Derick
Tudo as Claras
A proximava-se do meio dia quando Derick e Dennis enfim chegaram a uma distância segura dos grandes portões do castelo Dovant. Ali perceberam que eles estavam se abrindo naquele exato momento, e para grande espanto de ambos, a gigantesca cavalaria Bérniff começava a fluir de lá como um corrente rio. Os cavaleiros vestiam as tradicionais armaduras verde Bérniff, enquanto os cavalos do vento trajavam suas próprias armaduras de aço, com as famosas focinheiras articuladas com dentes de aço, que sempre causaram terror nos inimigos.
Derick não pôde deixar de se admirar com a quantidade de homens montados que jorrava dos portões; eram tantos, que os dois primeiros cavaleiros portando os estandartes com desenhos de cavalos do vento tremulando em fundo verde já iam se aproximando da pequena elevação de terra onde haviam parado e não havia sinal de que eles cessariam de brotar de dentro dos portões.
A cavalaria Bérniff era grandemente conhecida em toda Valanthar e até fora dela; temida por sua valentia e suas magníficas montarias destemidas e sanguinárias.
Derick não recordava de algum dia tê-la visto em sua plenitude tão de perto.
O rei, em tempos de guerra, conseguia reunir com seus vassalos dentro do território de Beymuth uma grande cavalaria, além dos quinhentos cavaleiros reais sempre em prontidão, mas era inegável que a cavalaria Bérniff era a maior e a mais preparada dentre todas. Quando os territórios ainda se uniam sob a mão de um único soberano, e a cavalaria Bérniff compunha este mesmo exército, Valanthar tornava-se uma nação quase intransponível.
Naquele momento a visão dos imponentes cavaleiros passando por Derick fez os pelos de sua nuca se eriçarem. Ele não pôde deixar de lembrar de Malakar Jones e dos cavaleiros reais.
Dennis fez um aceno para o amigo e recomeçou a andar em direção ao castelo, mas agora apenas trotando lentamente, e Derick o seguiu.
O momento da chegada aos portões se deu no mesmo tempo em que o último cavaleiro saía de lá, e então eles se fecharam.
A cidade estava vazia, com exceção de uns poucos pedintes e dos diversos soldados andando para lá e para cá.
Os dois amigos desceram e amarraram os animais.
— Fique atento, Derick, o clima está bem estranho.
Não precisava nem ser dito, mas logo dois soldados se aproximaram só para lembrá-los.
— A cidade está fechada! Deem meia volta!
— Perdoe-nos, seu guarda, não podíamos adivinhar, somos cantores andarilhos, esperávamos ganhar algumas moedas nessas ruas, mas diga-me, o que aconteceu por aqui?
— Não interessa a você, menestrel, já mandei dar meia volta!
Dennis colocou a mão no ombro de Derick.
— Vamos embora, não há nada aqui para nós.
Derick olhou Dennis de soslaio e se afastou um pouco de seu toque.
— É verdade que o Dominante morreu?
O rosto do guarda se enfureceu.
— Você pergunta demais, menestrel, está querendo morrer?
— Não me leve a mal, seu guarda, é que tinha esperança de poder apresentar uma canção feita especialmente para ele.
O outro guarda adiantou-se.
— Não há mais para quem cantar, menestrel, o filho do Dominante morto agora vela o corpo do pai, dê ouvidos ao meu amigo e vá embora.
Derick assentiu e se afastou.
— Não é possível!
Quando Derick olhou para o rosto de Dennis, notou sua expressão de espanto depois de dizer a frase, e quando também levou a cabeça na direção em que o amigo olhava, viu Novath Longstrider apertando as correias de seu cavalo e já se preparando para subir.
Derick queria ir lá o mais rápido possível, mas os dois guardas estavam parados à sua frente.
— E então, vagabundos, irão embora por conta própria ou terei que tirá-los daqui a porradas?
Derick olhou para o guarda mais exaltado e sorriu.
— Acho que você está muito tenso, meu amigo, vou lhe cantar uma canção!
