Dhemer


Inicio Duvidoso



Quando Dhemer sentou-se junto ao pé da grande árvore a fim de poder escrever sua carta, o dia ainda estava suficientemente claro para conseguir enxergar com perfeição as letras. Contudo, em breve o anoitecer o pegaria, e até aquele momento ele ainda não a havia finalizado.

Na maior parte do que escrevera dizia que estava bem, com saúde e com saudades. Mas a parte final, a que não tinha nenhum avanço em relação à sua missão, e a que realmente importava, não sabia como pôr em palavras. Um sentimento de tristeza e impotência o acometeu naquele momento. Não seria fácil explicar a todos e principalmente a seu avô, que estava indo muito mal e que não havia nenhum avanço concreto em suas pretensões em Léssia.

Seriam linhas difíceis de colocar no papel.

Ele procurava em sua mente as palavras corretas que pudessem expressar exatamente o que queria dizer, mas elas simplesmente não vinham.

Um fraco e agradável vento soprava seu rosto com suavidade, os pássaros cantavam felizes na copa da árvore e até mesmo Annya não havia aparecido para tirar sua concentração, como vinha ocorrendo com frequência. Tudo estava indo relativamente bem até ali, só faltava as palavras corretas para que pudesse finalizar, mas elas insistiam em não vir. A verdade era que Dhemer sabia que não era falta de inspiração. Ele sabia o que dizer. Sabia que tinha que baixar a cabeça e apenas assumir que fora precipitado e incapaz. Mas como escrever algo assim depois do que fizera para estar ali? Não. Não escreveria tais palavras, havia decidido. Ao invés disso, apenas escreveria que continuaria tentando, tentando e tentando, até que seu objetivo fosse cumprido, e todos pudessem se orgulhar dele.

Mas quando estava prestes a colocar as palavras no papel, ouviu uma voz que o irritava profundamente.

— Quer dizer que além de um grande atirador de facas também tenho um poeta em minha trupe?

Dhemer não pôde deixar de notar o tom de deboche na voz de Mitrick Mautner.

— Não sou um poeta, Mitrick, só estou tentando mandar notícias a um último parente vivo.

— Deve ser alguém bem importante, não?

— Apenas um lavrador, mas ainda assim merece saber notícias de seu último neto.

— Taí uma coisa que nunca havia visto antes... — o homem puxava a ponta da barba pontiaguda enquanto andava para lá e para cá na frente de Dhemer. — Um lavrador que soubesse ler. Isso é realmente impressionante, ao passo que nem mesmo eu sei!

Ah... Sua ave de rapina maldita!

— Meu avô não sabe ler, mas isso não impede que eu escreva para ele.

— E que sentido há nisso? Se ele não compreende as letras, não há porque enviá-las.

Dhemer bufou em pensamento. A vontade era cortar fora aquela barbicha ridícula com uma de suas facas, mas sempre tinha que se recordar que o homem lhe servia a um propósito.

— Meu avô mora em um vilarejo próximo a Vilamar. De tempos em tempos ele vai lá para trocar seus produtos, e quando faz isso, encontra um escriba que lê as cartas em troca de algumas batatas e nabos. Satisfeito?

— Hum... Interessante isso... E por acaso foi com esse escriba que você aprendeu a escrever? Pelo meu amplo conhecimento no ramo da arte de rua, sei que são poucos os que sabem ler e escrever. Você é sempre cheio de surpresas, não é mesmo, senhor Mornoff...

— Aprendi com um sacerdote da Fé Antiga, enquanto o servia no templo na minha infância. Algo mais, Mitrick?

— Na verdade sim, Dhemer. É que estamos com poucas pessoas na trupe, e como já havia falado, aqui somos uma família, e uma família deve sempre se ajudar, não acha?

Maldito desgraçado...

— Sim, Mitrick, eu acho isso sim.

— Além do mais, os macacos adoram você. Não percebe a alegria deles ao ver sua presença? — O homem sorriu com malícia.

Pequenos demônios porcalhões é o que são.

Dhemer sabia que Mitrick só fazia aquilo para humilhá-lo. Não havia nenhuma necessidade de que ele fizesse tais coisas, mas a cada nova resposta malcriada que soltava para o seu patrão, sabia que a represália viria através de algum serviço extra. Essa era a forma do homem tentar se afirmar, mas a Dhemer apenas soava infantil e patético. Se ele tentava adquirir algum respeito através daquela atitude, o efeito era contrário, pois o desprezo do Beymutita por ele só aumentava a cada dia.

