Iryna



Jardins



O sol já despontava no horizonte quando Iryna enfim avistou o castelo Leyfout. Repousado no alto da colina das Flores, sublime e impenetrável há séculos, as bandeiras vermelhas com imagens da Cobra Mãe, tremulavam altivas nas imponentes muralhas, e dentro delas poderia estar a possível solução para os problemas da Beymutita. 

Pelo menos esse era o pensamento que ela colocara na mente; agora restava saber se as ininterruptas horas de cavalgada haviam realmente valido a pena ou não. Um pouco de confiança e esperança havia lhe retornado com a visão da imponente construção, e ela só rogava aos antigos que sua sorte também não tivesse afundado junto com suas moedas e facas no rio.

O que fizera na noite anterior fora perigoso e altamente arriscado, contudo, o cavalo roubado o havia levado em um curto tempo às imediações do castelo e logo chegaria aos portões, e se tudo ocorresse como planejava, poderia atravessá-los em pouco tempo. 

Ela cavalgou lentamente e se aproximou com toda a cautela, e quando estava há poucos metros dos portões, percebeu que nas ameias havia soldados com espadas e capas vermelhas nas costas, assim como em toda a extensão da grande ponte levadiça deitada sobre o largo fosso, que proporcionava passagem para dentro do castelo.

Não ficara dúvida que o Dominante presava muito pela segurança, e ela começava a achar que entrar no lugar seria mais difícil do que imaginava; e pôde comprovar isso quando chegou ao início da pesada ponte deitada, pois mesmo antes de descer do cavalo, percebeu que os guardas já cochichavam e riam entre si ao notarem sua presença. 

Contudo, Iryna estava cansada e com fome, e também determinada a não ser parada por nenhum guarda e suas habituais zombarias. 

— Opa!!! Onde pensa que vai, moça? 

A simples indagação de um deles já a havia deixado irritada. Suas feridas haviam se reaberto com a queda da noite anterior e agora latejavam devido à longa cavalgada, ela realmente não estava disposta a perder mais tempo que o necessário com aqueles homens, por isso foi direto ao assunto:

— Hamudd Leyfout me espera. — Ela disse em um tom seco e conciso. 

— Não sabia que o Dominante fodia putas agora.

Eles riram. 

Iryna lançou um olhar furioso ao homem que proferiu a ofensa.

— Também não sei se ele fode, mas se você não me anunciar agora mesmo, quando o encontrar direi do que me chamou. 

Ao ouvir as firmes palavras da mulher, o soldado ficou temeroso e empalideceu. 

— V-Você está falando sério mesmo? Realmente conhece nosso Dominante?

— Pessoalmente! E tenho convite aberto para visitá-lo quando quiser, mas não poderá comprovar isso se ficar aí perdendo tempo me interrogando. 

Apesar de estar confiante em suas palavras, aquele princípio de conversa com o homem já estava a deixando nervosa. 

Tudo vai dar certo! Tudo vai dar certo!

— Escute aqui, mulher... — Um guarda com um ralo bigode preto interveio. — Eu sirvo no castelo do Dominante há pelo menos cinco anos e não posso dizer que já o vi pessoalmente, então estou me perguntando... Como você, com o vestido manchado e rasgado e com esse cheiro de puta de estrebaria poderia conhecê-lo?

Foi só naquele momento que Iryna pareceu notar seu atual estado:

Sua peruca estava suja e meio torta, em sua pele tinha poeira entranhada por todos os lados, seu vestido, apesar de ter sido feito de um tecido de baixa qualidade, ainda era apresentável na noite anterior, mas hoje pela manhã não passava de trapos velhos, não condizentes com seu nascimento e sua beleza; como se apresentaria nesse estado ao Dominante?

Contudo, ela sabia que não havia opção, teria que passar por cima de todas as dificuldades para poder atravessar aqueles portões.

Quando fora necessário, havia cortado os longos cabelos loiros bem curtos, se vestido como homem por meses e convivido com o asqueroso Mitrick Mautner por um propósito maior; não seria aqueles estúpidos guardas com aquelas acusações preconceituosas que a fariam desistir.

— Estive no casamento de Lorde espinhoso, e o próprio até dançou comigo! Depois encontrei o Dominante nos jardins suspensos do castelo, foi onde me convidou, diga tudo isso a ele e tenho certeza que permitirá minha entrada imediatamente, pode acreditar!

