Derick
Espelho da Verdade
Já era tarde quando Derick Lancaster lutava contra o sono que queria levá-lo ao aconchego dos convidativos e macios lençóis de sua cama. Aquela seria sua última noite no castelo da Conquista, antes que enfim desse sua resposta ao Dominante e a Benaffar Binn pela manhã. Contudo, uma audaciosa ideia havia surgido em sua mente enquanto andava de um lado para o outro dentro do quarto, uma última cartada desesperada: escalar o castelo pelo lado de fora.
Ele sabia que aquilo era uma insanidade e que o risco de que o pegassem durante o ato era enorme, mas já havia decidido, e agora só esperava o tempo avançar para que pudesse colocá-lo em prática. Entretanto, ele estava descobrindo por conta própria que o tédio também poderia ser um inimigo à altura.
Foi quando lembrou que à direita da porta do quarto havia uma prateleira cheia de livros acima da escrivaninha. Ele achou que jamais teria tempo para ler naquele lugar, mas não via outra solução, precisava fazer qualquer coisa para que as horas avançassem.
Então foi dedilhando título por título, mas não se deparou com nada que lhe chamasse a atenção. E, quando começava a achar que aquela também seria outra tentativa frustrada, ele achou um livro com capa vermelha intitulado: A Donzela Cativa.
Com toda certeza aquele não era o gênero que mais gostava. Quando criança, sempre adorou os épicos sobre jornadas fantásticas de renomados cavaleiros ou mesmo as histórias de terror que sempre acabavam por trazer seu pai até sua cama para lhe acalmar, mas jamais chegou perto de um romance. Ele não podia dizer que suas preferências haviam mudado muito depois que cresceu, mas como no final das contas sua intenção era somente passar o tempo, talvez o conteúdo do livro viesse a lhe ajudar.
A história começava com uma jovem ruiva aprisionada em uma torre por um Duque malvado, que não estava aceitando muito bem o fato de ter sido rejeitado.
Meses haviam se passado e durante todo esse período a alimentavam somente uma vez por dia; o que a fez ficar muito magra e extremamente desesperada, ao ponto de desejar uma morte sem sentido e vazia.
Até que certo dia criou coragem e sentou-se no parapeito da janela, com seus longos cabelos ruivos caindo sobre suas coxas, e seu vestido esfarrapado tremulando ao vento na altura de suas canelas.
Assim havia decidido dar fim ao seu sofrimento. Contudo, inesperadamente alguém gritou lá de baixo, então ela cessou seu lamento.
E quando se esforçou para observar com seus olhos já fracos e sem vigor, pôde notar um imponente cavaleiro com armadura amarela, acenando para ela de cima de um belo cavalo do vento negro com todo a pompa.
Naquele momento Derick havia fechado o livro. Não soube exatamente por que fez aquilo, já que a história estava se mostrando até mais interessante do que imaginava, mas o fato era que depois de ler aqueles poucos parágrafos, apenas a imagem da mulher ruiva se desenhava em sua mente. Contudo, não fora na personagem do livro que pensou naquele momento, e sim em Lenna Longstrider.
Ele não esperava que em meio a tudo o que estava vivendo tivesse tempo para pensar em seus próprios sentimentos, mas a grande verdade era que ultimamente vinha ouvindo a doce voz de Lenna ecoando em sua mente:
Eu esperarei ...
Era fato que ele ainda amava a esposa falecida e talvez nunca deixasse de amar, mas também não podia negar que a imagem da bela ruiva de olhos azuis vinha se tornando mais frequente seus pensamentos do que havia planejado, chegando ao ponto até de roubar o tempo que passava pensando em Eliza Lancaster.
Assim que havia chegado no castelo Redmond depois da unificação e da perda de seus pais, os terríveis acontecimentos eram feridas vivas e muito recentes no peito de Lenna Longstrider, e por incontáveis dias a jovem apenas chorou desconsoladamente. Mas em certa feita apareceu Derick Lancaster.