— Não se preocupe Mitrick, farei isso assim que terminar de escrever. Posso? — Dhemer apontou para o papel.

— Claro que sim, meu rapaz! Aqui você pode tudo. Afinal, você é a estrela do meu show! Além do mais, prefiro você escrevendo que perambulando sozinho pela cidade à noite. Não acho que seja muito seguro para um Beymutita. Você sabe... A unificação e todas essas baboseiras... Odiaria perdê-lo. Sabe que és como um filho para mim, não sabe?... — O homem até conseguiu forçar uma lágrima nesse momento.

Sei muito bem o que você não quer perder seu ganancioso maldito! Sua mina de ouro!

— Sei que sim, Mitrick, e fico satisfeito em saber. Agora se puder me deixar sozinho para que eu termine minha carta antes que a luz se vá, ficaria muito grato.

— Sim, claro que sim. Afinal, uma nova etapa do meu árduo trabalho está para se iniciar. E você sabe o quanto sou comprometido com meu trabalho.

— Sim, Mitrick, sei sim.

— Até mais meu rapaz. — O homem virou-se e partiu em direção ao acampamento, mas antes de se afastar o suficiente, falou: — E não se esqueça das jaulas! — Concluiu antes de enfim sumir de vez.

Dhemer bufou longamente enquanto via o homem partir.

Acho que enfim poderei terminar minha carta.

Ele voltou a acomodar-se no tronco da árvore e molhou a ponta da pena com um pouco de tinta. E outra vez ficou olhando fixamente para o papel sem saber o que colocar nele. Quando enfim se atreveu a rabiscar a primeira letra, notou que a tinta já havia secado na ponta da pena de tanto tempo que ficara lá.

— Mas que merda... — ele murmurou baixinho.

Quando chegou à conclusão de que não conseguiria terminar a carta, achou melhor se levantar e ir embora; mas não teve tempo para isso.

— Então esse é o famoso Dhemer Mornoff... o incrível atirador de facas?

Dhemer levantou o olhar para ver quem surgia atrás de si interrompendo mais uma vez. Era o preço a se pagar por tentar escrever ao ar livre, onde todos podiam vê-lo; ainda que a árvore escolhida para se encostar ficasse bem afastada do acampamento da trupe Cruzamar.

O homem não havia sido o primeiro, e se continuasse ali provavelmente não seria o último a incomodá-lo. A carta contendo notícias suas e endereçada ao seu avô em Beymuth parecia que teria de esperar.

Notadamente a figura parada à sua frente era um lesinense. Esguio, com pele acobreada, cabelos negros e compridos, fitava Dhemer com um olhar penetrante como se esperasse uma resposta.

— A fama é injustificada, meu senhor. Não sou tão incrível assim. — Por fim Dhemer respondeu.

— Nisso tenho que concordar. Acabei de ver seu número com as facas antes de o seguir até aqui, e tenho que confessar que já vi minha sobrinha de dez anos arremessar lanças maiores que elas com uma presteza muito melhor que a sua. Na frente dela, suas faquinhas parecem brincadeira de recém-nascido. — Ele riu.

Será que os Antigos tiraram o dia para me punir? Primeiro Mitrick, e agora esse aí?

— Se não está aqui para elogiar minha "brincadeira de recém-nascido", então por que me incomoda, senhor?

— Hum... Você é bem direto... Gosto disso em um homem. Se bem que com esses braços tão finos e esse rosto tão liso, não poderia dizer que já é um homem de verdade, está mais para um frangote em transição. — Ele riu novamente.

Dhemer acabara de conhecer o homem e já percebera que havia algo de perigoso nele.

Quem seria? O que queria? O que sabia? Estava claro que não era um admirador, e também não estava ali à toa, seu olhar malicioso com toda certeza escondia suas reais intenções.

— Quem é e o que deseja, senhor? Tenho pouco tempo para terminar de escrever antes que o sol se vá. Se veio apenas para me insultar, considere sua missão bem sucedida. Agora só peço que me deixe sozinho.

— Vocês de Beymuth são sempre esquentadinhos, não é rapaz?

— Não me chamo rapaz. Meu nome é Dhemer. Eu não o conheço e não lembro de já tê-lo insultado de qualquer maneira, mas se por acaso o fiz sem perceber, peço desculpas. Mas o fato é que realmente preciso terminar de escrever, se não se importa.

