na baia.
Lenna semicerrou os olhos e pôde ver os três corpos na lama quando um relâmpago clareou a noite chuvosa.
— Monte no cavalo, Lenna, não temos tempo a perder. — O irmão a apressou, e ela prontamente obedeceu, para logo em seguida partirem a galope.
Em pouco tempo não viam mais as grandes estátuas de barcos cruzados que anunciavam a entrada de Vilamar atrás de si, nem tão pouco viam as grandes labaredas de fogo, que momentos atrás subiam aos céus com imenso furor vindas do quarto onde estavam.
Somente quando já haviam colocado uma boa distância entre eles e o perigo, diminuíram o ritmo.
— Vamos para o leste. — Anunciou Novath.
— Não íamos para Bérniff? — Perguntou Lenna meio desconcertada com a informação.
— Ainda vamos. — O irmão respondeu sem se virar enquanto cavalgava — Mas primeiro temos que sair daqui o mais rápido possível. Depois acharemos uma rota alternativa para lá, senão será fácil para os unificados nos encontrarem. Se é que realmente eram unificados. — Ele externalizou o pensamento.
Lenna refletiu sobre o assunto. A possibilidade levantada pelo irmão também havia passado imediatamente por sua cabeça, mas não era hora para conjecturas, agora o importante era sair da estrada e da vista de qualquer um que os pudesse identificar. Por isso apenas incorporou o silêncio de Novath e continuou cavalgando firmemente.
O rei trotava ao lado dela com o rosto empalidecido e sem emitir qualquer som. O ferimento em sua perna parecia ser mais grave que aparentava, a julgar pela quantidade de sangue que teimava em sair de lá, deixando uma trilha vermelha no caminho atrás de si.
Lenna esperava a oportunidade de enfim poderem parar para que pudesse fazer uma melhor avaliação. Também queria conversar com o irmão a fim de tomarem uma decisão conjunta sobre prosseguir viagem ou retornar ao castelo Redmond.
No atual estado do rei, achava melhor retornarem ao castelo, e tentaria convencê-lo disso. Além do mais, ela tinha uma forte suspeita de que os homens que os atacaram, realmente não eram mantos púrpuras, como o próprio irmão também parecia pensar. Possivelmente eram assassinos contratados se passando pelos mesmos. Mas se não eram unificados, foram contratados por alguém que conhecia a Ordem, e isso implicava em traição.
Assim que pararmos...
Os Unificados, ou mantos púrpuros, como eram mais comumente conhecidos, eram os soldados ordenados pelos unificadores para manter a "paz" em Beymuth depois da queda da cidade. Ou pelo menos era o que todos eles diziam de si mesmos.
Em sua grande maioria eram mercenários ou pessoas de origens duvidosas, mas seus capitães sempre vinham de famílias com posses, e o general comandando todas as tropas era Ernest Donahill, um dos mais leais a Mikar Noutmander, o homem que foi o grande arquiteto da traição a família real Brunne.
Mikar havia morrido há alguns meses, antes que fosse oficialmente coroado rei de Valanthar. O fato havia mudado tudo dentro do continente, mas ainda assim, o resiliente Donahill permanecia na mesma posição em que seu superior o havia colocado durante todo esse tempo, mesmo depois de sua morte.
Todos sabiam que o homem era uma criatura dura e cruel com quem ousava desobedecê-lo, e também era o elo que ainda mantinha o acordo firmado por seu falecido suserano com os outros Dominantes. Ninguém sabia o que aconteceria em Valanthar depois da morte de Noutmander, já que em todos esses anos ele não fora oficialmente coroado e o cargo de rei estava vago, e nenhum dos Dominantes se manifestava sobre o que fariam, mas Donahill continuava incólume na posição em que fora colocado por Mikar Noutmander, e sem dar qualquer sinal de que faria algo diferente.
As perguntas que todos vinham se fazendo ultimamente eram: será que ele devolveria de bom grado o controle da cidade aos quatro Dominantes para que resolvessem a questão? Será que simplesmente entregaria o comando a Mikar Noutmander II, o filho obeso e enfermiço que ninguém respeitava e que havia se autodeclarado Dominante-mor de Valanthar? Ou ousaria manter para si o território com todas as questões complexas que o seguiam? A verdade é que ninguém tinha resposta para essas perguntas.
Porém, se ele realmente ousasse tomar a cidade de vez para si, havia um complicador na questão:
Fora estabelecido no grande conselho após a unificação, que cada território forneceria um contingente de soldados de não mais que dois mil homens para compor as tropas unificadas em Beymuth. Vez ou outra muitos navios chegavam com mais soldados de cada território, mas logo uma remessa com a mesma quantidade voltava com eles, pois jamais poderiam ultrapassar o número que fora estabelecido. Isso limitava consideravelmente as possíveis pretensões de Donahill, pois se tentasse dar um golpe de estado, era certo que os outros Dominantes chamariam seus homens de volta imediatamente.
