Derick


Conde Veloz




Outro estranho dia havia começado a bordo do navio Vingança, e mais uma vez Grabb passava por Derick, pigarreava e cuspia próximo aos seus pés.

— Tenha um péshhhimo dia, maldito! — O pequeno capitão sempre dizia.

E assim como vinha fazendo todas as outras vezes, Derick apenas sorria com sarcasmo e só por pirraça respondia:

— Um ótimo dia para vochhê também, bufão!

Como de costume, o pequeno homem bufava de raiva e seguia cambaleando para o porão afim de tomar seu desjejum.

Derick havia achado aquela situação uma piada de péssimo gosto de Benaffar Binn.

Com dezenas de navios beruítas ancorados no porto, ele tinha que enfiá-lo justamente no que tinha dado ao ex bufão?

Talvez o homem o quisesse passar alguma mensagem ou algo parecido, mas apenas havia causado uma raiva ensandecida em Grabb.

Não fosse a dúzia de soldados que Benaffar havia enviado junto com Derick para assegurar sua ida a Bérniff, era bem provável que o pequeno capitão o acordasse de madrugada com a ajuda de alguns marujos e o jogassem para fora do navio.

Porém, apesar de poder sentir a ira latente de Grabb, Derick sabia que o medo que o pequeno homem nutria por ele era maior que seu desejo por vingança, ainda mais por que o ex menestrel sempre mantinha seu alaúde o mais próximo possível, e aquilo parecia trazer calafrios à coluna já retorcida do outrora imediato.

O pequeno, e agora deformado homem, até podia ser uma criatura desprezível, mas era bem astuto no que dizia respeito a navegação, e em pouco tempo como capitão já havia formado uma pequena tripulação com quase quarenta marujos; no entanto, a verdade era que não se fazia necessário mais que isso, a pequena e esguia galé que ele tinha ganhado como recompensa por delatar Derick não havia sido projetada para transportar grandes quantidades de mercadorias ou pessoas, como geralmente eram os grandes navios mercantes. Pelo contrário, o Vingança era uma embarcação feita com perfeição para ganhar alta velocidade no mar, e talvez fosse esse o real motivo pelo qual Benaffar o enviara com Grabb afinal.

Derick sabia que o Dominante tinha urgência em assassinar Ermeneu Dovant, pois o homem pensava que Zathar logo em seguida assumiria o cargo e se tornaria um braço forte em suas pretensões, seja lá quais fossem. Contudo, o Beymutita tinha dúvidas quanto à essa "lealdade" de Zathar a K'leut, pois estava tendo uma clara prova da traição do homem aos Brunne, nome esse que o próprio Derick já ouvira Zathar fazer inúmeras juras de amor, e o fato por si só poderia significar que ele tinha seus próprios objetivos.

Apesar de tudo, a viagem a bordo do Vingança vinha sendo bem mais tranquila que a última no Donzela Sombria.

Os ventos eram constantes e nenhuma tempestade os incomodou ao longo de todo o caminho, a tripulação não era tão divertida quanto a que acompanhava o extrovertido capitão Taric Monderout, além dos soldados beruítas disfarçados de marujos também serem sisudos e nunca sorrirem, mas no final de tudo, o que realmente importava era chegar ao seu destino com rapidez e segurança, e essa tarefa, Grabb vinha cumprindo com perfeição, pois estava clara sua urgência em se livrar dele.

Como o esperado, o rápido navio havia ganhado pelo menos um dia de vantagem em relação ao tempo que um navio maior faria, e quando amanheceu naquele dia, Derick já conseguia ver o Porto de Bérniff se aproximar à sua frente, em pouco tempo estaria em terra firme.

Seus pensamentos ainda eram conflitantes em relação a tudo o que ouvira de K'leut e de Binn. Os dois homens tinham uma relação bem estranha para um mandatário e um subordinado, parecendo às vezes até que Benaffar tinha mais autoridade em Beruhim que o próprio Dominante. Para além disso, ele também não fazia ideia do que realmente estavam planejando, mas viu naquela estranha situação uma boa maneira de chegar o quanto antes a Bérniff.