Ele também estava destruído por tudo o que acontecera com Beymuth e a família Real, com o agravante de ainda ter perdido há bem pouco tempo sua jovem esposa.
A proximidade por conta de estarem reclusos nos subsolos do castelo Redmond e o sofrimento em comum, acabou por aproximar os dois, tornando-os amigos, e ambos acabaram se consolando naqueles momentos tão difíceis.
Lenna não conseguia decidir se o que mais assolava Derick era a perda do irmão e sua família ou a perda da sua esposa, pois sabia que Eliza havia sido a mulher quem ele mais amou.
Anos atrás o rei exigira que ele se casasse com Laila Dovant, sobrinha de Ermeneu Dovant, o Dominante de Bérniff. A moça até que era graciosa e o acordo havia sido selado, mas na festa de noivado realizada em Bérniff, ele dançou com uma certa jovem Lancaster de cabelos loiros e olhos castanhos; a paixão o arrebatou imediatamente, e uma semana depois ele se casou com ela e foi para Nerú, no continente dohanita. Reston de Brunne conseguiu localizá-lo e foi pessoalmente atrás para trazer o irmão de volta. O rei ameaçou tirar Derick da linhagem Brunne se ele não desfizesse a união, voltasse imediatamente para pedir perdão a Dovant e sua sobrinha pela quebra de acordo e honrasse sua palavra casando com Laila, mas Derick havia dito ao irmão:
— Com Laila foi feito um acordo, mas à Eliza prometi meu coração... E essa promessa eu jamais quebrarei!
Assim que o rei voltou a Valanthar emitiu um decreto anunciando o banimento de Derick de Brunne da linha sucessória.
Após saber do fato, certo dia Derick enviou uma carta ao seu irmão dizendo:
— Se não estou mais na linha sucessória e não sou bem vindo em Beymuth, não há por que ostentar o sobrenome Real, e estou abrindo mão dele.
A partir daquele momento ele viria a ser conhecido como Derick Lancaster, e não mais um Brunne.
Para todos os efeitos ele ainda era oficialmente um Brunne, e ostentava o sobrenome de outra família apenas para afrontar ainda mais o irmão, que queria separá-lo do amor de sua vida e casá-lo com outra, mas para quem o conhecia de perto ele não escondia o fato de que a ruptura com Reston era uma lacuna que ansiava preencher.
Para além disso, ele tentava não pensar naquelas coisas, pois tinha Eliza, e usava seu sobrenome com todo o orgulho.
Porém, seis meses antes dos eventos que arrasariam Beymuth e a família real, ela morreu de uma doença nunca descoberta. Então Derick voltou a Valanthar para tentar se reconciliar com o irmão, mas o rei sequer o recebeu.
Derick não queria ter de volta seu direito à linha sucessória, apenas queria pedir perdão ao irmão que ele tanto amava, mas decepcionou.
Lorde August, que sempre o teve como um filho, o acolheu de bom grado em seu castelo, até que a ruína se deu sobre Beymuth.
Desde então todos achavam que ele também houvesse morrido combatendo os unificados nos campos da Alvorada, a léguas do castelo real, que posteriormente ficaria conhecido como campos azuis.
Todavia, assim como muitos, ele vinha secretamente se preparando para o momento em que pudessem coroar seu sobrinho e se vingar daqueles que trouxeram a desgraça ao seu irmão e a Valanthar.
Para além de tudo isso, Derick não imaginava que hoje, depois de todos esses anos planejando vingança, viria a pensar em Lenna daquela forma.
À época, mesmo depois das mazelas advindas sobre todos, ele a havia consolado, mas a verdade é que ela também o consolou. Eles tornaram-se amigos, e depois de um ano ela já o amava profundamente.
No início ele não deu muita importância ao fato, afinal, ela era muito jovem e talvez o sentimento passasse.
Era bem verdade que ele já percebia os olhares da menina de outras ocasiões, mas sempre a viu como uma irmã mais nova, e sempre a respeitou, pois era amigo de longa data de seu irmão, Novath Longstrider.