— Você vai o quê???
— Quando as noites esfriarem nas colinas do vento e as donzelas do Vale Verde se perderem em seus anseios...
O outro guarda não conseguiu segurar o riso.
— Hahaha! Relaxa, Gleen, bem que você está precisando ouvir uma boa música! E ele até que é bem talentoso!
Gleen colocou a mão na espada.
— Pare já com isso seu menestrel idiota!
Derick ignorou a ordem e cantou ainda mais alto.
— POR ONDE ANDAVAS Ó SAUDADE, QUE NÃO ME VISITASTE QUANDO PRECISEI...
No momento em que o guarda sacou sua espada, alguém falou:
— Isso não será necessário, podem ir.
Os guardas se olharam meio desconcertados e partiram sem dizer mais nada, e então Novath Longstrider se aproximou dos amigos em silêncio e os encarou.
— Eu reconheceria esta voz em qualquer lugar. Vocês não sabem a alegria que tenho em ver os dois! Principalmente você, Pennant, quanto tempo faz?
— Depois do quinto ano parei de contar.
Dennis tinha um sorriso singelo no rosto.
Novath foi até Derick e o abraçou.
— Meu irmão, tenho tanta coisa pra te contar! Mas primeiro venha, tem alguém que gostará muito de te ver.
Apesar de também estar feliz em reencontrar o amigo, Derick estava muito ressabiado com aquela situação. Afinal, os Longstrider haviam partido com o rei para o protegerem até Bérniff, mas em contrapartida o Beymutita também sabia que Zathar e K'leut estavam mancomunados para algum propósito em comum, e ao que estava parecendo, Novath também poderia estar de acordo com o que estava acontecendo, contudo, ele sabia que a pessoa de quem o ruivo estava falando era Lenna, e talvez ela fosse a única que pudesse elucidar aquela situação.
Sem dizerem mais nada, Derick e Dennis se entreolharam e seguiram Novath.
Os dois haviam decidido na noite anterior que, acontecesse o que acontecesse, dariam cabo de Zathar Dovant assim que o vissem; e o momento parecia que chegaria em breve.
O trio atravessou os portões da cidade e cavalgou até chegar diretamente na capela da família Dovant, onde estava sendo velado o corpo do Dominante.
Do lado de fora muitos curiosos apenas observavam sem poder entrar, mas quando os soldados viram o ruivo e seus acompanhantes, abriram caminho.
Dentro da capela, além de alguns serviçais andando para lá e para cá e alguns guardas em volta do novo Dominante, Derick também viu Lenna e alguém que jamais pensaria ver outra vez.
— Não é possível... Aquele é Martillian?
— É sim, Derick. Ele nos ajudou em nossa jornada até aqui. — Novath respondeu.
Derick permitiu-se sorrir. Ele não havia concordado com a decisão da Ordem em relação a punição do velho alquimista, por isso absteve-se de votar na época da condenação.
— Fico feliz que tenha voltado, Martillian! — Disse ao se aproximar do homem.
— Faço minhas suas palavras, Derick. Dois Brunnes são sempre melhores que um.
— Já ouvi algo parecido. — Derick respondeu com um meio sorriso.
Ao perceberem a presença dos dois homens, as pessoas em volta da belíssima urna de mármore perolado onde estava depositado o corpo do Dominante Ermeneu Dovant, se viraram para os observar, mas Zathar apertou os olhos e fitou apenas Dennis.
— Não é possível... Dennis Pennant?
Lenna sequer pareceu notar a presença de Dennis, com um olhar investigativo ela andou calmamente até Derick.
— É... É... Mesmo você?
— Sim, Lenna... Sou eu mesmo... não disse que voltaria?
Sem nenhum aviso a linda ruiva de olhos azuis se atirou nos braços de Derick e demorou-se ali por um longo tempo, até que a voz de Zathar a trouxe de volta.
— Venha meu amigo, quero lhe mostrar uma coisa.