— Mulher... — O guarda do bigode ralo tinha um quase imperceptível sorriso no canto da boca. — Agora você foi pega na mentira! É sabido que Hamudd Leyfout nunca sai do castelo. A não ser que seja estritamente necessário! A baleia espinhosa já havia casado outras vezes e ele não havia comparecido em nenhuma das ocasiões, mas agora você vem dizer que dessa vez nosso Dominante esteve no casamento, que você dançou com lorde Espinhoso, que falou com ele, e que ainda foi convidada por ele para estar aqui hoje? 

— Sim. Foi exatamente isso o que aconteceu, mas se vocês não anunciarem minha chegada, como deveriam fazer, ele nunca saberá! E quando eu o encontrar novamente em outra oportunidade, ele vai querer saber o porquê de sua convidada não ir visitá-lo, assim como ele queria. —De repente Iryna desceu do cavalo. — Acreditem em mim, o Dominante me conhece e me aguarda! Mas sou uma pessoa de bom coração, e se vocês pedirem desculpas e forem agora fazer seu trabalho, garanto que ele não saberá que um guarda com um bigode ridículo e outro com bafo fedorento tentaram barrar minha passagem!

De repente sons de gargalhadas foram ouvidas por toda extensão da ponte e até em cima das muralhas.

Então os dois soldados se olharam confusos diante da altivez da mulher. 

Tudo que Iryna queria era causar alguma incerteza nos homens, e parecia ter alcançado esse objetivo, já que eles não responderam e apenas ficaram se olhando sem saber o que fazer.

— Perdoe meus companheiros, moça, eles não têm a delicadeza necessária para lhe dar com uma dama, ainda mais uma tão bela quanto você. — Disse um terceiro guarda, que era magro e alto, e com uma postura pouco comum para um simples guarda de portão. — Tenho certeza que eles não queriam ofendê-la, mas o fato é que não nos foi passada nenhuma informação sobre sua chegada. 

— Eu agradeço sua gentileza. Não é todo dia que encontramos pessoas com a sua estirpe. — Logo após dizer as palavras, Iryna olhou de soslaio para os dois primeiros homens com quem havia conversado, mas logo fitou o esguio guarda a sua frente outra vez. — Eu entendo sua preocupação, afinal, você só está querendo proteger seu Dominante, e eu respeito isso. 

— Moça, também respeito sua coragem em vir aqui no meio de todos esses homens mal educados e falar com tanta intrepidez, e posso lhe garantir que tentarei entregar a mensagem. Contudo, infelizmente tenho que avisá-la: se fizer um de nós abandonar seu posto à toa, haverá consequências. 

Iryna não esperava menos que aquilo, mas permaneceu com um olhar altivo e demonstrando toda confiança do mundo. 

— Não farei você abandonar seu posto à toa, confie em mim.

O guarda gentil deu uma longa olhada na mulher, depois saiu de sua posição de sentinela e já se preparava para adentrar os portões do castelo, mas antes de atravessá-los voltou-se para ela e perguntou:

— A quem devo anunciar? 

A beymutita demorou-se em responder. 

Rogava aos Antigos que seu plano desse certo e que Hamudd Leyfout realmente se lembrasse dela e da conversa que tiveram. 

— Diga que é Iryna Hunt, e que está na hora dele descobrir se ele é uma rosa ou um espinho.

— O que isso quer dizer? — O guarda perguntou meio confuso. 

— Apenas diga, é muito importante.

O homem deu um meio sorriso e enfim partiu em direção ao castelo. Até que muito tempo depois retornou, e junto com ele estava Jasnic Sommier, o homem que havia levado uma de suas facas, que possivelmente havia mandado matá-la, e que estava envolvido com o desaparecimento das crianças.

Iryna sentiu um arrepio tomar seu corpo. 

Ele se aproximou dela e a analisou dos pés à cabeça. 

— Interessante... Você me lembra alguém, mas não me recordo de quem. 

— O Dominante me Aguarda. — ela disse confiante, e sem dar muita importância ao comentário.

— Sim, de fato ele a aguarda... Só não sei o motivo ainda, mas não creio que irá me contar, irá? 

— Posso seguir em frente, senhor? — Iryna perguntou ignorando o questionamento de Sommier. 

Em resposta, o homem fez um aceno aos guardas, e eles foram até ela e a revistaram em todos os lugares. 

— Ela está limpa, senhor! — Um deles disse. 

Sommier olhou novamente para a mulher. 

— Você é Beymutita, não é? 

A sensação de impotência dominou Iryna naquele momento. Para ela, a conotação que a pergunta do homem lhe trazia, era a de uma afirmação que ele sabia que falava com Dhemer Mornoff. 