— Apesar de não parecer, não estou aqui para ofendê-lo, rapaz, estou aqui para negociar.

— Negociar? E o que teríamos em comum para que pudéssemos negociar qualquer coisa? Na verdade, não me lembro de já tê-lo visto antes

— Sim, é verdade... Tenho certeza que você não me notou antes, mas não significa que eu não o tenha notado.

O comentário fez Dhemer gelar.

— O que quer dizer com isso?

— Eu já o vi algumas noites no Filhos da Cobra Mãe, rapaz. Vejo como é metódico em chegar sempre no mesmo horário, em como toma sempre duas taças de vinho fermentado levado pela Margot, e o vejo sempre sair logo depois de beber. Também já percebi que em algumas noites você cruza a ponte para retornar para o acampamento, mas em outras toma direção diferente e some noite à dentro na cidade. Até aí tudo bem. Afinal, você é apenas um forasteiro querendo conhecer minha tão bela cidade que nunca dorme. Mas quando o vi passar por pelo menos três vezes seguidas próximo à escadaria do castelo do Dominante, e ainda observando tudo com toda atenção, não pude deixar de notar seu grande interesse no lugar. Então pensei comigo mesmo: posso relatar o fato aos meus superiores, ou posso tentar conhecer melhor o tão famoso atirador de facas Beymutita que tem tanto interesse no castelo do meu Dominante. Escolhi a segunda opção por hora. Sempre tento extrair o melhor das pessoas, dar-lhes uma chance para que possam provar seu valor, sabe?... A verdade é que tudo isso pode ser apenas algo banal, mas não cabe a mim decidir. Enfim... Apenas achei razoável falar com você antes de tomar qualquer decisão precipitada. Portanto, "rapaz..." — Inesperadamente ele sentou-se ao lado de Dhemer. — Você é quem decide se temos o que negociar ou não.

Dhemer estava estático sem saber o que dizer. O que aquele homem sabia de fato? Seria só um blefe, uma mera especulação? Ou saberia de algo concreto sobre o que ele fazia em Léssia? Eram tantas as questões e nenhuma resposta.

Dhemer não esperava por aquilo e não sabia como sairia daquela situação tão inesperada, então disse a única coisa que poderia dizer:

— Por acaso é crime passar em frente ao castelo do Dominante? Não poderia apenas o estar admirando como todo mundo faz? Afinal, é um belo castelo.

O lesinense sorriu.

— Mas é claro que sim! Afinal, o castelo de nosso amado Dominante é realmente belo, assim como ele! Mas a pergunta que me faço é: por que não o admirar também durante o dia, quando a luz do Sol é um artifício muito mais propício para auxiliá-lo em tal questão? Enfim... Se eu, que não sou tão inteligente, e sou tão baixo em hierarquia, me fiz essa pergunta, o que acha que os que estão acima de mim irão pensar sobre um Beymutita rondando o castelo de Hamudd Leyfout? Ainda mais depois dos rumores que têm chegado aos territórios há algum tempo sobre focos de resistência à Unificação em Beymuth. São tempos perigosos para beymutitas se afastarem tanto de sua amada "Cidade Mãe".

O homem definitivamente era pura malícia e Dhemer não via como conseguiria fugir de suas teias.

Mas em uma coisa ele tinha razão, o simples fato de um Beymutita andar tantas vezes em frente ao castelo do Dominante não seria algo visto com bons olhos por qualquer oficial manto púrpura.

— Quem é você afinal? — Era a segunda vez que Dhemer perguntava.

— Por hora, basta saber que sou um soldado e componho a guarda do Castelo dos Leyfout. Não quero que me entenda mal, rapaz. Não estou aqui para ameaçá-lo. Se não ficou bem claro, eu realmente o procurei para negociar. Caso contrário, não estaríamos aqui tendo essa conversa.

Dhemer não pôde deixar de notar os lábios finos e os olhos negros como âmbar do homem. Tinha uma certa elegância com sua calça feita de um bom pano marrom, e seu gibão lilás preso à cintura por um cinto de ferro. Talvez não fosse apenas um simples soldado como queria fazer parecer. Mas não dava para ter certeza de nada. Poderia ser apenas um golpista que viu uma oportunidade de se dar bem e aproveitou. Ou realmente poderia ser um soldado com acesso ao castelo Leyfout. Se fosse isso, Dhemer precisaria de confirmação, e quem sabe até poderia negociar com o misterioso homem sentado ao seu lado, e talvez aquele inusitado encontro pudesse significar que algo concreto havia aparecido depois de quase três meses sem conseguir nada muito relevante em Léssia.