Mas os anos foram avançando e o amor de Lenna por Derick só crescia. Ele sempre se martirizou por não conseguir retribuir esse sentimento, e isso de certa forma o afligia, pois não gostava nem de pensar na possibilidade de fazê-la sofrer.
Entretanto, inesperadamente, depois de todos esses anos e tão longe de casa e dela, algo parecia estar brotando dentro dele.
Sentiu-se um pouco culpado por pensar naquilo, não queria desonrar a memória da esposa morta, mas ainda assim, Lenna vinha ocupando a maioria de seus últimos sonhos, o fazendo se sentir vivo novamente.
Ainda não tinha certeza se o sentimento era verdadeiro ou se era apenas a distância entre os dois que estava causando aquilo, mas ele esperava ter tempo para descobrir.
Entretanto, aquilo não era o que mais importava naquele momento, pois esta seria a última noite que ele teria para procurar a espada régia. Por fim, sua última alternativa era mesmo se arriscar pelas paredes do lado de fora do castelo.
Então ele andou até a janela e olhou para baixo.
Estava há pelo menos quinze metros do chão e teria que ser muito cuidadoso ao realizar o que estava prestes a fazer.
Depois olhou para o céu e constatou que ainda estava escuro o suficiente, então se sentou no mármore gelado da janela com as pernas ainda para dentro do quarto, e lá ficou parado por um bom tempo até que se adaptasse à vertigem.
Uma brisa suave soprou seu rosto enxugando as gotas de suor frio que começavam a se formar.
Quando enfim criou coragem para pôr uma perna para o outro lado, ele viu uma movimentação abaixo de si. Era um soldado que chegava com uma imensa lança enquanto outro saía.
Uma troca de turno.
Derick pôs a outra perna para fora do castelo e se apoiou com os braços; agora não tinha volta.
Estava totalmente vulnerável a qualquer ataque a longa distância, e só esperava que nenhum dos guardas o visse naquele momento.
Ainda que estivesse naquela posição incômoda, ele pôde ver não muito longe as imensas muralhas que Nêmenas havia construído em volta das antigas. Era algo engenhoso e muito audacioso, além de proporcionar uma dupla proteção ao castelo.
Ele olhou mais uma vez para baixo, e agora pôde constatar que não era só um soldado que havia ali, mas pelo menos uma dúzia deles. Os homens estavam espalhados por todo o pátio externo, sempre andando em silêncio, carregando para lá e para cá as grandes lanças.
Teria que se apressar, senão seus braços ficariam cansados em breve.
Ele já tinha uma suspeita para onde teria que ir.
Se eu fosse um Dominante ia querer o melhor lugar do castelo.
Derick começou lentamente a escalar as pedras das paredes se apoiando nas fissuras que existiam entre elas.
A verdade era que a súbita percepção daqueles pequenos espaçamentos entre as pedras pela manhã no pátio, haviam lhe dado a louca ideia de fazer o que estava fazendo agora.
O tipo de construção com enormes blocos de pedras apenas encaixadas e sem argamassa entre elas, foi algo que só viu nas construções dentro das muralhas; de fato a simples sobreposição de uma pedra entrelaçada sobre a outra tornava as paredes mais belas de se olhar, contudo, aquele tipo de arquitetura era impensável para as muralhas externas, já que a mesma técnica usada por ele naquele momento, também poderia ser usada para assaltos de exércitos inimigos.
Ele agradeceu em pensamento pelo fato de o Dominante prezar mais pela beleza dentro das muralhas que pela segurança.
Em seus pés havia colocado algumas camadas de pano para que não fizesse qualquer barulho ou os machucasse, assim os apoiava com firmeza e seguia subindo.
A cada novo avanço que fazia, se certificava que sua mão também estava totalmente apoiada, e só então seguia para o próximo movimento. Ele escalou por cerca de dez metros e depois olhou para baixo. Seu estômago revirou e uma vertigem fez sua cabeça girar. Até pensou em voltar, mas àquela altura achou que era mais fácil continuar subindo do que descer.