Derick se Desvencilhou de Lenna e encarou Zathar com rigidez.
Sua intenção era poder conversar antes com a mulher para tentar entender o que estava acontecendo, mas a afrontosa voz do traidor em seus ouvidos poderia colocar tudo a perder.
— Amigo? Você me chama de amigo?
— Sim, Derick, é claro que sou seu amigo, sempre fui. O que está acontecendo?
— Vou te mostrar o que está acontecendo! — Após dizer as palavras, Derick rapidamente desencaixou as armas de seu alaúde e partiu para cima de Zathar; que andou cambaleante para trás e acabou tropeçando e caindo no chão.
Toda aquela ação fora tão rápida que os soldados na sala sequer tiveram a chance de se aproximar, mas assim que o fizeram, se depararam com Dennis à frente de Derick já com uma espada nas mãos.
— Se chegarem perto, morrerão!
Os homens também já tinham sacado suas armas, mas detiveram o movimento assim que perceberam que uma das adagas do Beymutita estava encaixada na garganta do seu novo Dominante.
— Que loucura é essa, Derick? — Perguntou Novath, com os olhos arregalados.
— Eu estive em Beruhim, estive no castelo da conquista, sei o que ele fez, sei das coisas que prometeu a Nêmenas K'leut! Ele pode ter enganado a todos vocês, mas não me enganará!
O olhar de Derick emanava fúria, e um filete de sangue já escorria pelo pescoço comprido de Zathar.
— Derick, não é o que você está pensando!
— Lenna tentou trazer seu amado de volta à razão.
— Escute, Derick! — Martillian tencionou se aproximar de Derick com toda cautela, mas achou melhor não pôr a vida do novo Dominante em perigo. — Não sabemos exatamente o que você sabe, mas baixe essas armas e garanto que podemos explicar.
— Não há explicação, Martillian, este homem aqui, o que tanto dizia amar nossa família, vendeu nosso rei a Nêmenas K'leut e a seu braço direito sem qualquer pudor! Eu descobri o plano sórdido dos dois e viajei de Beruhim até aqui somente para matá-lo, e ninguém irá me impedir! Eu só não estou entendendo como ele conseguiu enganar a todos vocês! — Derick virou-se para Lenna. — Principalmente você, Lenna... sei o quanto Rikkar a estimava.
— Derick, não...
— T-Tudo bem, Lenna, se Derick esteve com Nêmenas K'leut, eu consigo entender a reação dele... — Zathar conseguiu balbuciar do chão.
— Derick... — Dennis chamou a atenção do amigo. — Não acha melhor o ouvirmos primeiro?
O beymutita encarou Dennis.
— Se você tivesse ouvido tudo o que eu ouvi, Dennis, já teria matado esse traidor.
— Você me contou tudo, lembra? Se ele realmente tiver feito as coisas que me falou, não tenha dúvida que ele merece morrer, e eu o ajudarei, mas um Brunne não costuma agir assim de forma tão insensata, dê-lhe ao menos a chance de se explicar.
— Derick, por favor... — Lenna tentou reforçar os apelos de Dennis.
Derick analisou toda aquela cena à sua volta: os homens de Zathar prontos para atacar a qualquer momento, seus amigos contra ele, e o traidor na ponta da sua arma, teria que tomar uma decisão.
— Você tem pouco tempo... Aproveite-o com sabedoria. — Derick falou afastando a arma não mais que uma polegada de distância da garganta do homem.
— O que quer saber?
— Não seja cínico, Zathar, você sabe muito bem que estou falando de meu sobrinho!
— E-Eu garanto que nosso rei está bem.
— Como ele poderia estar bem nas mãos de Nêmenas K'leut? Ou agora irá negar que o enviou para lá?
— Não, não vou, mas não o enviei sozinho.
— Do que está falando, Zathar?
— Eu o enviei com Lenna. Eles têm uma difícil missão a cumprir.
— Está louco? Afinal de contas, do que você está falando? Lenna está aqui! Como você pode tê-la enviado com Rikkar?