Mas tudo estava acontecendo muito rápido, e apenas uma coisa já havia ficado claro para Dhemer, aquele homem não era nada confiável.

— Bem... Já que não quer me dizer seu nome e eu não faço ideia de quem realmente seja, só há uma forma de negociarmos.

— Hum... Negociarmos... Gostei do som da palavra saindo da sua boca. Diga-me, atirador de facas... O que propõe para que possamos entrar em franca negociação em um futuro próximo?

Dhemer levantou-se.

— Preciso averiguar a informação de que é mesmo um soldado com acesso ao castelo.

— Ah... Isso? Pede tão pouco. Mas não se preocupe. É muito fácil de se resolver. Daqui há duas noites passe novamente próximo às muralhas, mas desta vez olhe em direção à torre de observação a oeste. Estarei com armadura completa. Estará escuro, mas deixarei cair da muralha um pedaço considerável de pano branco, o que é facilmente identificável, mesmo à noite.

Dhemer gostou daquilo.

— Tudo bem. – Disse o Beymutita. — Já que está aqui ao invés de ter me delatado, significa que quer algo que posso dar, e em contrapartida, já percebeu que também tenho interesse no castelo. Se conseguir confirmar que é um soldado e que tem acesso à fortaleza, quem sabe não possamos realmente negociar?

Agora não tinha volta, Dhemer havia entrado no jogo.

— Quanto a isso não teremos problemas, Beymutita. Desde que você tenha o que procuro.

— E o que você procura?

— O que todos os homens procuram, senão amor, relevância e ouro? Pode não parecer, Beymutita, mas sou um homem totalmente romântico e apaixonado. Eu amo todas as mulheres com quem me relaciono... No atual momento minha relevância não é das melhores, apesar de ter um nascimento relativamente razoável. Mas não pretendo passar o resto da minha vida como um simples soldado patrulhando uma droga de muralha. E quanto ao ouro... Ah o ouro... Esse sim é meu melhor amigo. Afinal de contas, com ele fica muito mais fácil continuar amando todas as minhas mulheres, voltar a ter a relevância que mereço, e desfrutar das primícias que o mundo pode nos oferecer, não acha?

Aquela era a resposta que Dhemer queria ouvir. Ficaria muito mais fácil negociar com alguém que tem mais amor por ouro que por seu país, como parecia ser o caso.

— Estamos combinados então. — Disse Dhemer. — Daqui a duas noites passarei no lugar referido. Se tiver realmente falando a verdade, providenciarei algum ouro para você.

Ao ouvir a palavra ouro, um sorriso espontâneo surgiu nos finos lábios do homem. Então ele se levantou e limpou as calças com as mãos.

— Depois de confirmarmos que estou falando a verdade, quero que me encontre na terceira noite em um estábulo próximo à torre das gaivotas. Ele é pouco utilizado por nós soldados, e lá será seguro para conversarmos.

Daí acertaremos todos os detalhes sobre o que você quer, e sobre o que eu vou querer.

Dhemer dobrou a carta que estava em sua mão e a colocou no bolso. Em seguida olhou para o céu e percebeu que o sol havia os deixado.

— Bem, está realmente na hora de retornar. Não quero que meu odioso patrão me pegue conversando com alguém, senão surgirão mais perguntas que não quero responder.

— Até daqui a três noites, Beymutita. E que comecem as negociações.

Sem responder, Dhemer virou-se e começou a andar.

— Só mais uma coisa, Beymutita!

Dhemer voltou-se para o homem.

— Diga.

— Como um gesto de boa fé, você poderia agraciar-me com algum bronze para que eu possa ter alguns momentos de prazer com uma garrafa de água rubra. O que acha?

Dhemer não podia dizer o que achava. Sabia muito bem diante de que tipo de homem estava. Tudo o que podia fazer era colocar a mão no bolso, pegar a moeda e jogar para ele. E foi exatamente o que fez.

— Será debitado caso venhamos a concluir a negociação.

O homem sorriu.

— Claro que sim, Dhemer Mornoff... Claro que sim.

Dhemer virou-se outra vez e seguiu em frente.

Desde que partira sabia de todos os riscos que correria ao se colocar naquela missão, mas não havia mais como recuar. Devia isso aos seus pais assassinados e ao seu amado avô.

É... Parece que terei que esperar um pouco mais para poder escrever o final dessa carta.

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