Com muito esforço ele conseguiu escalar mais algumas pedras e então ouviu uma voz feminina acima de si. Notou que a janela era igual a sua e parecia seguir um padrão na torre.
A base era feita de uma pedra em cor preta e mantinha uma saliência que veio a calhar.
Ali Derick colocou os pés e enfim pôde descansar seus braços.
Pelos Antigos! Por que estou fazendo isso?
Naquele lugar ele demorou-se um tempo para que recuperasse seu fôlego por completo.
A voz feminina agora havia se transformado em gemidos e risinhos estridentes. Ele se esgueirou lentamente até a janela, olhou com muita cautela, e então pôde ver de onde vinham os gemidos; saíam de um casal, que juntos pareciam formar uma imensa bola de carne; o redondo homem estava por cima da mulher, enquanto ela, que tinha uma forma anatômica semelhante à dele, estava por baixo.
Dela apenas se podia ver as pernas, os braços e os cabelos negros, mas sem dúvidas eram gemidos femininos.
Por algum motivo Derick achou conhecer o homem de algum lugar, mas talvez fosse apenas impressão.
Quem sabe pudesse entrar no quarto, subjugá-los e depois vasculhar o castelo a partir dali. Estava quase decidindo que era aquilo que iria fazer, mas antes de pular a janela, decidiu olhar mais uma vez para cima. E então, como se tivesse surgido do nada, ele viu uma enorme sacada acima de si. Ele olhou com mais atenção e concluiu que era a única que havia visto em toda a parede daquela torre.
Tem que ser ali...
Derick analisou uma última vez o interior do quarto e ponderou suas opções; pular aquela janela era o caminho mais fácil a seguir, mas também poderia encontrar resistência pelos corredores. Entretanto, se aquela sacada acima fosse parte dos aposentos de Nêmenas K'leut, era um bom motivo para se arriscar um pouco mais escalando.
Se por acaso o Dominante estivesse com a espada régia naquele castelo, aquele lugar seria o mais seguro para guardá-la.
Derick mordeu os lábios com apreensão. Seus pensamentos eram conflitantes a respeito do que deveria fazer, mas a decisão teria que ser tomada rapidamente.
Ele olhou outra vez para o interior do quarto e percebeu que o imenso casal continuava a fazer o que estava fazendo. Depois olhou para cima e viu a sacada um pouco iluminada por uma claridade que vinha de um lugar desconhecido.
Ahhh! Que os Antigos me levem!
Ele pensou e depois começou a escalar novamente.
A cada centímetro que avançava, em seguida olhava para baixo a fim de se certificar que ninguém o estava vendo.
Ainda faltava alguns metros e seus braços pareciam ter se cansado mais rápido do que antes.
Suas mãos tremiam tanto que ele chegou ao ponto de não saber se elas o sustentariam na próxima pegada, foi quando enfim conseguiu alcançar a sacada. Em um último esforço saltou para o lado de dentro e ficou abaixado atrás de um enorme vaso com uma robusta planta recuperando o fôlego.
A sacada era enorme e ele pôde ver que também era uma espécie de jardim suspenso. Há alguns metros de si, viu algo que não esperava: um guarda parado com uma lança em frente ao que parecia ser a entrada de um quarto.
Quem mais teria guardas ao seu dispor o tempo todo? Tem que ser aqui!
De repente o guarda pôs a lança no ombro e começou andar como se estivesse patrulhando o lugar. Primeiro ele foi para o outro lado do jardim, mas em seguida veio na direção de Derick.
Não terei escolha.
O soldado chegou bem próximo do lugar onde o Beymutita estava escondido, mas incrivelmente não o viu.
Assim que o homem se virou para retornar ao seu ponto inicial, Derick saiu detrás da planta, pôs uma mão em sua boca e o outro braço em seu pescoço.
O homem se debateu como pôde tentando ao máximo se livrar do aperto, e vendo que não conseguiria, tentou levar a mão à um punhal em sua cintura, então Derick não teve outra opção senão matá-lo torcendo seu pescoço com toda força.
