Iryna



Sereia



Submerso há mais de sete minutos, o solitário caçador de pedrinhas vermelhas gostava de ficar em baixo do mar pelo maior tempo possível. Ali era onde ele exercia o que sabia fazer de melhor: mergulhar por longos períodos em busca das famosas pedras mãe; os conhecidos ornamentos que lhe davam o sustento e encantavam tanto os lesinenses quanto qualquer um que passava pela cidade.

Podia-se dizer que sua profissão era uma das mais perigosas e antigas no mundo, pois constantemente tinha que enfrentar correntes marítimas, venenosas águas vivas e até mesmo tubarões. Ele arriscava-se naquele ofício diariamente por que os bonitos seixos que davam cor à bandeira lesinense e que tanto era apreciado por todos, só eram encontrados nos corais da longa orla marítima de Léssia, e só podiam ser retirados de lá à mão.

Entre os mergulhadores era sabido o fato de que aquele homem era um dos mais capazes de fazer aquilo. Realmente não era trabalho para qualquer um, entretanto, seus trinta e três anos de experiência o gabaritavam para tal tarefa. Seu pai o havia ensinado a mergulhar quando ainda tinha apenas cinco anos, e desde então seu tempo em baixo d'água só aumentava. Uma vez ele conseguiu permanecer submerso por mais de onze minutos, o que já era um tempo bem considerável, porém, ninguém jamais havia superado os longos dezesseis minutos de seu pai, quando ele ainda era bem jovem.

Aquela profissão era muito respeitada em Léssia, pois envolvia crenças e o nacionalismo presente, representado pela cor das pedras que a bandeira carregava. As poucas pessoas que tinham coragem para realizar os longos mergulhos apenas se utilizando do ar de seus pulmões já faziam aquilo há gerações, e a técnica de ficar longos períodos sem respirar era passado de pai para filho. Com o jovem filho do mergulhador que aguardava na praia não diferia; ele já conseguia mergulhar por mais de cinco minutos e era uma promessa entre os mergulhadores, mas até o momento, seu pai ainda não o deixara mergulhar muito além dos corais, o que vinha lhe causando certa frustração.

O tempo que um mergulhador conseguia ficar em baixo do mar era primordial para sua profissão. Por consequência, quanto maior o tempo, maior a recompensa. Das pedrinhas vermelhas encontradas somente em Léssia, eram feitos cordões, brincos, tiaras e tantas outras coisas que a mente humana era capaz de inventar, mas algumas pessoas do místico território apenas as levavam nos bolsos como uma espécie de amuleto da sorte. Elas acreditavam que assim como a Cobra Mãe expulsava seus inimigos da Costa lesinense, aquelas pedrinhas também manteriam longe todos aqueles que quisessem prejudicá-los.

E ali estava aquele experiente mergulhador mais uma vez, no fundo do mar com sua bolsa de junco entrelaçada já quase cheia das famosas pedras, então decidiu ser hora de voltar para cima com seu merecido prêmio. O filho do mergulhador, um característico e jovem lesinense de pele acobreada e cabelos negros, sempre esperava o pai à beira da praia com bacias, esponjas e óleo de peixe. Ali mesmo o rapaz limpava as pedras, as polia, untava e em seguida as vendia na feira do mergulhador.

Assim que o mergulhador emergiu, começou a retirar o imenso utensílio feito de borracha e vidro que impedia a água de entrar nos seus olhos e também lhe proporcionava uma boa visão no fundo do mar. Ao tirá-lo, pôde ver a bacia, as esponjas e os óleos, mas nem sequer viu sinal de seu filho. Ele passou o antebraço sobre os olhos com o intuito de retirar o pouco de água que escorreu de sua cabeça. Mas logo as suas suspeitas se confirmariam: o garoto realmente havia sumido. Desta vez ele pôs uma mão aberta sobre os olhos de modo a os proteger do sol, e também para que pudesse enxergar melhor à longa distância.

— BRETT! — Ele gritou. Sua voz logo sumiu levada pelo vento, mas ele gritou ainda mais alto: — BRETT!!

O mergulhador percebeu haver marcas de pegadas na areia, mas já estavam quase apagadas pelas ondas que ocasionalmente se aventuravam até aquele ponto, então começou a segui-las.