— É algum crime ser de Beymuth? — Ela respondeu vacilante. 

Sommier sorriu. 

— Não, é só azar mesmo. 

— Posso seguir em frente? — Ela perguntou novamente. 

— Venha comigo. — Sommier falou e se virou.

Iryna o acompanhou em silêncio por todo o caminho até o castelo. Não tinha certeza se o homem a havia reconhecido ou não, e tinha menos certeza ainda para onde ele a estava levando. 

Ao adentrarem as portas do grande salão, os soldados ao longo do caminho cumprimentavam Jasnic Sommier de forma respeitosa. Ele tinha uma constante expressão zombeteira no rosto, mas também mantinha uma postura ereta e imponente ao caminhar. E agora, à luz do dia, Iryna percebia que ele era muito parecido com Hamudd Leyfout, e aquilo era algo muito incômodo para ela.

Eles passaram pelos corredores do salão de bailes, mas acabaram saindo novamente do castelo, e então o contornaram pelo lado de fora e foram parar nos jardins da ala norte. 

Mesmo distante dava para ver que era enorme e muito belo, com inúmeros chafarizes espalhados por toda sua extensão. Provavelmente era o lugar que Hamudd havia mencionado para ela.

Ao se aproximarem um pouco mais, Iryna pôde perceber a infinidade de plantas e o festival de cores que elas produziam. Entre elas havia pelo menos trinta pessoas espalhadas podando galhos, regando raízes, e eventualmente as colhendo. E pelos corredores, pelo menos seis homens com túnicas vermelhas e lábios roxos os observavam em silêncio, como se os tivessem supervisionando. Ela sabia exatamente que aqueles eram os tais acólitos, e aquilo a deixou apreensiva.

Ao erguer seu olhar, Iryna notou que bem no meio do imenso jardim havia um grande bangalô branco, com muitos bancos acolchoados e uma poltrona ornada com couro vermelho e detalhes em dourado. O entorno do lugar estava bem protegido por alguns soldados que permaneciam imóveis segurando lanças maiores que eles. 

Quando os dois se aproximaram do lugar, ela notou que Hamudd Leyfout estava sentado na maior poltrona, de pernas cruzadas e tomando vinho em uma bela taça de cristal. 

Hoje usava calças pretas e camisa vermelha entreaberta até a altura do peito, revelando seus inúmeros cordões de ouro e pelos escuros que brotavam de lá como uma relva da manhã. Seus longos cabelos negros e untados com óleo estavam parcialmente presos no alto da cabeça, mas o restante caía por sobre os ombros formando uma cascata escura que contrastava com a vistosa camisa. 

A visão do homem fez Iryna estremecer. 

— Meu Dominante... — Ela o reverenciou longamente. 

— Certa vez tive uma interessante e agradável conversa com uma bela beymutita de cabelos vermelhos. Na ocasião disse algo a ela que não disse para mais ninguém... Seria realmente você?

— Sim meu senhor. Pediste que eu viesse visitá-lo, agora estou aqui.

Hamudd ficou observando-a por um certo tempo, até que falou:

— Iryna Hunt... Que surpresa agradável. — O homem tinha uma sugestão de sorriso no rosto e um olhar meio triste e curioso ao mesmo tempo. — Está tudo bem? Suas roupas estão um pouco surradas, e seu cabelo ficou mais escuro, pelo que me lembro.

— Pretendo explicar tudo o quanto antes, meu senhor.

— Ora deixe de tolices, você é minha convidada, mandarei providenciar roupas novas o quanto antes. Só não esperava recebê-la tão cedo, o entardecer é o melhor horário para se apreciar minhas filhas. Mas não se preocupe, passará o dia comigo e lhe mostrarei muitas delas nos jardins que as cultivo; dentre elas, algumas extremamente raras. 

Iryna ouvia as palavras saírem da boca do homem, mas somente parecia reparar em seu forte queixo quadrado e em sua escura barba por fazer. 

Depois do que havia passado na outra noite, olhar para Hamudd Leyfout e seus brilhantes olhos verdes eram um verdadeiro alento. A alcunha de belo não recairia melhor em qualquer outro homem que já tivesse visto.

Pensar nele daquela maneira a fez se sentir mal, pois só naquele momento também se lembrou de Annya e seus penetrantes olhos escuros.

Por onde você anda, querida?...

— Você está bem, Iryna? 

— S-Sim! C-Claro Tenho assuntos a tratar com você, senhor Dominante. 