Assim que caiu, Derick arrastou o corpo do homem até o lugar escuro onde havia se escondido, depois se esgueirou até a entrada do lugar, e assim que observou melhor, deduziu que aqueles aposentos realmente só poderiam ser do Dominante.
O Beymutita não se recordava de ter visto tanto luxo assim, nem mesmo nos aposentos do seu irmão, o rei.
Ele observou que havia três camareiras em lugares diferentes do imenso quarto, e todas estavam sempre em movimento cuidando de seus afazeres. Havia também uma quarta mulher, estava em frente a uma grande penteadeira com um belo espelho emoldurado, e aplicava uma espécie de tinta nos cabelos de um homem que estava sentado de costas. Quando Derick pôde observar melhor, percebeu que era Benaffar Binn.
Por cima, os cabelos do homem eram totalmente negros como a noite, mas por baixo os fios brancos minavam como água de uma nascente.
Derick achou aquilo muito estranho, e achou ainda mais estranho o fato dele estar ali naquele quarto suntuoso ao invés do próprio Dominante.
De repente batidas na porta interromperam o trabalho das camareiras.
— Depois terminamos isso, queridas. — Benaffar falou com amabilidade, e as mulheres saíram do imenso quarto.
Logo depois, Nêmenas K'leut adentrou. Ele trazia uma garrafa na mão e parecia estar bastante bêbado.
— Por que demorou tanto? — Benaffar perguntou.
— Estava cansado, passei o dia ouvindo as lamentações do povo, já que você não quer se dar ao trabalho. — O Dominante andou até uma pilastra perto de onde estava Benaffar e escorou-se com a garrafa na mão.
— Você sabe que não deve beber tanto, já que nesse estado as palavras escapam de sua boca sem que sequer perceba. — Binn o repreendeu.
— Ahhh... Fique tranquilo! Não sei como ainda consegue se preocupar com isso depois de tantos anos!
— Sempre irei me preocupar com essa questão, mas não foi por isso que o chamei aqui. — O olhar de Benaffar era rígido, como de quem não toleraria insubordinações.
— Então diga o que vossa graça deseja! — O Dominante respondeu em tom jocoso.
Derick estava achando aquela conversa muito estranha.
— Chegaram duas cartas, uma de Bérniff, outra de Kimuth. — Benaffar disse já se levantando. Ele andou até o outro lado do quarto, abriu uma gaveta, tirou um dos papéis de lá e entregou ao Dominante. — Leia você mesmo.
Nêmenas foi até ele, pegou a mensagem e leu. Depois deu de ombros, dobrou o papel e devolveu.
— Não deve ser nada.
— Você nunca se preocupa?
— Com o quê? Alguns arruaceiros que queimaram três navios? Deixe que o monstruoso resolva!
Será que isso tem a ver com a Ordem?
— Você nunca vai entender do que se trata governar, não é? — Benaffar disse com resignação.
— Se o filho horrendo de Mikar Noutmander está tão preocupado com isso, que ele vá lá pessoalmente para averiguar; o que acho muito difícil, pois ouvi dizer que somente para ir ao banheiro precisa que cinco homens venham ajudá-lo a levantar! — K'leut olhou outra vez para a carta na mão de Binn e desdenhou. — Não acho que devemos enviar um único homem como ele está pedindo.
Binn dobrou a carta e a devolveu a gaveta.
— Você pode ter razão, mas nunca se esqueça que ele tem o maior exército de Valanthar.
— Mas não tem a espada Régia. — O Dominante constatou.
— Nem nós, não esqueça disso. — Benaffar concluiu.
Ao ouvir aquilo, Derick sentiu desânimo. Todo seu esforço até ali fora única e exclusivamente pela chance de encontrar a espada, e agora não fazia mais sentido ter passado por tudo o que passou.
Nêmenas bebeu um gole do líquido que havia na garrafa e depois falou:
— Isso não importa agora. À esta altura a mensagem do monstruoso já deve ter chegado às mãos dos outros Dominantes. Acho que devemos esperar para ver o que eles irão fazer.