Ele sempre avisou ao garoto para que nunca se afastasse tanto, mas também sabia que os jovens tendem a esquecer comandos com muita facilidade.

Vou ensinar-lhe uma lição que jamais irá esquecer!

O mergulhador caminhou por mais alguns minutos beirando a orla do mar, até que ao longe pôde ver o garoto ajoelhado. Parecia estar brincando com algo, mas ao se aproximar notou que atrás do menino havia uma pessoa caída; usava camisa azul e estava deitada de bruços na areia, parecendo estar desacordada. O mergulhador correu até o filho e o puxou para longe do corpo.

— Se afaste!

— Só estava tentando ajudar, pai! — O menino disse com voz aflita.

— Depois conversamos! — O homem respondeu empurrando o filho para trás de si. Em seguida se abaixou próximo à pessoa caída e levou seu ouvido bem perto do nariz dela, percebendo então que ainda havia respiração, mas estava muito fraca. Depois se levantou, olhou para os lados e ficou inquieto, como se estivesse pensando no que faria a seguir.

— Ele ainda está vivo, pai, também senti sua respiração! — O mergulhador nada respondeu ao menino. — Temos que ajudá-lo, senão ele morrerá! — ele insistiu.

Enfim o pai voltou-se para o garoto.

— Não é problema nosso, apenas chamarei a guarda da cidade, eles saberão o que fazer.

— Não dará tempo! Se não o ajudarmos agora ele não sobreviverá! O senhor sabe disso!

— Você tinha mesmo que puxar à sua mãe, não é? Com esse coração mole e essa mania de pensar que todos merecem ser ajudados. Já disse que chamarei os guardas, e isso é o máximo que faremos! Olhe a cor da pele e dos cabelos dele, está claro que ele não é de Léssia! Não quero me meter nesse tipo de problema!

O menino baixou o olhar diante da resposta de seu pai. Estava disposto a ajudar o pobre moribundo, mas não encontrava argumentos. Foi quando notou algo embaixo do braço da pessoa caída.

— Olhe pai! Parece que ele está sangrando!

O mergulhador voltou-se para o homem caído e percebeu uma pequena vermelhidão no local em que o garoto apontava, e um quase imperceptível filete de sangue que escorria para debaixo dele. O homem abaixou-se novamente, e desta vez decidiu virar a pessoa de barriga para cima. Então viu uma imensa mancha vermelha em suas costelas e uma menor no braço direito, onde a camisa havia sido rasgada.

— Vê, pai?! Temos que ajudá-lo!

O pai não respondeu, apenas começou a desabotoar a ensanguentada camisa do rapaz caído, e para sua surpresa, notou que todo o dorso do homem estava envolto por uma espécie de espartilho. Ele começou a retirar a peça para poder ver melhor o ferimento, e quando terminou, sua boca ficou estática e entreaberta com tamanha surpresa: dois pequenos seios com bicos rosados saltaram para fora. O menino arregalou os olhos e abriu a boca.

— Por favor, pai, não podemos deixá-la morrer!

O pai mordeu os lábios com apreensão, olhou em todas as direções como se procurasse por alguém e em seguida começou a abotoar a camisa da moça de modo a fechá-la.

— Vá correndo em casa para pegar o carro de pei...

Antes que terminasse de falar, o garoto partiu em disparada, pois já sabia o que fazer.

— De onde será que você veio?... — Disse o mergulhador com voz contemplativa, enquanto voltava seu olhar para a mulher caída.

Ele não entendia o porquê daquela jovem cortar os cabelos tão curtos e nem se vestir como homem, nem muito menos o porquê de ela estar caída à beira da praia e ferida gravemente, mas sabia que de alguma forma estava se metendo em algum problema que não era seu. Seu filho geralmente conseguia convencê-lo a fazer coisas que ele não queria, como: mergulhar na ilha dos corais azuis só por que diziam que ninguém era capaz, ignorando a grande frequência de tubarões naquela área, ou ocasionalmente doar aos mendigos parte do dinheiro que haviam conseguido depois de um árduo dia de trabalho, entre outras coisas. No entanto, só havia restado ele e sua mãe em sua família, depois que sua mulher Tienne e sua filha Jenna haviam morrido em alto mar enquanto pescavam sardinhas. Jenna, se ainda estivesse viva, provavelmente teria a mesma idade da moça ferida deitada à sua frente. Talvez esse fato tenha o influenciado a ajudar. Enquanto divagava em seus pensamentos, o mergulhador nem notou que a leste de onde estava, havia uma pequena guarnição de guardas com mantos vermelhos patrulhando, e pareciam procurar por algo na orla marítima. Com o olhar fixo nos homens, apenas ouviu o ranger das rodas de madeira do carrinho que seu filho empurrava pela praia com muita dificuldade. Então se virou para o garoto.