De repente Zathar ergueu as mãos.
— Saiam daqui! Todos vocês!
— Meu Dominante, ele tem uma arma apontada para o senhor! — Disse um dos guardas com espada nas mãos.
— É uma ordem! Podem se retirar, garanto que ele não me fará mal.
Os guardas se entreolharam meio contrariados, mas logo em seguida começaram a sair, assim como os assustados serviçais.
— Novath, vá buscá-lo. — Zathar ordenou ao ruivo, que saiu logo em seguida.
— Buscar quem? O que está acontecendo?
— Não se preocupe, Derick, tudo será explicado. — Disse Martillian, passando alguma confiança na voz.
Dennis, que já tinha relaxado um pouco com a saída dos guardas, foi até Zathar e estendeu a mão.
— Venha Zathar, aí não é lugar para um Dominante.
O homem caído olhou para Derick como se buscasse algum tipo de aprovação, mas só viu um torcer de lábios seguido por um fungar de descontentamento, contudo, logo depois o Beymutita se afastou com as armas ainda em punho, e Zathar enfim aceitou a mão de Dennis e se levantou.
— Eu entendo você, Derick, juro que entendo. Sei qual é a sensação de ver alguém a quem ama ser tirado de nós.
Não ouve resposta àquelas palavras, apenas um longo e frio olhar do homem com as armas.
— Logo tudo será resolvido, prometo. — Lenna andava na direção de Derick enquanto falava. — Não foi esse reencontro que sonhei para nós dois.
— Nem eu, Lenna, mas diante da situação, não acho que poderia ser diferente.
— Sei que você só está tentando proteger Rikkar, mas acredite em mim quando digo que não há com o que se preocupar... — a ruiva enfatizou.
— E por que não? Por que não param logo com esse mistério?
Antes que Lenna pudesse responder, Derick percebeu um grupo de pessoas entrar na capela. À frente vinha Novath, e logo ao seu lado, alguém que não imaginava ainda poder encontrar ali.
— Me deem licença, preciso abraçar meu tio. — Rikkar de Brunne foi até Derick e deu-lhe um longo e apertado abraço.
— Rikkar? O que está acontecendo? Você está bem? — O tio falou se afastando um pouco do sobrinho, e a confusão no tom da sua voz era notável.
— Sim tio, estou bem, não se preocupe, estamos entre amigos.
— Alguém pode por favor me explicar de uma vez por todas o que está acontecendo aqui?
Zathar se aproximou de Derick.
— É claro que posso, meu amigo. Mas ao contrário do que você imagina, a resposta não é tão simples, e ela se dá origem muitos anos atrás, quando outra trágica história se iniciou. — Derick fixou o olhar em Zathar e ficou prestando atenção no que ele iria falar. — Há quarenta anos, quando Nêmenas K'leut conquistou Beruhim, o rei Erandir de Brunne, seu pai, o perdoou e o fez governante. À época, Ermeneu Dovant estava com o rei, e acabou tornando-se amigo íntimo de Nêmenas. Ermeneu e Nêmenas visitavam-se constantemente, e a amizade crescia com o passar dos anos.
Derick ficou em silêncio relembrando as cenas que havia presenciado em Beruhim, então percebeu onde Zathar queria chegar.
— A senhora Dovant, Sua mãe.
Zathar sorriu com tristeza.
— Exatamente, Derick... Os dois se apaixonaram e ela engravidou.
Desde a conversa com Binn na noite da festa, e também na noite em que havia escalado o castelo, Derick sabia da história, mas uma coisa era ouvir pela boca de Benaffar Binn, outra totalmente diferente era ouvir pelo próprio Zathar Dovant, contudo, agora podia confirmar que realmente era verdade.
— Então é mesmo verdade que você...
— Isso Mesmo... eu não sou filho de Ermeneu..., mas sim de Nêmenas K'leut. — Zathar interveio antes que Derick terminasse seu raciocínio. — Nêmenas pensava que Ermeneu não sabia de nada, até que veio acordo de Kimuth.
