Iryna
De Volta a Vida
— Acorde! Venha comigo!
Quando Iryna abriu os olhos, logo reconheceu a voz de Jasnic Sommier. O homem pairava à sua frente ereto, com uma expressão de urgência e segurando uma tocha acesa.
— O... O que está acontecendo?... — Ela perguntou levando a mão ao rosto, na tentativa de amenizar um pouco a claridade que a estava incomodando. — Quanto tempo faz que e-estou aqui?
— Não temos tempo, o Dominante a espera. — Ele ignorou a pergunta e entregou algumas roupas que trazia à mão.
— P-Para onde? Onde estou? Por que ele me espera?
— Se vista, no caminho te explico tudo.
Iryna passou as mãos pelo corpo, e então percebeu que estava seminua deitada na cama, mas as cordas que a prendiam haviam sido cortadas. Foi quando notou que seus pulsos estavam bastante feridos. Ela fez uma expressão de dor como se somente naquele momento a começasse sentir. Em seguida ficou em pé e cambaleou para direita quase caindo no chão, mas Sommier a segurou. O movimento que o homem fez ao segurá-la, levou as chamas da tocha a serpentearem pelo quarto, revelando corpos inertes pelo chão. Aparentemente eram homens, e vestiam longas túnicas vermelhas.
Naquele momento uma vaga lembrança veio à mente de Iryna: eram os homens que Hamudd Leyfout havia ordenado que a envenenasse todos os dias em sua ausência, mas agora jaziam mortos com um inúmeras perfurações pelos corpos.
Ao olhar para os seus tornozelos, ela viu que as mesmas marcas que se formaram em seus pulsos também estavam presentes ali.
— P-Por que está me ajudando?... — ela olhou nos olhos de Sommier. — está mesmo me ajudando?
Ele não respondeu, apenas se abaixou e ofereceu as calças masculinas para que ela enfiasse as pernas.
Ela aceitou meio desconfiada e apoiou as duas mãos no ombro dele, mas em seguida firmou-se em pé e vestiu as calças.
— Agora a parte de cima. — ele disse já enfiando o braço dela na peça de roupa.
— Agora começo a recordar... este quarto é o mesmo que ele me manteve preso... — ela constatou. — Mas quanto tempo faz que estou aqui... E por que estou conseguindo me lembrar dessa vez?
Depois que a vestiu, Sommier pegou o rosto dela com uma mão e o posicionou frente a frente com o seu.
— Me escute, você está nesse quarto há quase um mês, e diariamente tem sido ministrado em suas veias inúmeras doses do mente limpa, até que hoje surgiu o momento e a oportunidade de tirá-la daqui.
— Que momento? Ele ordenou isso? É algum tipo de brincadeira cruel?
Sommier percebeu que Iryna ainda estava muito desorientada, então simplesmente a apoiou em seu ombro e a ajudou a caminhar, mas de repente ela o empurrou para longe.
— Espere! V-Você! Estou me lembrando... Você estava lá no dia em que ele me dopou e me trouxe pra cá! Agora eu me lembro! — ela correu até a cômoda onde Leyfout preparava seus venenos e pegou um castiçal com uma vela apagada. — Não vou a lugar nenhum com você! Vai ter que me matar primeiro!
Ao perceberem a agitação dentro do quarto, dois guardas entraram com espadas desembainhadas.
— Quer que a peguemos, senhor? — disse um deles.
— Não Karmel, não há necessidade, ela só está confusa, podem sair, deixem que eu resolvo.
Os homens se olharam desconfiados, mas logo em seguida guardaram as armas e saíram.
— Escute, Iryna, não quero lhe matar. Pense um pouco: você estava amarrada, desacordada, vulnerável. Sei que está tudo muito confuso agora, mas se me deixar, posso explicar.
Iryna o olhava com raiva enquanto segurava o castiçal na altura do ombro.
— Seja rápido, você sabe muito bem que daqui não erro sua cabeça.