A verdade era que ninguém sabia o que se passava pela cabeça do recluso Donahill, mas para a resistência escondida nos interiores do castelo Redmond, conhecida como a Ordem, nada disso importava. Tudo o que realmente queriam era poder cortar fora a cabeça de Donahill, retomar a cidade e entregá-la ao último descendente do rei Reston de Brunne, que agora cavalgava ferido ao lado dos irmãos Longstrider.
Lenna não conseguia pensar em outro mandante para o ocorrido dessa noite, senão no próprio Ernest Donahill. Mas se realmente foi ele, quem teria lhe passado informações tão sigilosas? E por que simplesmente não mandou um grande destacamento para acabar com todos de uma única vez?
Para além disso, o que mais vinha incomodando Lenna era que tais informações realmente tivessem chegado aos ouvidos de Donahill através de alguém que fizesse parte da Ordem.
Todos esses pensamentos voavam na cabeça da ruiva como um rodamoinho, e ela os tentava encaixar de uma forma que fizesse algum sentido, mas a verdade era que não passavam de ilações e talvez nem valesse a pena encher a cabeça do irmão com tantas suposições, por isso decidiu ser mais prática.
— Não temos nada no Oeste, irmão, e Zathar nos espera em Bérniff, esqueceu? — Ela tentou lembrar Novath do plano original em encontrar o filho do Dominante de Bérniff e seu possível exército.
— Não disse que não iríamos, irmã, mas o fato é que nosso caminho a leste pode estar comprometido agora. Devemos fazer uma rota oposta para despistar quaisquer possíveis perseguidores, e depois retomamos o caminho original. Não podemos arriscar ainda mais a vida do rei. Além disso, temos que encontrar ajuda para cuidar do ferimento e encontrar alguém de confiança para enviarmos uma mensagem o mais rápido possível para a Ordem, e só então poderemos retomar o caminho. Tenho certeza que Zathar irá compreender se nos atrasarmos alguns dias.
— Eu insisto, não há nada no Oeste. Como poderíamos encontrar qualquer tipo de ajuda lá? Só há montanhas, Novath! — De repente ela ficou pensativa sobre o que o irmão realmente estava tentando dizer. — Não!!! Você não está querendo dizer que está nos levando para... Martillian, não é?! — Ela falou com expressão horrorizada. — Ele foi banido! E com razão! Nem sabemos se ainda está vivo! E se estiver, ele não pertence mais a Ordem, não acho prudente, irmão!
— Não se trata de prudência, Lenna. Se Rikkar não chegar até Martillian, e logo, não irá sobreviver por muito tempo. Não podemos levá-lo à um curador nas redondezas, temo que de alguma forma ficariam sabendo, mas se conseguirmos encontrá-lo, tudo poderá ser diferente. Estamos aos pés das montanhas, é o caminho mais óbvio.
— E-Eu ainda estou aqui, Novath... e p-posso decidir por mim mesmo. — Interveio Rikkar de Brunne com voz pesarosa.
— Perdão, meu senhor, — Novath olhou meio constrangido para o seu rei. Deu-se conta só naquele momento que ele estava bem ao seu lado. — Não quis desrespeitá-lo. Só queremos tirá-lo daqui em segurança o quanto antes.
— V-Você tem certeza que Martillian está vivo? E se estiver... — O rei olhou diretamente para o rosto de Novath. — Poderá me ajudar?
O cavaleiro não sabia ao certo se Ednand Martillian estaria vivo ou morto depois de cinco anos vivendo nas montanhas, mas a verdade era que eles não tinham escolha; atrás os unificados, Bérniff Longe demais para chegarem a tempo de serem ajudados, não havia opções, tinham que tentar aquele plano louco.
— Não posso afirmar com certeza se ele ainda vive, meu senhor... — Novath olhou de soslaio para a irmã. — Mas se estiver vivo, não conheço outra pessoa que teria sequer a chance de poder ajudar, senão aquele velho alquimista. Acredite em mim, se houver uma chance, por mais remota que ela seja, seu nome é Ednand Martillian. — Ele concluiu com firmeza.
Rikkar de Brunne olhou sua perna ferida por um momento e respondeu:
— A-Ao Martillian então.
Lenna observou que o corte na perna esquerda do jovem soberano era realmente profundo, mas mesmo assim ele ainda conseguia manter uma coragem e determinação digna de um rei.
A atadura improvisada por ela já estava totalmente ensopada, e nem de longe havia conseguido conter o sangramento que fluía do corte; e a cada novo trotar do cavalo, ela percebia que seu olhar aos poucos ia se tornando mais e mais pesado.
Ainda que não gostasse do novo plano, a decisão havia sido tomada pelo próprio Rikkar de Brunne, e agora só restava fazer suas preces aos Antigos para que os protegessem.
Resista, Rikkar...
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