Derick franziu a testa.
— Não entendo... Eu lembro daqueles dias, sei que o tratado de Kimuth foi criado para ser um novo grande acordo comercial entre os territórios, o que tudo aquilo teria a ver com o que está acontecendo agora?
— Era o que todos os envolvidos queriam que pensássemos na época. Mas eu descobri que o tal "tratado comercial" não passava de um plano ambicioso de Nêmenas K'leut para ampliar seu poder. A verdadeira história por trás de tudo, você saberá agora: é triste dizer, Derick, mas saiba que a derrubada dos Brunne deveria ter acontecido há vinte e cinco anos, e não à dez. Mikar Noutmander queria ter feito o que fez já naquela época, mas o rei Erandir de Brunne, seu pai, descobriu o plano. Então ele chamou seu jovem pupilo, Nêmenas K'leut, e o mandou assassinar Mikar. Contudo, na época Nêmenas era muito impetuoso, e o que deveria ser uma missão secreta para não mais que dez homens, acabou se tornando um banho de sangue desenfreado. Ele invadiu a baía com dez mil homens, e ainda assim não conseguiu matar Mikar Noutmander.
Derick parecia abismado com todas aquelas informações.
— Então foi por isso que meu pai nunca puniu Nêmenas K'leut pela invasão a Kimuth?
— A invasão à Kimuth deveria ter acabado com tudo. Seria a queda dos Noutmander e a ascensão de Nêmenas como governante de dois territórios... Pelo menos foi o que o rei Erandir prometeu.
— Mas tudo acabou dando errado... — Derick disse em tom contemplativo.
Zathar suspirou.
— O rei queria tudo acabado rapidamente e não queria ser envolvido. Talvez por ainda considerar o sangue Brunne que corre nas veias dos Noutmander, ou por outro motivo qualquer, ninguém nunca saberá. Mas o que eu acho... — Zathar hesitou antes de continuar. — Me perdoe pelo que vou dizer, Derick, mas a verdade é que penso que seu pai foi covarde. Ele esperou Nêmenas ganhar a guerra em Beruhim para só depois aparecer com seu exército, e também mandou matar Mikar por não ter ele mesmo coragem para tal. Mas ele só não esperava que algo desse errado. Como havia falado antes: Nêmenas e Ermeneu tornaram-se amigos naquela época, e Ermeneu foi um dos dez que o rei havia recomendado para a missão de assassinar Mikar Noutmander; e ele deveria estar lá naquele dia, mas ao invés disso, avisou os Noutmander e não foi a Kimuth, o que deu a chance de Mikar se preparar contra a invasão. E Logo depois disso, minha mãe apareceu morta.
— O preço... — Derick deixou escapar por entre os lábios.
— Exatamente... Apesar de tudo, eu consigo acreditar que Nêmenas K'leut realmente amava minha mãe, e planejava tomá-la de Ermeneu Dovant. Segundo o que ele próprio me confessou, sua intenção era levá-la para Beruhim e cuidar de nós dois, mas Ermeneu acabou descobrindo... E...
Derick sentiu tristeza nas palavras de Zathar.
— Pelos Antigos... Se realmente tudo isso for verdade... Tudo poderia ter sido evitado... O meu pai... Ele foi um fraco, e seu legado pagou caro pelo seu erro. — Derick dizia aquilo com imensa tristeza.
— Muitos anos haviam se passado desde aqueles acontecimentos, e então, um dia Mikar Noutmander foi pessoalmente até Beruhim. Ele propôs perdoar Nêmenas pelo que ele fizera no passado em troca de apoio para derrubar os Brunne. — Zathar suspirou. — O que eu acredito, é que Nêmenas só aceitou o acordo por que passou a odiar o rei Erandir, pois ele não puniu Ermeneu por matar minha mãe; já que sempre teve certeza de que o homem deitado nesta urna foi o autor do assassinato. — Zathar virou-se e olhou para o corpo sem vida de Ermeneu Dovant.