— Então venha, e pare de me chamar de senhor Dominante. 

Iryna subiu o tablado que levava até onde o homem estava e se sentou em um banco branco à sua frente. 

— Acharia melhor conversarmos a sós. — ela disse olhando para Jasnic, que estava em silêncio e plantado ao lado do Dominante. 

O olhar meio triste de Leyfout encontrou o penetrante de Sommier. 

— Não tenho segredos para com meu primo, Iryna. — Hamudd tornou a olhar para ela. — Sabia que Jasnic é meu primo, não é? 

Na verdade Iryna não sabia e não conseguiu esconder a surpresa, apesar da grande semelhança.

— Não. 

Os sentimentos dentro dela agora eram conflitantes. Enquanto a presença de Hamudd a acalmava por um lado, pelo outro, o olhar auspicioso de Jasnic a encarando a perturbava grandemente. 

— Que indelicadeza da minha parte... — O Dominante estendeu a mão e levou uma taça vazia a ela. — Beba um pouco de vinho comigo para relaxar.

Um servo vestindo uma túnica branca foi com uma jarra até a taça da beymutita e colocou o vinho. 

Iryna havia cavalgado a noite inteira e estava com fome e com sede, então não hesitou em aceitar, nem tão pouco em beber, e de uma só vez o virou garganta abaixo. 

— É de uma safra muito especial, Iryna Hunt, eu mesmo plantei algumas mudas. Você sabia que Léssia não tem um clima propício para o cultivo de uvas? 

Ela balançou a cabeça em negativa para o Dominante.

— Um problema que já foi solucionado. — Gabou-se ele. — Quilômetros a noroeste daqui, no descampado Falsson, mandei construir uma imensa estufa especialmente para elas. O que me diz... Está de seu agrado? 

Iryna passou a língua nos lábios a fim de retirar os resquícios do rascante. 

— Maravilhoso! O toque de gengibre e canela não me passou despercebido. 

As noites em que seu pai lhe permitia provar um dedo de vinho antes de refeições especiais não haviam sido esquecidas afinal.

— Hum... que interessante... Temos uma conhecedora de vinhos. — Hamudd bebeu mais um gole após dizer as palavras. 

— S-Senhor Dominante... — ouve vacilo na voz dela. — Os assuntos que me trazem aqui são delicados e muito difíceis de serem ditos na presença do seu primo. — Ela olhou de soslaio para Jasnic. — Um desses assuntos diz respeito a ele. 

— Agora eu é que faço questão de ficar. — A imposição de Jasnic Sommier pegou Iryna de surpresa. 

— Não tenhas medo, Iryna, Já disse que não há segredos entre meu primo e eu. 

Com aquela aceitação do Dominante, Iryna começava a ficar preocupada com o desenrolar da conversa que viria 

— Pois bem então, acho melhor dizer de uma vez. — Ela olhou de relance para Jasnic e depois continuou: — Esse não seria o primeiro assunto que eu abordaria, mas devido às circunstâncias, não me resta outra alternativa, então terei que dizer que seu primo está por trás de algo muito obscuro envolvendo crianças lesinenses. Eu estava atrás de um certo Fausto por causa de uma dessas crianças que veio até mim para pedir ajuda. Uma noite eu segui o tal Fausto e ele me levou diretamente para o seu primo, que mandou seus homens me matarem. 

O olhar de Jasnic Sommier saltou sobre Iryna. 

— Você está querendo dizer que é aquele homem a quem ferimos no cais?!! Como poderia? — Ele se aproximou dela e a olhou bem de perto. — Está realmente me dizendo que é aquele atirador de facas beymutita a quem procuramos, o tal Dhemer Mornoff? Como isso seria possível? Você é uma mulher!

Hamudd lançou um gélido olhar sobre seu primo. 

— Senhor Dominante, — Iryna olhou diretamente para Hamudd Leyfout. — esse seria meu segundo assunto a tratar, porém, mediante a revelação que fiz, temo que ele terá prioridade agora! 

Ela apontou um dedo em riste para Jasnic Sommier. 

— Tenho motivos para acreditar que seu primo é diretamente responsável pelo desaparecimento de inúmeras crianças em sua cidade! 

— Essa mulher está mentindo Hamudd, o atirador de facas não pode ser ela! Será? — ele finalizou com dúvida na fala. 

Apesar de não ter entendido muito bem do que o homem estava falando, Iryna respondeu:

— Falo somente verdades! 

Hamudd Leyfout se levantou pela primeira vez desde que a beymutita havia chegado, e agora passeava com seu olhar entre ela e Jasnic. 