Benaffar andou e sentou-se novamente em frente à penteadeira para continuar o trabalho inacabado da camareira.
— Não se preocupe mais com isso, só o chamei aqui para comunicá-lo dos acontecimentos. Não queria deixá-lo desprevenido caso alguém perguntasse, mas já sei o que fazer quanto a este assunto.
O Dominante foi até Binn e escorou-se na penteadeira.
— Tudo bem, você é que sabe.
Nesse momento Derick apertou os olhos com desconfiança.
O que está acontecendo aqui?
— O tal assassino, o que pretende fazer? Não acreditou em algo do que ele disse, acreditou? — Nêmenas perguntou.
— Às vezes não acredito nem mesmo nas coisas que eu falo. —Binn sorriu. — Mas por incrível que pareça, acreditei no tal Grabb e no terror que vi nos olhos dele quando relatou os acontecimentos no navio. Se o tal Menestrel é mesmo um lutador que fugiu de Skalun ou não, eu não sei dizer, mas por experiência própria, sei que aquele lugar é um inferno; em todo caso, respeito alguém que com apenas duas faquinhas matou vinte homens.
— Sim... Com certeza Isso me faz lembrar um certo rapaz intrépido que voltou daquele maldito lugar há muito tempo. — Nêmenas disse sorrindo.
Binn cessou o sorriso e falou:
— Ele tem que aceitar ir para Bérniff amanhã. Não posso deixar Ermeneu vivo para que seja convencido por Mikar II a mandar homens para acabar com a resistência em Beymuth. Zathar não conseguiu, mas pode ser que ele consiga.
Como assim Zathar não conseguiu? O que se passa aqui?
Nêmenas apertou os olhos com desconfiança.
— E por que não quer que a resistência em Beymuth acabe?
Binn deixou de fazer o que vinha fazendo e voltou-se para o Dominante.
— A carta de Bérniff me trouxe uma notícia, uma que sabia que aconteceria a qualquer momento. Sei quem organizou os ataques na cidade, e sei a qual propósito eles servem.
O coração de Derick disparou.
— O que está me escondendo? — Nêmenas perguntou.
Binn voltou-se para o espelho, penteou parcialmente os cabelos já totalmente pintados de preto e se levantou. — Existe um grupo em Beymuth autointitulado: a Ordem. E eles protegem Rikkar, o filho mais jovem de Reston de Brunne.
Ele sabe! Ele sabe!
Derick agitou-se ainda mais ao ouvir aquilo.
— O que está me dizendo? Um descendente legítimo Brunne ainda vivo? Não envie o assassino para matar Ermeneu, envie-o para matar o garoto! Ele nos ameaça! É o legítimo rei!
— E por que eu faria isso? Sua existência pode servir ao meu propósito. Assim que soube que ele ainda vivia, enviei pessoas para capturá-lo e trazê-lo a mim em segredo, mas parece que os homens contratados por aquele casal idiota eram incompetentes demais para lhe dar com o garoto e os irmãos de cabelos vermelhos. Os imbecis acabaram o assustando e o ferindo na perna, mas não conseguiram trazê-lo para mim.
Com cada nova informação que ouvia, Derick estava a ponto de adentrar o quarto e pôr tudo a perder.
— Mas afinal de contas, como você ficou sabendo da existência dele? — Nêmenas perguntou com visível curiosidade.
— Zathar já havia me contado quando esteve aqui a mando daquele monte de lixo que o criou. Eu tentei convencê-lo a me enviar o garoto, assim como matar Ermeneu. Achei que Ele não teria coragem para fazer nenhum nem outro, mas na carta que recebi pela manhã, ele me garantiu que o garoto estaria a caminho daqui muito em breve. Eu havia dito que aqui comigo ele estaria protegido. Isso parece tê-lo convencido, pois, aparentemente nutre alguma afeição pelo Brunne.
Ao ouvir aquilo Derick rangeu os dentes com fúria. Não queria acreditar que Zathar Dovant realmente havia se tornado um maldito traidor, mas ao que tudo indicava, aquela era a verdade.
