Derick
Um novo Começo
E
então, Lancaster, comeu ou não comeu a Allana Kent?
— Humpf... Você e sua lendária educação não é, Pennant?... Mesmo depois de todo esse tempo ainda não aprendeu que não se deve falar assim de uma dama? — Derick sorria enquanto tentava se esquivar da maliciosa pergunta do amigo.
Lembrava das inúmeras noites que ambos saíam com Novath e Tim Baker pelas ruas Boêmias de Beymuth. Os quatro homens eram conhecidos como Os Cavaleiros do Apocalipse, já que era frequente arrumarem confusão por onde quer que passassem, com algumas até mesmo terminando em morte. Geralmente o motivo era mulheres; elas sempre se ouriçavam quando viam entrar os quatro belos rapazes, todos muito bem nascidos, muito bem treinados nas artes de esgrima e já com alguma fama. E numa dessas loucas noites, Derick conquistou o direito de cortejar a herdeira Kent depois de vencer uma luta corpo a corpo contra Brummer Walt, um conhecido cavaleiro, mas o final daquela noite nenhum dos seus amigos jamais saberia, e isso sempre os consumiu.
Derick recordava dos outrora longos cabelos loiros ondulados de Tim Baker, dos perspicazes e profundos olhos azuis de Novath, que tanto lhe lembrava os de Lenna, e também da sempre bem aparada barba de Dennis Pennant; Naquela época o cavaleiro já era tão zombador quanto agora, só não imaginava que depois de tudo que o amigo vivera, ainda manteria o mesmo espírito gracejador de antes, mas estava feliz por ele conseguir trazer de volta um pouco de seu espontâneo espírito, que sempre fora sua marca registrada. Foi quando de repente o homem empolou a voz tentando parecer bajulador e jocoso ao mesmo tempo:
— É que nem todos têm a educação de um príncipe real, meu senhor...
Derick sorriu.
— Não se trata de ser um príncipe ou mesmo um rei, o fato é que já conheci mendigos com mais educação que você, meu caro amigo.
— Bem, a julgar pelas minhas atuais condições financeiras, não posso dizer que estou muito melhor que um mendigo.
Naquele momento os espontâneos sorrisos de Derick se esvaíram.
— Isso mudará assim que coroarmos Rikkar, reestabelecermos a ordem e compensarmos todas as injustiças infligidas ao nosso povo, meu amigo.
— A única justiça que sempre desejei foi a cabeça de Mikar Noutmander em uma estaca, mas o desgraçado conseguiu escapar até mesmo disso. Contudo, me contento com a cabeça do filho dele, que pelo que todos dizem, é do tamanho da cabeça de uma vaca.
Derick não conseguiu segurar o riso.
— Você não faz ideia do quanto o seu senso de humor fez falta naqueles subsolos, Dennis. Não é nada fácil ter que lhe dar com a rigidez do Hover, ou a constante carranca do Ronnar. Uma pena que não fui buscá-lo antes, meu amigo.
— Eu mesmo já não me lembrava mais de quem eu era, Derick..., mas aquele pestinha tinha um dom com as palavras...
— Está falando do Skiff?
— Sim.
— Como ele anda?
De repente Dennis Pennant sorriu com tristeza.
— Ninguém sabe... Depois que ele me entregou a mensagem de Lorde August, eu retornei ao castelo, e depois de todos os eventos que se sucederam, acabei descobrindo que ele havia sumido, e até agora não apareceu. Minha opinião é que o garoto está morto. Aquela região é infestada pelos malditos unificados, e os desgraçados vivem matando gente apenas por diversão.
— É realmente terrível... — Derick anuiu com a cabeça. — Eu gostava muito do rapaz. Roguemos aos Antigos que de alguma forma ele tenha conseguido sobreviver.
— Os Antigos são cruéis, Derick... e não seria a primeira nem a última vez que eles simplesmente ignorariam nossas preces.
— Skiff sempre foi o mais leal dentre todos, Dennis, não tenha dúvida! Sempre prestativo, inteligente e muito apegado à Rikkar... se realmente o tivermos perdido, será uma perda irreparável.
— Lorde Redmond sentiu mais que todos, Derick. Como você bem sabe, Skiff foi seu braço direito por muito tempo, diria até que um amigo. Mas acho que isso não importa mais, o que importa agora é que você ainda não respondeu à pergunta... e então, — Dennis arqueou uma das sobrancelhas antes de concluir — Comeu ou não comeu a tal Alanna Kent?
Derick sorriu outra vez.
— Quem sabe um dia te conto.
— Tudo bem então, que os Antigos nos permitam tal conversa no futuro.
— E quanto a você, Dennis... me diga como conseguiu sobreviver naquelas ruínas sozinho por tanto tempo?