— Mas quando aconteceu a unificação, meu pai já havia morrido há alguns anos, como poderia pagar? — Disse Derick.
— Não se engane, Derick, odeio Nêmenas K'leut tanto quanto odeio qualquer outro Dominante, mas de uma coisa não posso duvidar, do amor que ele sentia pela minha mãe. Nós tivemos longas conversas enquanto estive lá, e ele me confessou que no dia que ela morreu, não lhe tiraram apenas a mulher que ele amava, mas também tiraram seu coração. Nêmenas acha até hoje que alguém tem que pagar pela morte de sua amada, e por isso disse que apoiou Mikar Noutmander. Em contrapartida, convencer Ermeneu Dovant foi mais fácil. Erandir de Brunne sabia sobre a traição da esposa dele e nunca lhe contou, o que ele sempre considerou uma traição pessoal. Quanto a Hamudd Leyfout, segundo o que todos dizem: ele não teve escolha, senão honrar a palavra firmada por seu pai, que com certeza havia calculado que três exércitos eram mais que um, e então tornou-se o quarto. Na calada da noite um sórdido acordo foi firmado: eles apoiariam Mikar Noutmander com seu plano traiçoeiro, e no futuro, em uma data não estipulada, quando todos já tivessem explorado ao máximo as riquezas de Beymuth, uma nova reunião aconteceria para tornar Mikar Noutmander o novo rei de Valanthar; o que sabemos, nunca aconteceu.
Derick baixou a cabeça com tristeza. Relembrar todos aqueles eventos que destruíram sua cidade e sua família lhe traziam dor ao coração.
— Todos sabiam que esse tratado era frágil desde o início, não é? Afinal, para mim agora fica claro que havia muito ódio entre as partes envolvidas, seria apenas uma questão de tempo até ele ruir. — disse Derick.
Zathar assentiu.
— E ele de fato ruiu, e foi exatamente após a morte de Mikar Noutmander; quando se abriu um vácuo no poder. Logo Ermeneu começou a mandar enviados para tentar firmar um acordo com Nêmenas K'leut, tentando convencer a apoiá-lo em um plano para derrubar os Noutmander, mas todos os enviados falharam. Então, vendo ele que nada conseguiria através de seus lacaios, por último enviou "seu filho", achando que eu conseguiria fazer o que nenhum dos outros conseguiu. Mas o fato é que assim como cada um deles, eu também tinha meus próprios objetivos, e faria o possível e o impossível para alcançá-los.
Naquele momento Derick encarou Zathar como se o analisasse. Ele conhecia o homem desde que ele nascera, e jamais imaginaria que não seria filho de Ermeneu Dovant, e olhando-o frente a frente agora, era muito estranho associá-lo a Nêmenas K'leut. O porte físico até que era semelhante, mas no que dizia respeito ao modo de ser, eram pessoas de mundos totalmente opostos. O Dominante de Beruhim era um homem rígido, conciso e direto em suas palavras, era também bruto e possuía um olhar feroz, mas era autêntico e muito fácil de se julgar. Enquanto Zathar era um homem delicado, manso com as palavras e possuía uma grande inteligência. Derick sempre o achou um enigma, mas até onde se lembrava, ele realmente havia sido um ótimo amigo da família real, e o companheiro mais leal de Riudar de Brunne, seu sobrinho. Em certos círculos até comentavam que a amizade dele com o príncipe era de uma proximidade muito além das que homens deveriam ter, mas Derick não ligava para o assunto, pois até onde se lembrava, sempre gostou de Zathar, e até o admirava por sua lealdade a sua família, e esperava que aquilo não tivesse mudado.