A bem da verdade, ele só havia aceitado aquele falso acordo por acreditar que chegaria até seu sobrinho antes que Zathar o enviasse para os dois homens.

Na noite em que fora pego no quarto de Binn, sua vontade era matar o ardiloso braço direito de Nêmenas K'leut ali mesmo, e certamente o faria, se tivesse certeza de que toda a história com seu sobrinho não passava de um blefe, mas não podendo se dar ao luxo de confirmar se tudo aquilo era verdade ou não, preferiu fingir aceitar o acordo após perceber que as ameaças implícitas em relação ao rei, ainda que não confirmadas, não deveriam ser menosprezadas.

Matar um Dominante, definitivamente não estava em seus planos quando foi a Beruhim em busca da espada Régia; sabia que fazer aquilo seria algo extremamente difícil por conta de toda a segurança que o cercava. Em contrapartida, se fosse necessário, enfrentaria sozinho um exército para poder assassinar Zathar Dovant, o maldito traidor; o homem que sempre dissera amar a família Brunne, e que agora queria levar um dos últimos ainda vivo para ser cativo em Beruhim.

Derick estava decidido que enfiaria uma de suas adagas no coração da desprezível criatura com todo prazer.

— VAMOS ATRACAR!

Quando um dos marujos gritou, Derick sabia que a hora havia chegado, então ajeitou um pouco a gola do gibão verde e preparou-se para descer.

Novamente ele estava encenando o personagem do emissário arrogante, mas não seria por muito tempo, ele já tinha seus próprios planos.

— Enfim me verei livre de vochhê, maldito.

Ao ouvir a bizarra voz, Derick se virou para Grabb e falou:

— Fashho minha shhuas palavrashh.

— NÃO JOMBE DE MIM SHHEU MALDITO!

O rosto de Grabb ficou vermelho de ira ao ouvir a imitação de Derick.

O Beymutita apenas sorriu com visível ar de troça.

— Achha meshhmo que vai conchheguir enganar alguém shhó por que eshhtá shhe veshhtindo melhor e cortou os cabeloshh? Eu o reconhecheria em qualquer lugar, maldito!

Derick abriu ainda mais o sorriso.

— Mas ishho é por que ninguém me ama como vochhê, Grabb...

As veias do pescoço do pequeno homem saltaram para fora de tanta fúria.

— Shhabe, Meneshhtrel... Ainda não chegamoshh ao porto, quem shhabe não poshha jogá-lo para fora deshhte navio...

Derick sentiu a presença de alguns marujos ao seu redor. Imediatamente ele desceu uma mão até seu alaúde, mas os soldados que o acompanhavam, vendo aquela movimentação, aproximaram-se.

— O que está havendo aí?

Um deles perguntou.

— Não é nada demais, capitão, apenas meu amigo Grabb tentando se despedir de mim.

— SHHEU MALDITO!

— Acabem com isso agora! É uma ordem! — O capitão da escolta de Derick disse com pouca paciência e depois encarou o beymutita. — Você já pode descer.

Em meio àquela situação com Grabb, Derick nem se deu conta que o navio já estava atracado.

— Enfim... foi uma ótima viajem, Grabb, espero que possamos repeti-la o quanto antes! — Ele sorria, enquanto Grabb apenas grunhia e se afastava para a popa do navio.

Derick Lancaster pôs seu alaúde nas costas e desceu do Vingança.

Imediatamente depois disso, o navio ergueu a âncora e começou a se afastar do porto.

Fazia pelo menos doze anos desde que Derick havia pisado em Bérniff pela última vez.

Na ocasião estava noivo de Laila Dovant, a sobrinha do Dominante Ermeneu Dovant.