— Tudo bem, tudo bem... Eu vou me sentar na cama e vou te contar com calma. — ele sentou-se lentamente olhando-a nos olhos. — Escute Iryna, as coisas não saíram da forma que eu desejava, mas quem sabe agora não possamos enfim nos ajudar.
— O que quer dizer com nos ajudar?
— Lembra-se da noite que a conheci? Quando ainda achava que era um homem?
— As lembranças estão voltando aos poucos, mas sim, desse dia eu consigo me lembrar.
— Você deve ter imaginado que eu não fui à tenda daquele homem ganancioso à toa, não é mesmo?
Ela balançou a cabeça em afirmativa.
— Pois bem. — Ele continuou. — A verdade é que assim que ouvi falar da chegada de um exímio atirador de facas beymutita em nosso território, imediatamente comecei a planejar uma maneira de chegar até ele para pôr em prática algo que há muito venho planejando.
— E o que seria?
— Matar Hamudd.
Iryna manteve uma expressão apática. Era como se já imaginasse algo daquele tipo desde a primeira vez que viu Sommier.
— Você é só mais um daqueles homens gananciosos a procura de poder, não é?
— Sei que é o que parece, mas afirmo que não é o caso desta vez. Saiba que não a escolhi apenas por conta da sua perícia com as facas, mas também acreditei que você teria a motivação necessária para executar a missão, tendo em vista que você é beymutita e Hamudd Leyfout foi um daqueles que ajudaram a destruir sua cidade. Primeiramente eu tentei seduzi-la para ganhar sua confiança e aliar-se a mim, mesmo sem saber quem você realmente era. Mas o plano foi frustrado por conta da pessoa a quem incumbi essa missão.
— Me seduzir? Do que você está falando?
— Allana. Ou como ela se apresentou a você: Annya.
— Annya... — Iryna tentava forçar sua mente a recordar da pessoa, pois tinha certeza que a conhecia.
— Eu a conhecia há muito tempo, por isso a enviei para conquistar o jovem e atraente beymutita atirador de facas assim que ele chegou em Léssia, o que não seria nada difícil para Allana, pois ela sempre conquistou a todos, inclusive a mim. A missão dela seria seduzi-lo e convencê-lo a assassinar Hamudd, contudo, desta vez, ao invés de conquistar, ela quem foi conquistada, e o mais inacreditável, mesmo depois de saber que você era uma mulher.
— Annya... — Iryna continuava forçando suas lembranças na tentativa de encontrar ali o rosto por trás daquele nome.
— No dia posterior ao que fui na tenda de Mítrick Mautner para contratar a trupe, ela veio até mim e disse que não podia mais fazer aquilo. Eu percebi que ela estava muito nervosa e amedrontada por algum motivo, mas não quis dizer qual. Então apenas lhe dei um bom dinheiro e ela foi embora.
— Annya! — naquele momento Iryna acabara de recordar tudo sobre a bela morena lesinense, então uma lágrima escorreu por seu rosto e ela baixou o braço com o castiçal. — Annya... Onde ela está? Eu quero muito vê-la, não me importo se ela tentou me enganar, mas eu preciso vê-la!
— Agora entendo por que Allana não conseguiu continuar... — De repente Iryna se sentou na outra cama em frente à Sommier. — Também gosto da garota, Iryna, e gostaria muito de poder dizer onde ela está, mas aquele dia em que ela veio falar comigo, foi o último em que a vi.
Kiméria... De repente Iryna lembrou-se da conversa com a lesinense, e por algum motivo achou melhor que ela realmente tivesse partido para o outro lado do mundo, pois sabia que tinha razão em temer por sua vida.
— Allana... Então o nome dela é Allana... — Iryna dizia o nome como se não tivesse ouvido todo o resto.
— No momento em que percebi que Allana não conseguiria prosseguir com o plano, mesmo antes dela desistir de fazer o que pedi, pus meu segundo plano em ação, mas ele também se mostrou um verdadeiro desastre desde o início.
— Segundo plano? Do que está falando?
— Antuir Von Clasnitt.
— O soldado beberrão?