— Nêmenas K'leut é um grande mentiroso. — Zathar continuou. — Quando ele me viu parado na sala de audiências onde me recebeu, veio ao meu encontro e disse que queria cuidar de mim, e sem nunca ter me visto antes. Ele sabia que Ermeneu me desprezou por toda sua vida, por isso disse que me queria como seu herdeiro. Ou seja: ele tentou me manipular, assim como esse homem deitado nessa urna. Ele me Mandou de volta para firmar um "acordo" com Ermeneu, para derrubarmos os Noutmander, mas o tal "acordo" na verdade seria assassinar Dovant. Mensagem essa que nunca transmiti, e que com certeza o deixou aflito por nunca saber o que eu realmente iria fazer.
— Mas no final você acabou fazendo o que ele queria... — Derick disse em tom sombrio, enquanto olhava para o corpo de Ermeneu Dovant.
— Sim, mas não quando ele quis, e não para os seus propósitos. Ao invés disso, mandei cartas dizendo que enviaria o último filho de Reston de Brunne para ele, o que de certa forma cumpri.
Naquele momento Derick pareceu começar a entender o que estava acontecendo.
— Ainda não sei como você conseguiu acesso ao castelo da conquista, mas imagino que Nêmenas K'leut tenha ficado confuso com sua chegada. — disse Zathar.
— Sim, foi tudo muito estranho, e muita coisa que não entendi naquele momento, agora começo a entender.
Zathar passou a mão no pescoço e limpou o filete de sangue que começava a escorrer.
— Ao me enviar de volta para Bérniff, o que Nêmenas K'leut queria que Ermeneu pensasse, era que o acordo que ele havia proposto estava selado, e foi o que dei a entender por algum tempo, mas impaciente como Dovant era, acabou enviando um novo emissário para tentar selar o acordo de vez. Na verdade, o que ele realmente queria era tornar-se rei, mas pelo visto, de alguma forma você conseguiu entrar nessa história, e como teve contato com Nêmenas, não tenho dúvida que ele deve ter ficado muito desconfiado.
— Por coincidência, ou destino, chame do que quiser, acabei encontrando o tal emissário. Eu o matei e assumi sua falsa identidade, mas mesmo que ele conseguisse chegar a K'leut, tudo o que conseguiria era perder a cabeça, pois o homem estava convencido que na verdade o emissário era um assassino disfarçado. O fato é que ao me pôr nessa situação, foi eu quem quase acabou morrendo, e somente o fato de eu estar aqui depois de tudo isso, pode-se chamar de milagre. — Derick falou sem emoção.
— Agora você entende tudo o que aconteceu? Como toda essa história começou? Entende por que tive que fazer tudo isso de forma muito cautelosa, sem poder revelar qualquer mínimo detalhe para ninguém?
Derick assentiu em silêncio.
— Precisava ser assim, Derick, tudo ainda é muito perigoso, e na verdade não tenho certeza se dará certo, mas posso garantir que o plano foi muito bem arquitetado. Eu realmente enviei Lenna e o rei àquele homem que diz ser meu pai... Exatamente como havia prometido a ele. Só não disse que não seria o verdadeiro rei, nem a verdadeira Lenna.
— Não estou bem certo se entendi essa parte.
— Sei que não, meu amigo, e é compreensível, mas o fato é que sempre amei sua família, inclusive, acima da minha própria, se é que podia chamar isso de família. — Naquele momento ele olhou novamente para o corpo de Ermeneu Dovant. — Mas quero que fique claro que jamais amei ninguém como amei Riudar.
— Zathar... — Derick se aproximou do Dominante de Bérniff. — Por favor, diga de uma vez, se você não mandou Lenna e Rikkar para Beruhim, como estou podendo comprovar com meus próprios olhos, mas ainda assim continua dizendo que os mandou... então me diga... quem mandou para lá, e com quais propósitos?
Antes de responder, Zathar andou calmamente até o corpo do Dominante morto.