Desde que haviam assassinado os soldados Bérniff na noite anterior, Derick vinha tentando encontrar uma oportunidade de conversar com o amigo sobre seu passado. Ele queria saber como realmente Dennis se sentia, pois tinha ciência que o homem havia passado por coisas terríveis, e ficar isolado naquelas ruínas por tantos anos acabaria com qualquer um, entretanto, ele também sabia que os Pennant não eram qualquer um; eles eram fortes, decididos e norteados pela honra, apesar de também saber que as pessoas mudavam, e o fato deles não se verem há tanto tempo não era o suficiente para que não percebesse que aquele Dennis não passava de uma casca do que fora outrora, e as piadas, risos e gracejos poderiam muito bem ser apenas um mecanismo de defesa para não pensar em tudo o que havia lhe ocorrido.
Pennant fez uma expressão de descontentamento quase imperceptível com o lábio superior esquerdo depois de ouvir a pergunta, mas Derick percebeu.
Dennis suspirou. Parecia estar ganhando algum tempo para encontrar as palavras antes que enfim elas saíssem de sua boca.
— A última ordem do maldito Noutmander naquele lugar foi para que ninguém me matasse. Ele queria que eu continuasse vivo para contemplar todos os dias o que ele havia feito com a minha família... Maldito homem.
— Ele terá o que merece. Os portões do inferno estão abertos para recebê-lo com festa.
— Gostaria de uma punição mais palpável, Derick, e eu a esperei por muito tempo. No início, quando me uni a Ordem, acreditei com todas as forças que isso me seria dado, mas se tiver pelo menos a certeza que o desgraçado queimará eternamente em suplício, já me trará algum alento.
— Não tem mais confiança na nossa causa, Dennis?
— Claro que sim, se não tivesse não estaria aqui com você. Só não tenho certeza que ao final de tudo, todos estaremos vivos para festejar.
—Talvez você tenha razão, mas a verdade é que não existe sucesso em uma guerra se não houver sacrifícios, e se tiver que trocar minha vida para ver meu sobrinho subir ao trono, não pensarei duas vezes.
De repente um momento de silêncio se instaurou entre eles e somente o som dos cascos dos cavalos andando em ritmo cadenciado eram ouvidos, até que Dennis Pennant falou:
— Me perdoe o questionamento que irei fazer, Derick, mas já que estamos sendo sinceros um com o outro, gostaria de perguntar o que inevitavelmente alguém um dia acabaria perguntando: até quando pretende usar o sobrenome Lancaster?
Derick olhou de soslaio para o amigo.
— Não pense por um momento que não tenho orgulho do nome da minha família, mas... É muito complicado para mim responder essa pergunta de forma tão simplista. A verdade é que nunca pensei na possibilidade de um dia poder voltar a ser chamado de Brunne. Um homem tem que seguir o que ele acredita; uns seguem a força, outros o dinheiro, outros a coragem, outros o sangue, e outros... O coração. Talvez alguns possam dizer que de todas essas possibilidades o coração seria a razão mais fraca, mas meu coração me guiou até aqui, e ainda está guiando.
Subitamente Dennis parou o cavalo e logo depois Derick fez o mesmo.
— Derick, me perdoe o que vou dizer, mas... O seu coração está morto... E já faz muitos anos.
Derick não respondeu, apenas olhou para frente, cutucou as costelas do seu cavalo e voltou a andar com o animal.
Dennis teve que fazer o mesmo, e logo depois já estava pareado ao lado do amigo.
— Sei que você tem razão, Dennis; talvez todos tenham, mas a verdade é que Eliza deixou raízes tão profundas em mim que, mesmo quando tento pensar em outra mulher, a imagem dela acaba sempre voltando a minha mente.
— E você já tentou?
Derick não respondeu à pergunta.
— Seu silêncio é minha confirmação. Está vendo, Derick? Se der uma nova chance a si mesmo, poderá seguir sua vida normalmente. Um Brunne vivo é uma dádiva que os Antigos nos deixaram, mas dois seria ainda melhor!
— Ainda que quisesse voltar a ser reconhecido publicamente como um Brunne, houve um decreto real me excomungando, não se lembra?