— Sim, esse mesmo. Mas ele nem sempre foi um soldado, e nem sempre foi beberrão. Sua casa sempre foi vassala da minha, e apesar de humilde, é de origem nobre e antiga, mas quando Antuir assumiu o legado depois da morte de seu pai, pôs tudo a perder com a água rubra, como você já deve ter percebido. Eu apenas o mandei contratá-la para assassinar Hamudd, assim como tentei fazer com Allana, mas como também deve saber, ele não fez nada disso, pelo contrário, apenas tomou seu dinheiro e a fez perder tempo.
— Estou me lembrando... Ele me deu duas chaves.
— Existia sim duas chaves, e com elas você deveria entrar nos aposentos de Hamudd e arremessar uma de suas facas no coração dele, mas nenhuma das que Antuir te deu eram verdadeiras. Ele enganou a nós dois. Ao invés de te dar o dinheiro que eu dei a ele, ainda tirou o seu, e o pior, depois ainda tentou me chantagear, dizendo que contaria tudo ao meu primo se eu não lhe desse mais dinheiro. Então tive que jogá-lo nas celas e mandei cortar sua língua e seus dedos para que não me entregasse. Cometi um erro terrível ao confiar nele, e por pouco não perdi minha vida. No passado ele foi meu amigo, mas se algum dia teve qualquer afeição por mim, realmente ficou no passado.
Iryna ficou calada por algum tempo. Parecia estar remoendo toda aquela informação. Era tudo tão irreal, mas ao mesmo tempo tão verdadeiro. A cada momento que passava ela se dava conta de que realmente vivera tudo aquilo que o homem à sua frente estava falando.
— Mas por que fez tudo isso ao invés de simplesmente vir logo até mim? Por que usou Allana e aquele homem? Se tivéssemos conversado entraríamos em um acordo, pois eu de graça mataria o desgraçado do seu primo se soubesse o que ele fazia com as crianças.
— Eu sou uma das únicas pessoas em toda Valanthar que realmente conhece quem meu primo é de verdade, e talvez o único com coragem e os meios para tentar pará-lo, não poderia simplesmente ir até você, tinha que usar outros para chegar ao objetivo. — Jasnic suspirou. — Eu tento matá-lo há anos, Iryna, mas não podia simplesmente fazer, tinha que ser outra pessoa. Se eu fosse acusado e condenado, mesmo com a morte dele, Léssia cairia em caos, pois somente eu conseguiria encaminhar os acontecimentos posteriores para que minha cidade voltasse novamente a ter seu verdadeiro governante de direito.
— O que quer dizer com isso? — ela perguntou com uma sobrancelha erguida.
— Algo que em breve você verá por si própria. — ele disse de forma evasiva. — Até a noite do casamento eu não sabia o que se passava entre você e Antuir. Para todos os efeitos vocês haviam firmado o acordo e em breve Hamudd estaria morto. Eu até o recompensei com um novo cargo por isso. Estava tão confiante que tudo estava certo, que até iria cumprimentá-la discretamente por sua grande perícia com as facas depois de seu número, mas inexplicavelmente você sumiu assim que desceu para as cozinhas do castelo.
— Voltei logo depois, mas você não percebeu. Lembra da ruiva com vestido azul?
Sommier arregalou os olhos.
— Claro... Como não desconfiei... Como consegue mudar tão drasticamente de personalidade?
— Me diga você.
— É justo. — ele esboçou um meio sorriso. — O fato é que eu fui enganado por Antuir tanto quanto você. Depois do casamento eu fui confrontá-lo, e quando enfim ele não teve mais como negar, tentou me extorquir, mas tudo acabou mal para ele, como você deve lembrar.
— Sim, disso eu lembro. — Iryna falou com olhar passivo, enquanto lembrava de Hamudd encima do homem, o perfurando sem parar como um animal ensandecido.
— Escute, — ela chamou a atenção dele. — desde que despertei estou tentando entender o que está acontecendo. Você me diz que queria matá-lo, mas a verdade é que até agora não sei se está me ajudando ou me levando para a forca, só te peço que me tire dessa agonia de uma vez por todas.