— Rápido Brett! Os guardas se aproximam!

O garoto rapidamente posicionou o carrinho ao lado da jovem, enquanto seu pai a levantava com o maior cuidado possível. Assim que a colocou no carrinho, a cobriu com redes de pescas que tinha no carro.

— Agora deixe comigo, Brett. Vá correndo ao Mercado Vermelho e busque Lalah. Diga a ela para trazer todas as suas ervas e que é urgente!

Outra vez o garoto saiu em disparada, enquanto seu pai começava a empurrar o carrinho com muita dificuldade pelo sinuoso terreno arenoso. Quando enfim conseguiu chegar à estrada de barro, notou que os soldados estavam bem próximos de onde pouco tempo atrás a moça estava caída. Se as ondas não tivessem limpado o lugar, provavelmente eles encontrariam a poça de sangue.

Teria que se embrenhar o mais rápido possível pela alta vegetação à beira da estrada de modo a não ser visto. Seu coração estava acelerado e seus braços começavam a arder empurrando o peso, mas não podia pensar em parar, pois não teria como explicar aos guardas o porquê de uma mulher estrangeira e ferida estar dentro de seu carrinho de feira. Por sorte, o mergulhador e seu filho não moravam muito longe da praia, e em pouco tempo estaria na segurança de sua cabana.

— COMO FOI A PESCA HOJE, MERTHAN? — Alguém gritou do outro lado da vegetação.

As pernas do mergulhador enfraqueceram com o som da voz, ainda que estivesse um pouco distante. Então Merthan olhou para o homem que perguntava. Era outro mergulhador que se preparava para ir à praia. Ele acenou com nervosismo e respondeu:

— F-FOI BOA!

— DEVE TER SIDO MESMO, JÁ QUE PRECISOU ATÉ TRAZER SEU CARRINHO! O QUE PESCOU, UMA SEREIA? — o homem perguntou sorrindo.

Merthan apenas devolveu um sorriso nervoso para seu companheiro de trabalho e seguiu sem dar mais atenção. Quando chegou em frente à sua cabana, observou mais uma vez o seu entorno para se certificar de que não havia ninguém por perto; então retirou a moça de dentro do carrinho e em seguida a levou para o interior do lugar, deitando-a em uma cama de palha. Algum tempo depois, a idosa senhora a quem todos chamavam Lalah, adentrou a cabana com passos vagarosos.

— Do que se trata isso, Merthan? Brett disse haver alguém ferido e logo pensei que você tivesse se cortado nos corais outra vez! Mas isso?... — A idosa se aproximou um pouco mais da moça ferida. — Quem é esta moça, Merthan?

— Como soube que era uma moça?

— Já vivo neste mundo há tempo demais para não saber reconhecer as diferenças. Mas isso não importa, me respondam quem é?

— Não sabemos, mãe. Em um momento de loucura decidi trazê-la para cá. — Respondeu o mergulhador.

— Meu filho, você não ouve o que anda acontecendo em Beymuth? Uma iminente guerra está por vir! Nesse momento, estrangeiros não são bem vindos em Léssia ou em qualquer dos outros territórios! Não se fala outra coisa na feira, e você me aparece com essa moça! — A velha senhora apertou os olhos e se aproximou um pouco mais da mulher. — Ainda mais com essa clara aparência de Beymutita, livre-se dela o quanto antes!

Brett mordia os lábios com apreensão enquanto ouvia as alegações da avó.

— Tentei fazer isso, mãe, mas a senhora sabe que sempre acabo fazendo tudo o que o garoto quer.