— Este homem à minha frente, que nunca conseguiu me amar, que nunca foi capaz de me respeitar, que matou minha mãe quando eu ainda era criança... ele também tentou me matar no dia da unificação. Se eu não tivesse me atrasado um pouco mais em Vilamar naquele dia, também seria contado com os mortos. Este mesmo homem, depois de tudo o que fez em todos esses anos, ainda teve a coragem de tentar me manipular, usar minha história de vida em seu próprio benefício para tentar matar Nêmenas K'leut, algo que ele próprio não tinha coragem de fazer, pois sempre foi um covarde. — Naquele momento Zathar cuspiu no defunto. — E eu fui a Beruhim. Assim como ele queria, ah se fui! Eu tinha certeza que lá alguma oportunidade se apresentaria, e ela se apresentou na figura de Nêmenas K'leut, que disse me amar sem sequer saber quem eu era, sem sequer saber das mágoas, sentimentos e dor que existiam dentro de mim! Mas não... com certeza ele não me amava... era apenas mais um tentando tirar vantagem do pobre, excluído, sem amor e esquisito... Zathar... — naquele momento os olhos do alto homem marejaram. — Mas como eu poderia amá-lo? Como poderia respeitá-lo? Por quê? Só por que ele deitou com a minha mãe e me gerou? Não, eu não poderia. Mas não houve tempo para que eu digerisse suas palavras, pois logo também mostrou sua verdadeira face para mim. Tudo o que ele queria no final das contas, assim como esse homem morto à minha frente, era acabar de uma vez por todas com o pouquinho de paz que ainda existia em Valanthar, no final das contas tudo que eles queriam era o poder... apenas o poder pelo poder, e nada mais. Mas foi ali que vi uma oportunidade, e eu a aproveitei. — Zathar voltou-se para Derick. — Esses homens tentaram me manipular, meu amigo, tentaram me fazer de joguete em suas mãos, tentaram brincar com meus sentimentos, acima de tudo, tentaram destruir de uma vez por todas o nome que sempre amei e sempre vou amar... o nome Brunne. Esse homem... — Zathar apontou para o cadáver. — Já teve seu pagamento por tudo o que fez; e ao contrário do que você possa estar imaginando, não fiz isso por mim. Fiz por meu rei Reston de Brunne, por Rhemar de Brunne, pela rainha Selina de Brunne, por Rikkar de Brunne, fiz por você, Derick de Brunne, mas acima de todos... fiz por Riudar de Brunne. Nunca mais duvide de meu amor pelo nome Brunne, Derick. Saiba que a maldita unificação nunca foi e nunca será esquecida! E todos aqueles que de alguma forma contribuíram para que aquelas atrocidades acontecessem, pagarão! — Zathar andou até ficar a um passo de Derick. — Eu não esqueci que Hamudd Leyfout esteve lá naquele dia, que Mikar Noutmander esteve lá naquele dia, que Ermeneu Dovant esteve lá naquele dia, e também não esqueci que Nêmenas K'leut esteve lá naquele dia. Você quer saber quem eu enviei para Beruhim, Derick... eu enviei a morte. Eles pagarão por tudo... Pagarão pelo que fizeram ao meu Riudar.
Derick enfim guardou suas armas.
— E agora, o que acontecerá?
— A guerra bate à nossa porta, meu amigo, mas não se preocupe, estaremos preparados quando ela se apresentar. Amanhã partiremos para Beymuth, e quando enfim lá chegarmos, o rei entrará na cidade à frente de um exército, com o estandarte amarelo das espadas cruzadas fulgurante, sublime, e no mais alto mastro que encontrarmos!
Derick percebeu os olhares de satisfação à sua volta. Ele também gostaria de ostentar o mesmo olhar, mas esteve muito próximo aos dois homens ardilosos de Beruhim, e sabia que não era para serem desprezados, principalmente o esperto Benaffar Binn.
Contudo, não era hora para continuar aquela conversa. Estava cansado, com fome e com os pensamentos girando em sua cabeça como um furacão. Tudo o que ele queria naquele momento era matar a saudade de seu sobrinho e de Lenna, poder tirar aquela pesada barba e se livrar daquele incômodo cheiro de poeira e cavalo. Com toda certeza o dia de amanhã traria suas próprias dificuldades, mas o intrépido Derick Lancaster estaria lá para enfrentá-las.
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