— Claro que me lembro, mas você sabe que não foi isso que seu irmão fez. O rei não o proibiu de usar seu nome, ele só o tirou momentaneamente da linha sucessória, pois tudo o que ele queria era te dar uma lição, trazê-lo de volta à razão, queria que você voltasse atrás em sua decisão. Convenhamos, Derick: quebrar um acordo de casamento que poderia fortalecer novamente a aliança entre Beymuth e Bérniff não foi algo assim tão banal. Seu irmão apenas agiu como convinha a um rei, mas eu, à época, na qualidade de um cavaleiro real, convivia com ele e sabia o quanto aquela decisão lhe havia custado. Contudo, certa noite, enquanto bebíamos vinho na sala de leituras, o ouvi falar em alto e bom som: trarei meu irmão de volta e rasgarei esse pedaço de papel inútil. Sor Jansen Hover também estava lá, ele poderá confirmar. Se não tivesse acontecido tudo o que aconteceu, certamente o rei o teria colocado de volta na linha sucessória.
— Não importa o nome que eu esteja usando, Dennis... Sempre serei um Brunne. Está dentro de mim, corre nas minhas veias. Muito menos me preocupo se um dia serei recolocado na linha sucessória, o que realmente me importa é colocar Rikkar no lugar em que ele tem que estar, depois disso veremos o que acontece.
Dennis sabia que havia sabedoria naquelas palavras, então não as refutou.
— Sabe de uma coisa, Lancaster? Acho que os cavalos já descansaram tempo suficiente, melhor voltarmos a cavalgar, a noite se aproxima e não quero ser novamente surpreendido pelos bérniff.
Derick apenas assentiu e esporeou seu cavalo com um pouco mais de força.
Os dois amigos se puseram a galopar e rapidamente começaram a ganhar terreno.
As imensas extensões territoriais de Bérniff eram compostas por grandes descampados e principalmente inúmeras elevações de terra.
Os povoados e vilas eram separados por muitos quilômetros de distância, e Derick havia feito o mesmo trajeto algumas vezes quando ainda era bem jovem; umas apenas para desbravar a até então desconhecida Bérniff, outras foram visitas mais oficiais, e nelas estava sempre acompanhando seu pai, o rei Erandir de Brunne.
Entretanto, uma viajem em particular, quando já era um homem feito, nunca havia saído de sua memória; o grande baile em homenagem ao seu noivado com Laila Dovant.
No dia anterior ao baile, um pequeno torneio havia sido realizado apenas para membros de origem nobre. As modalidades incluíam justas, combate corpo a corpo e uma corrida de cavalos que se iniciava nos portões do castelo Dovant, indo até a colina Frisall, onde agora os dois amigos começavam a subir.
Derick sabia que se Reston tivesse participado da corrida provavelmente seria o campeão, mas na época o irmão já era o rei e estava atado à protocolos que o impediam de se pôr em perigo sem qualquer motivo relevante, e ele agradeceu por aquilo, pois sem a presença do irmão, ganhou a corrida sem muita dificuldade. Hoje, muitos anos depois, Derick alcançava o topo do lugar que lhe trazia boas recordações, mas quando ambos olharam para a estrada abaixo, perceberam que inúmeras pessoas com carroças e mesmo a pé, começavam a se aproximar.
Eles desceram a colina e passaram por muitos dos campesinos e perceberam que pareciam estar com pressa em ir na direção contrária ao castelo Dovant.
— Tem algo acontecendo, Derick.
— Já percebi, meu amigo.
De repente o ritmo do cavalgar se tornou em um rápido galope, e os dois amigos partiram o mais rápido que podiam em direção ao castelo.
O dia já estava quase se pondo e o céu começava a mudar de um azul claro para um roxo escuro.
As muralhas do castelo Dovant já podiam ser vistas mais à frente, e em pouco tempo os dois amigos estariam lá, mas então um pequeno garoto gritou no meio da estrada:
— O DOMINANTE ESTÁ MORTO! O DOMINANTE ESTÁ MORTO! NÃO VÃO PRA LÁ!
Os cavalos relincharam com os fortes puxões que os dois homens deram nos cabrestos, e eles voltaram até o menino.
— O que foi que você disse, garoto?
— Disse que não adianta ir pra lá, menestrel, não há para quem cantar! O Dominante Dovant está morto! Houve muita luta dentro do castelo e a cidade inteira está com medo do que possa acontecer a partir de agora, por isso estamos partindo para bem longe até que tudo se acalme.
O olhar de Derick emanava preocupação.
— Tem certeza do que está dizendo, menino?
— Meu pai era um guarda dentro do castelo, tenho certeza do que estou falando... ele morreu lutando. Estão dizendo que Zathar Dovant assumiu o poder e que está convocando todos os vassalos com suas forças.
Derick olhou com aflição para Dennis.
— O desgraçado já pôs o plano de K'leut em ação! Temos que nos apressar, é bem possível que ele já tenha enviado Rikkar para Beruhim!
— Então não percamos tempo, Derick, precisamos ver com nossos próprios olhos!
Derick assentiu e logo em seguida os dois recomeçaram a cavalgar com os animais.
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