— Por favor, vovó! Enquanto vocês discutem bobagens ela está morrendo!

A idosa lançou um olhar furioso para o neto.

— Você entende no que está nos metendo, garoto? Andam dizendo por aí que uma tal Ordem matou todos os Unificados em Beymuth; que ela conseguiu reconquistar a cidade e enviou assassinos para todos os territórios! Dizem que eles estão procurando oportunidades para matar os Dominantes e levar toda Valanthar à guerra! Quem pode nos garantir que essa moça não é um deles? Se tudo isso for realmente verdade, poderíamos ser mortos somente por trazê-la aqui!

— Não é! — Brett respondeu de pronto.

— E como poderia saber disso, Brett? Perguntou o pai.

— Todos a conhecem na praça do marinheiro, lá ela se apresenta como Dhemer Mornoff, o atirador de facas!

— Mas o que ninguém sabe é que na verdade ele é uma mulher disfarçada de homem, e sabe-se lá por qual motivo. — Interveio a avó com acidez na fala.

— Arrrghh...

O gemido de Iryna chamou a atenção dos três.

— Por favor vovó, ajude ela! — Brett suplicou com o olhar triste.

A idosa olhou para o neto e em seguida para o filho, depois fitou Iryna e torceu os lábios.

— Ahhh! Tudo bem! Mas não prometo nada! E tem mais! Se ela não morrer, deverá ir embora o quanto antes!

Brett apenas assentiu enquanto sua avó ia em direção à Iryna para aplicar-lhe algo.

O garoto tinha um contido sorriso de satisfação no rosto, mas quando se voltou para seu pai, notou que a expressão dele era bem diferente da sua.

— O senhor sabe o que se passa em Beymuth?

O mergulhador suspirou antes de responder:

— Não. Apenas rumores, mas ainda assim, sua avó tem razão. Espero que essa moça melhore o quanto antes para que possa partir. — De repente Merthan encarou o garoto com seriedade. — Não sabia que ia à praça do marinheiro. Aquele lugar é cheio de ladrões e gente ainda pior.

— F-Fiquei curioso, meus amigos me disseram haver um grande atirador de facas que nunca errava, fui apenas uma vez.

— E é verdade?

— O quê, pai? Que fui apenas uma vez? Juro pela Cobra Mãe que sim! — O garoto tinha os pés bem juntos e a mão direita sobre o coração.

— Não é isso, estou perguntando se é verdade que ele... Quer dizer... ela, nunca erra?

O menino coçou a cabeça com desconforto

— Bem... pelo menos na "única" vez em que fui, ela não errou. O ato final foi com os olhos vendados, mas ainda assim não errou!

O pai forçou-se a sorrir.

— Confesso que isso seria interessante de se ver.

— Pronto! — A idosa interrompeu a interação pai e filho.

— O que eu podia fazer, fiz. Agora é com a Cobra Mãe... — ela virou-se para o menino. — Por que se importa tanto com essa moça, Brett?

O garoto suspirou.

— Sabe, vó... Às vezes fico pensando no dia em que a tempestade virou o barco que estava minha mãe e minha irmã... Será que elas boiaram por muito tempo antes de se afogarem?... Será que se houvesse uma embarcação por perto elas não poderiam ter sido salvas?... Quanto mais penso, menos respostas tenho para essas perguntas, mas o fato é que depois do que aconteceu com elas, não sei se consigo ver alguém morrendo na minha frente e pelo menos não tentar ajudar.

Depois de um breve silêncio o pai falou:

— Não disse que é difícil dizer não para esse pestinha? — Depois afagou os cabelos negros e lisos do filho, que já tinha os olhos marejados.

— M-Minhas... Facas... On...on...de estão? — A voz de Iryna era fraca e quase inaudível.

A idosa aproximou-se e enxugou a testa da moça com um pano.

— Não se esforce, menina, ou a ferida abrirá.

Iryna a olhou como se não a enxergasse, e depois voltou a dormir.

Merthan colocou um braço em volta do seu filho e disse:

— Fizemos tudo o que podíamos, Brett, mas não fique tão esperançoso, dificilmente ela passará dessa noite.

O menino sorriu com tristeza.

— A Cobra Mãe decidirá, pai...



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