Na época ele era apenas um homem em busca de emoções e que estava prestes a casar com alguém que não amava.

Eliza Lancaster acabou trazendo o amor para sua vida, mas também acabou deixando um vazio com sua precoce morte, até hoje não preenchido.

Ele logo tratou de afastar os dolorosos pensamentos e caminhou em direção a algo que poderia resolver seu problema de locomoção.

Levaria pouco mais de um dia a cavalo até as pradarias Dovant, e sabia disso por que já havia feito o trajeto diversas vezes quando mais jovem, e agora teria que fazer outra vez.

— Por quanto o senhor me venderia este cavalo? — Derick perguntou ao cavaleiro andante com armadura desgastada e grandes bigodes escuros, enquanto ele escovava seu animal.

O homem espantou-se com a pergunta do homem com um alaúde nas costas, então o analisou dos pés à cabeça.

— Está louco, menestrel? Por que eu te venderia meu cavalo? E ainda que quisesse vender, o que te faz pensar que poderia pagar?

— Com o dinheiro que te darei poderá comprar outro facilmente. — Derick respondeu.

As enormes sobrancelhas do calejado cavaleiro andante se arquearam denotando espanto.

— Então por que você mesmo não compra um desses aí e me deixa em paz?

O beymutita olhou para o animal malhado com ar contemplativo, se aproximou e fez carinho em sua crina.

— Todos sabem que não há animal mais resistente, veloz e obstinado que um cavalo do vento em toda Valanthar para se fazer uma viagem longa e cansativa como a que eu preciso fazer; ele seria perfeito nesse caso, já que estou com tanta pressa. Não é à toa que a própria cavalaria real os usou desde os primórdios; o animal é tão forte que carregava até o imenso Malakar Jones nos lombos sem tanta dificuldade. — Derick falava aquelas coisas de forma contemplativa, como se relembrasse o passado.

O cavaleiro deu um passo apressado até o cabresto do animal e o afastou de Derick.

— Além de louco é burro?! Não está vendo que este não é um cavalo do vento?

— Exatamente! — Derick concordou. — Este não é um cavalo do vento, este é um belo mangalarga das terras do sul! Sabidamente o segundo cavalo mais veloz em todo o continente! Exatamente o que preciso neste momento, já que é o único por aqui.

— E é por isso que o tenho, seu cantor maluco! O uso para disputar nas justas, e tem dado muito certo! Vá cantar um pouco pelas esquinas e vê se me deixa em paz!

O tom do homem era irritadiço e pouco tolerante. Derick teria que fazer uma bela proposta se realmente quisesse conseguir o animal.

— Sempre que eu e meu irmão apostávamos corrida, fazíamos no lombo de um dos belos cavalos do vento... — Havia certa melancolia no tom da voz do beymutita.

— Quem? Você? Com um cavalo do vento? Hahaha! A fama de mentirosos que vocês carregam não é à toa, cantor! Quer saber? Já cansei de você! Vá amolar outro! — O cavaleiro andante puxou o animal pelas rédeas e começou a se afastar de Derick.

Derick desdenhou do comentário do homem e não procurou insistir no assunto. Decidiu que o melhor a se fazer era logo tentar conseguir o cavalo de uma vez por todas.

— Duas moedas de ouro.

De súbito o homem parou.

— Poderia ter começado por aí, seu idiota! — o cavaleiro falou se desfazendo da cara amarrada. — Tudo bem, chamou minha atenção. — Ele caminhou de volta até Derick. — Diga-me, cantor, para que precisa tanto de um cavalo tão veloz como o meu?

— Tenho uma canção para apresentar ao filho do Dominante, e o prazo é curto.

O homem esticou o olhar para as moedas na mão de Derick.

— Estou vendo que cantar paga bem.

— Já me disseram isso, vai aceitar?

O cavaleiro acariciou seu grande bigode como se estivesse ganhando tempo para dar uma resposta.