— Você tem toda razão. Sei que em sua cabeça tudo deve estar uma bagunça.
De repente Iryna se lembrou das crianças.
— Nelay! Onde ela está?
— Não se preocupe, ela está bem, se recuperando, assim como os outros. Logo irá vê-la. Esses dias ruins ficarão para trás, prometo. — Iryna não respondeu, apenas pôs-se a lembrar do rosto inocente da menina na cama ao lado, até que a voz de Sommier a trouxe de volta. — A guarda pessoal de Hamudd era muito fiel a ele, é bem verdade, mas ele só tinha uma parte do castelo lhe servindo com dedicação, a outra parte nunca aceitou o que o filho fez com o pai, eu sou um desses. — Foi só então que Iryna se deu conta de que todos aqueles corpos no chão eram realmente verdadeiros. Sommier suspirou. — Hamudd é cruel e sanguinário. Um homem com muito poder e que não tem nenhum limite. Alguém tem que pará-lo.
— Você fala em pará-lo, mas o vi naquela noite com o maldito Fausto.
De repente Sommier sorriu com ar de tristeza.
— Você tem razão, Fausto não valia nada. E sim, era ele quem sequestrava as crianças e as entregava a Hamudd, mas você interpretou mal minha presença ali naquela noite. Eu não estava lá para ajudar Fausto a raptar mais crianças, se foi o que achou.
— E por que foi encontrá-lo no píer àquela hora da noite?
— Provavelmente pelo mesmo motivo que você... Para dar fim àquele desgraçado.
Iryna se ajeitou na cama a fim de observar melhor o rosto de Sommier. E ali, mesmo com a pouca luz emitida pela tocha, pela primeira vez realmente pareceu notá-lo.
Apesar de não ter os mesmos olhos verdes do primo, a semelhança entre os dois era notória. O mesmo queixo quadrado, o mesmo tom de pele bronzeada, os mesmos pelos saltando do peito, somente seus cabelos eram diferentes: os de Hamudd eram levemente ondulados e compridos, enquanto os de Sommier eram encaracolados e mal se aproximavam dos ombros.
— O que aconteceu com Fausto? — Ela perguntou esperando ouvir algo bem ruim.
— Na verdade você me ajudou bastante quando matou os seguranças dele. — Sommier sorriu com o canto da boca. — Joguei o desgraçado vivo no rio com uma pedra amarrada em seus pés.
Iryna estava satisfeita com a resposta.
— Enfim... — ele continuou — depois que sumi com Fausto, Hamudd ficou muito desconfiado de eu ter me ausentado do castelo justamente na mesma noite em que o homem desapareceu, pois ele sabia que eu não suportava a maldita criatura. Como eu não tinha certeza se você havia morrido no píer, mandei meus homens procurá-la por alguns dias na beira da praia, mas não a encontraram. Então fui pessoalmente a sua procura na trupe, mas assim como eles, também não a obtive sucesso. Talvez você tivesse pensado que todos já sabiam quem você realmente era e então sumiu, mas a verdade era que somente eu e meus homens sabíamos do fato. A forma como você matou os homens do Fausto com suas facas naquela noite, apenas me deu mais certeza de que eu deveria contratá-la, mas como não a encontrei, deduzi que você realmente havia morrido com os ferimentos dos dardos do último homem do Fausto. Até que, para minha imensa surpresa, você reapareceu nos portões vestida de mulher. Devo dizer que fica muito melhor vestida de mulher. — ele esboçou um sorriso. — Se meu plano tivesse dado certo e você tivesse atravessado o coração do meu odioso primo, agora ele não teria levado o exército lesinense para uma guerra sem sentido. A grande verdade é que fui tolo duas vezes por delegar essa missão a outros, mas agora está feito. — ele suspirou. — Hamudd nunca declarou abertamente, mas eu sei que sonha em ser rei de toda Valanthar.