— Parece que ela o enganou, Jasnic... — Agora Leyfout tinha um sorriso no rosto. 

— Não pode ser, ela não pode ter enganado a todos nós assim. — respondeu o primo com um olhar de incredulidade.

A conversa entre o Dominante e seu primo estava um tanto quanto estranha para Iryna. 

— Este homem é um criminoso, senhor Dominante, prenda-o! Prenda Fausto também! 

— Hahaha!

As gargalhadas do Dominante pegaram Iryna de surpresa. 

— O que está acontecendo aqui? — Ela perguntou com medo de saber a resposta. 

Leyfout andou até seu primo mantendo um sorriso no rosto. 

— Jasnic, seu tolo... Está me dizendo que esta bela moça é na verdade aquele tal atirador de facas beymutita que eu o mandei pegar para minha coleção? 

Iryna arregalou os olhos e encarou o Dominante. 

— M-Mas do que você está falando? Como assim coleção? 

O coração de Iryna estava descompassado dentro do peito. 

— Não tenho certeza, Hamudd. — Jasnic respondeu olhando com perplexidade para a mulher.

— Vá buscar o prisioneiro do quarto escuro. — O Dominante deu ordem a um dos soldados que o rodeavam, e o homem partiu imediatamente.

— V-Você está me dizendo que tinha ciência do desaparecimento das crianças todo este tempo?! Que sabia e não fazia nada?!!! — Iryna perguntou encarando o Dominante com uma expressão desolada. 

Hamudd não respondeu, apenas a encarou com seu olhar triste e estático. 

— Espere um pouco... — A expressão de pânico no rosto dela agora começava a tomar forma de terror. — Você está me dizendo que... que tem algo a ver com isso?!

Ele agora a encarava com um olhar que ela ainda não tinha visto, um olhar de desprezo, mas ainda assim não respondeu. E, enquanto a tensão pairava no ar, o soldado chegou trazendo um prisioneiro esquelético acorrentado e totalmente nu. 

— Reconhece ela?  — O Dominante perguntou. 

O homem estava só pele osso, com a cabeça raspada e sem todos os dedos das mãos, mas Iryna não teve dúvidas, aquele era Antuir von Clasnitt, o soldado beberrão e ganancioso que havia lhe vendido uma chave para o quarto do Dominante e que tanto a irritava. Mas agora, ao vê-lo daquela forma, só conseguiu sentir pena.

O decrépito ergueu o olhar com certa dificuldade e a encarou, enquanto ela tentava desviar-se dele, mas Hamudd fez um gesto silencioso e um soldado foi até ela, a levantou do banco e segurou em seu queixo para que o encarasse. 

Foi então que ela viu que o rosto do homem havia se tornado um amontoado de ossos sobressaltados, e ao se confrontar com os olhos fundos e manchados de sangue em suas órbitas, estremeceu, mas ele não teve forças nem para isso.

Aquele era um duríssimo castigo até para aquele homem. 

Na última vez que o viu, ele tencionava se tornar um lorde, mas a verdade era que teria sorte se ainda conseguisse amanhecer vivo. 

— E então? — O Dominante perguntou novamente a Clasnitt, mas não ouve resposta.

— O que há com ele, Jasnic? Por que não fala?

— Ele não deixava ninguém dormir nas celas. Ficava gritando e balançando as grades a noite toda, então mandei cortarem sua língua e seus dedos.

— Não sabia que era tão cruel assim, primo. — O Dominante falou com um sorriso debochado. — Mas e agora, como ele poderá confirmar?

Sommier foi até Iryna e puxou fora a sua peruca castanha, revelando seus curtos cabelos louros. 

Hamudd a olhou com malícia. 

— Ainda assim continua bela, minha querida. 

Jasnic trouxe o prisioneiro bem próximo a Iryna. 

— Olhe para ela! Se essa mulher for o tal atirador de facas que queria me matar, balance a cabeça afirmativamente.

— Eu nunca quis matá-lo! — Iryna respondeu com voz nervosa, mas foi totalmente ignorada.

Clasnitt fez uma expressão de ódio e abriu a boca para tentar falar algo para Jasnic, mas tudo o que conseguiu foi cuspir sangue coagulado por um orifício que mais parecia um amontoado de carne podre.

— Pela santa Cobra Mãe! Mande essa criatura fechar a boca! — Ordenou Hamudd.

Um soldado foi até Clasnitt e o esbofeteou.