— Talvez pensasse em aceitar se fossem cinco...

— Nem um cavalo do vento vale tanto.

— Talvez não, mas como você mesmo disse: o filho do Dominante não pode esperar.

Com um pouco mais de insistência, Derick sabia que o homem aceitaria sua oferta inicial, mas o tempo realmente não estava a seu favor.

— Lhe darei três, e isso não é negociável.

O cavaleiro agora enrolava a ponta de seu bigode lentamente.

— Quatro e o seu sobretudo! Por mais que seja uma bela quantia, não me separaria do meu cavalo assim tão facilmente, eu e ele temos uma longa história juntos.

— E para que precisa do meu sobretudo?

— Em três dias haverá um baile em homenagem a bela donzela Mirina Von Tier, e seu pai está tão feliz com o florescimento da jovem, que decidiu estender o convite do baile até mesmo a cavaleiros andantes, classe da qual faço parte. Como disse: não é nada fácil para mim me desfazer do Conde Veloz...

Naquele momento Derick sorriu. Apesar de carrancudo, o velho cavaleiro havia dado um bom nome para o animal.

— Entretanto, se me der as quatro moedas e este belo sobretudo, farei o sacrifício de me separar do meu velho amigo.

Derick segurou-se para não sorrir. Sabia que tudo não passava de um grande teatro daquela velha raposa, mas também sabia que havia perdido a batalha. Ele tirou outras duas moedas de um saco enfiado em suas partes íntimas e deu ao homem junto com as outras. Em seguida tirou o sobretudo e também o entregou.

— Aproveite o baile.

Sem responder e nem se despedir do animal, o cavaleiro andante apenas se virou e partiu.

Derick havia disposto de uma boa parte do dinheiro que Benaffar havia lhe dado, e também de seu sobretudo, mas assim que colocou os olhos no animal, soube que ele o levaria até Zathar o mais rápido possível. Na verdade, em algum momento ele teria mesmo que se livrar daquela pomposa peça de roupa, já que a segunda parte de seu plano envolvia sim voltar a um personagem, mas não ao arrogante emissário Bérniff, como queriam Benaffar Binn e o Dominante, e sim ao contagiante e cativante Menestrel.

Contudo, não era habitual ver um simples Menestrel se vestir tão bem, a não ser aqueles que cantavam exclusivamente para o rei, como era o caso de Clóvis Benayon, famoso Menestrel do rei Erandir de Brunne, e uma grande inspiração para Derick aprender a tocar o instrumento.

O fato era que ele já havia decidido há muito tempo que não arriscaria ser desmascarado por qualquer pessoa que conhecesse o coletor assim que atravessasse os portões do castelo, entretanto, um simples menestrel andarilho com uma bela voz poderia ter alguma chance.

Seu novo plano já estava quase completo e agora só faltava fazer uma última coisa antes de enfim prosseguir sua viajem:

Ele foi a estalagem mais próxima, deixou seu cavalo na estrebaria, comeu uma bela torta de carne de porco, comprou mais algumas provisões e foi a uma pequena sala de banho para a etapa final; e, embaixo da água que corria sobre sua cabeça ensaboada, ele passou uma de suas afiadas lâminas nos cabelos, deixando somente um cocuruto liso e a hirsuta barba; ele riu sozinho ao perceber que se tornara uma versão menor de seu amigo Ronnar.

Contudo, mesmo agora, com apenas uma camisa branca, totalmente careca e com a barba por fazer, Derick Lancaster ainda tinha o porte de um Lorde. Seus ombros eram largos e sua postura altiva. Aqueles que tinham a sorte de poder conviver com um Brunne, sabiam que aquela era exatamente a aparência física de um membro da família real.

Ele pôs seu alaúde nas costas e montou no cavalo.

— Espero não o forçar demais, Conde Veloz.

Em seguida cutucou o animal nas laterais e cavalgou.



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