— Se o Dominante levou o exército para lutar contra o rei e a Ordem, para quem está me levando senão para ele?
Sommier estendeu a mão para ela.
— Não disse que veria por você mesma? — ele levantou-se. — Venha comigo.
Mesmo desconfiada, Iryna pegou a mão do homem e se levantou.
Já do lado de fora, ela percebeu que estavam em uma enorme sacada, há pelo menos quinze metros de altura, e por toda a sacada havia pelo menos uma dúzia de corpos de guardas, indicando que acabara de acontecer uma luta. Ela relutou em aceitar a cena, pois ainda não tinha certeza se era real ou não.
O mente limpa...
Enquanto andavam vagarosamente pela sacada, Iryna pôde contemplar os imensos e belos jardins do Dominante abaixo de onde estavam. Era uma infinidade de cores em diversos tipos de plantas diferentes. Muitas delas a beymutita sabia que eram prejudiciais e até mortais. Era estranho associar um monstro como Leyfout àquelas plantas, mas a grande verdade era que no final tudo fazia sentido, pois, ambos tinham beleza e também letalidade.
— Sinto muito que tenha passado por tudo isso. — Sommier retomou a conversa.
Iryna olhou para o rosto dele enquanto andavam. Naquele momento os olhos negros de Sommier não emitiam nenhuma emoção, bem diferente do intrigante homem que conhecera na tenda de Mitrick Mautner.
Eles entraram no castelo e desceram alguns andares, até que chegaram no mesmo lugar onde ela havia esfaqueado Hamudd.
Ao longe, em uma mesa de ferro pintada de branco estava uma figura encurvada e envolta por grossos lençóis, como se estivesse sentindo muito frio; o que Iryna achou muito estranho, pois em Léssia o inverno não existia.
Quando ela se aproximou a não mais que cinco metros, percebeu que era um homem idoso, e que tomava algum tipo de bebida bem quente.
Sommier puxou uma cadeira para ela sentar assim que alcançaram a mesa, mas ele próprio permaneceu em pé.
Foi quando o idoso ergueu a cabeça e então Iryna arregalou os olhos.
— Louvo a Santa Cobra Mãe por sua vida, minha jovem... Se tivesse sido envenenada por tanto tempo quanto fui, provavelmente estaria na mesma condição que eu.
Iryna olhava estupefata para Devon Leyfout, o pai de Hamudd, o verdadeiro Dominante de Léssia.
— O-O senhor está bem? — Perguntou com incredulidade, pois em sua lembrança agora só vinha a última imagem que havia visto no dia em que o conhecera: a imagem de um homem velho e esclerosado que não sabia nem se sentar sozinho.
— Bem? — ele meneou com a cabeça trêmula. — estou vivo, acho que já é o suficiente... — A voz do homem ganhava tons dissonantes à medida em que falava; horas mais baixos, horas mais altos.
— A guerra nos trouxe uma oportunidade que não podemos desprezar, Iryna. — Sommier interveio na conversa, mas ela só tentava entender como aquele homem à sua frente conseguira recuperar o juízo. — A última ordem que Hamudd delegou a mim antes de partir, foi que eu monitorasse o acólito diariamente enquanto ele aplicava o veneno em suas veias, até que você estivesse em estado catatônico e só conseguisse dizer sim ou não. Depois que você chegasse a esse estado, ele ordenou que eu pessoalmente a levasse até Beymuth, onde provavelmente está com o exército agora, para que ambos se casassem perante o maior número de testemunhas possíveis e dissesse um sonoro sim abertamente para que todos ouvissem. Porém, o que eu não esperava, era que nas anotações de Hamudd eu encontraria a fórmula para o antídoto do mente limpa. Então, hoje pela manhã, munido de uma coragem que achava não possuir, reuni os homens mais fiéis ao meu tio e tomei o castelo sem tantas dificuldades. Primeiro administrei no meu tio, e logo depois em você, mesmo sem saber exatamente o que aconteceria. Mas para minha enorme e gratas surpresa, ambos recuperaram as consciências. Contudo, meu tio ainda sofre as consequências por ter sido exposto ao veneno por muito mais tempo. Essa era uma oportunidade que não poderia perder. Não era o melhor plano, mas era isso ou sofrermos com a possibilidade do meu primo vir a se tornar rei. Ele levaria o caos a todos, Iryna...