— Escute, homem... — Jasnic falou com certa ternura. — Não prolongue seu sofrimento, diga logo se essa mulher era realmente o tal Dhemer Mornoff.

Em meio a esporádicos espasmos, a única coisa que Clasnitt conseguiu fazer, foi erguer minimamente sua mão sem dedos na direção de Jasnic Sommier.

— Parece que ele odeia você, primo. Não deveria ter mandado cortar sua língua. — Hamudd falou entre sorrisos de escárnio.

— Me escute! — Jasnic envolveu o rosto seco do homem com as duas mãos. — Apenas diga de uma vez se esse homem é ou não o tal atirador de facas, e depois poderá voltar para a sua cela.

Logo em seguida o administrador do Dominante girou a cabeça do moribundo para Iryna. — E então, é ele ou não?

Ainda com o rosto envolto pelas mãos de Jasnic, Clasnitt confirmou a informação balançando a cabeça em afirmativa. Logo depois o administrador o largou.

Após a confirmação, o homem caiu de joelhos, chorando de uma forma bizarra, emitindo sons estranhos que fizeram a alma de Iryna gelar.

Inesperadamente, Hamudd Leyfout andou até ele, sacou seu punhal dourado e começou a esfaqueá-lo sem parar no chão. O sangue jorrava para todos os lados, mas não cessou de perfurar o homem nem mesmo depois de algum tempo que já não se debatia. 

A boca de Iryna estava entreaberta enquanto seu corpo tremia. 

O Dominante continuava ajoelhado sobre o corpo, respirando descompassadamente como se tentasse recuperar o fôlego e o controle, até que se levantou com o rosto coberto por sangue e a olhou. Inacreditavelmente, seu olhar triste mantinha-se inalterado, e na sequência ele pegou o punhal e o guardou. 

— Desculpe meu descontrole, Iryna, — Disse o homem, da forma mais cínica que se poderia. — não irá se repetir. É que não tolero traidores. Mas não se preocupe, você não é uma traidora, só considero traidores aqueles que me servem, por isso sua morte será menos dolorosa, prometo.

Iryna sentiu sua cabeça rodar. 

— O que está acontecendo comigo?...

— Queria saber sobre o que acontece com as crianças, não queria? Não se preocupe mais, em breve saberá por si mesma.

A beymutita já não sentia o chão abaixo de seus pés, e estava desolada com o que estava acontecendo. Havia ido até ali para achar uma solução, mas acabou encontrando mentiras e terror.

— Certifique-se que esse assunto das crianças não irá chegar aos ouvidos de Nêmenas, ele pode não gostar. O idiota gaba-se em dizer o quanto é honrado e todas aquelas baboseiras que ele acredita. — Hamudd falou olhando para o primo.

— Pode deixar, já sei o que fazer. Mas quanto a ela, não a mate, acho que pode lhe ser útil de alguma forma.

— Há tempos busco um exemplar de outro lugar para comprovar algumas teorias, Jasnic, e acho que ela será perfeita para isso. Talvez sobreviva, talvez não... mas não lhe prometo nada.

— O vinho... A voz de Iryna começava a enfraquecer e sua visão a escurecer. — Você me envenenou... Como pôde?...

Hamudd não respondeu.

Iryna caiu no chão, mas ainda conseguia ver a expressão cansada do Dominante acima de si. E então, vendo-se em um beco sem saída, em um ato desesperado ela gritou antes que apagasse de vez:

— SOU IRYNA REDMOND, DE BEYMUTH! Da Ordem... — ela conseguiu dizer antes que sua voz sumisse por completo. 

Hamudd arregalou os olhos diante da revelação, e em seguida veio até ela e ajoelhou-se ao seu lado.

— Creio que esse seria o outro assunto que abordaria comigo, não é mesmo lady Redmond? — Ele sorriu. — Sempre soube que havia um espião em Léssia, mas nunca imaginei que seria a própria neta de Lorde August Redmond. — Ele abaixou-se um pouco mais até o ouvido dela e sussurrou: — Você mandou dizer ao meu soldado que estava na hora de eu saber se era uma rosa ou um espinho... — A turva visão de Iryna agora só conseguia identificar o verde dos olhos do Dominante, o restante era só um borrão vermelho de sangue e loucura. — Não se preocupe, terás a oportunidade de comprovar que posso ser ambos...

Após ouvir aquelas palavras, Iryna Redmond sentiu-se muito fraca e então fechou os olhos, sendo aquela a segunda vez que tudo tornava-se escuro para a beymutita em Léssia.



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