— Lutaremos para que isso não aconteça, Jasnic. — disse Devon Leyfout com sua fraca voz.
— Sim tio, Lutaremos.
O idoso assentiu e em seguida bebeu um pouco mais do líquido em sua caneca.
— Por que Hamudd faz tanta questão de que eu me case com ele na frente de todos? — perguntou Iryna.
De repente o Dominante de Léssia largou sua caneca e levou seus olhos cansados em direção aos da moça.
— Se os Unificados ganharem a guerra, Hamudd tentará expandir o território lesinense para muito além dos seus limites, eu mesmo o ouvi dizer em alguns raros momentos de lucidez, mas se por alguma eventualidade perderem, ele dirá que foi obrigado a estar nela pelas circunstâncias outra vez, assim como fez há dez anos. De uma forma ou de outra, em qualquer das situações, meu filho terá a simpatia do povo ao saberem que a neta do honrado August Redmond se casou com ele por "livre e espontânea vontade". Sua fama como um homem pacífico e avesso a guerras corre por todo o continente, e isso não levanta suspeitas de suas reais intensões. — Devon tomou mais um pouco do líquido quente. — Mas o que o povo não sabe, é que eu sempre fui fiel ao reinado Brunne, e me opus veementemente à ideia da unificação. Então Hamudd me trancou em uma cela, ajudado por homens que deveriam me proteger e começou a me envenenar. Ele sempre foi um garoto muito cruel e sem sentimentos. Quando criança espalhou diversas mentiras sobre mim que perduram até hoje, creio eu. Ele nunca aceitou muito bem a morte da mãe. Em sua cabeça eu fui o culpado por não conseguir salvá-la da febre-do-mar. Havia breves momentos durante todos esses anos do meu cruel suplício em que eu ameaçava retomar a consciência, mas ele ministrava doses ainda maiores e me trancava outra vez em um quarto escuro e fedorento. Nunca entendi por que ele simplesmente não me matou... Talvez a satisfação em ver meu sofrimento diariamente fosse maior que minha morte rápida.
— Todos os homens que ainda se mantiveram fiéis ao meu primo nesse castelo, agora estão mortos, podemos enfim concluir o plano. — Disse Jasnic, tentando trazer o assunto para o presente.
— Qual é esse plano afinal, Jasnic? — Perguntou Iryna, notavelmente espantada com tudo o que acabara de ouvir sobre Hamudd Leyfout.
— Como havia dito: a ordem que meu primo me deixou foi que a levasse até ele para que se casassem assim que você não tivesse mais consciência de quem era, o que seria possível nesse momento, já que os dias necessários para que o mente limpa a tomasse por completo haviam se cumprido. Então, no momento em que você estivesse apta a somente obedecer a comandos, eu deveria levá-la pessoalmente até ele. — Sommier a encarou com malícia. — E é exatamente isso que pretendo fazer, se você aceitar.
Iryna enfim começava a entender onde os dois estavam querendo chegar.
— Querem que eu vá até ele, mas obviamente não é para me casar.
De repente uma expressão de tristeza passeou pelo rosto do idoso.
— Nenhum pai deveria ter esse tipo de sentimento em relação a um filho... Mas Hamudd precisa ser parado...
Iryna ergueu seu olhar para Sommier e notou que a feição dele voltava a ter o tom sombrio de momentos atrás, mas depois voltou-se para o Dominante e aprumou-se na cadeira para ouvir o que ele diria a seguir. Então uma lágrima de profunda tristeza começou a rolar pelo rosto enrugado do sofrido senhor à sua frente, foi quando ele começou a tremer seus finos lábios e deixou as palavras escaparem:
— Quero que vá até o meu filho... E o mate.
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