Vou estripá-lo com minhas adagas!
— Você acha que Zathar realmente cumprirá o que está dizendo? Já que ele não conseguiu nem matar Ermeneu. — Nêmenas perguntou erguendo uma de suas pesadas sobrancelhas.
— Ele é filho do Dominante de Beruhim, por que não faria? Um dia poderá comandar dois territórios, ou quem sabe um reino... Ele só tem a ganhar.
Ao ouvir aquilo os olhos de Derick se arregalaram.
Então era tudo verdade? Zathar realmente é fruto da traição da esposa de Ermeneu Dovant com Nêmenas K'leut! Agora tudo começa a fazer sentido!
Binn olhou de soslaio para K'leut.
— Mas não vamos falar sobre isso agora. — Binn falou de forma enfática.
K'leut, percebendo que o assunto não se estenderia, tratou de voltar ao anterior.
— Por que não me contou sobre o Brunne antes? Que pretendia trazê-lo pra cá?
— Por que não queria ouvir tudo o que estou ouvindo agora de você, nem tinha certeza se daria certo. Enfim... não faz mais diferença.
— E por que não?
— Por que como disse, agora acredito que realmente Zathar o enviará para cá. Na mensagem que recebi, ele disse que ia ao encalço do garoto depois que o plano de o capturar deu errado. É bem provável que o tal cavaleiro de cabelos vermelhos tenha instruído o grupo a seguir por outro caminho para despistarem os perseguidores; é o que eu faria. Como já faz algum tempo desde a última mensagem, é bem possível que talvez até já o tenha encontrado.
O coração de Derick acelerou ainda mais ao ouvir aquilo.
Eles sabem de tudo! A Ordem, Rikkar, e também podem saber sobre mim!
Um turbilhão de pensamentos invadiu a mente do Beymutita com aquelas informações. Se realmente fosse verdade que Zathar estivesse trazendo Rikkar até Binn, tudo estaria acabado.
— Se me permite... — Nêmenas apertou os olhos. — Por que diabos quer trazer o garoto para cá ao invés de matá-lo?
Binn revirou os olhos com o comentário do Dominante.
— Não queira entender sobre coisas muito complexas. Preocupe-se em manter a postura na frente das pessoas e deixe o resto comigo.
— Só acho que eu deveria saber de tudo para não ser pego de surpresa, como você mesmo disse.
Benaffar Binn arfou com impaciência.
— Tudo bem, se faz tanta questão, vou te contar, mas já sei sua opinião sobre o assunto.
— Não tem a ver com aquele livro antigo outra vez, não é? Se for sobre isso você tem razão, eu acho uma bobagem completa.
— Está vendo! Por isso não compartilho tudo com você.
— Isso é somente uma lenda antiga. O que os Gêmeos Brunne trouxeram até Valanthar para a subjugá-lo foi um numeroso exército de mercenários muito bem treinado e muito bem pago; pois pelo que as histórias dizem, antes dos malditos vulcões tomarem toda aquela região amaldiçoada, o solo era tão rico que era mais fácil encontrar uma pepita de ouro ao cravar uma pá no chão, que uma mera minhoca. Nessa história eu acredito, na outra sobre soldados de pedra e espadas mágicas, não.
— Sua opinião não me surpreende, afinal, não esperava nada diferente de um ignorante como você; por isso eu sou a mente e você os músculos. Mas o fato é que eu passei anos estudando aquele livro, e sei tudo sobre o que aconteceu na época, e não dá para negar que havia algo sobrenatural naquelas armas. Além do quê, outro fato incontestável é que em toda a história, poucos além dos Brunne conseguiram acessar o poder pleno contido naquela espada, e até onde eu saiba, só existe uma pessoa ainda viva dessas antigas linhagens. Todos sabem que os Brunne são diferentes do resto de nós; eles vivem mais, aprendem mais rápido, se curam mais rápido... Há algum segredo no sangue Brunne, e eu o quero pra mim... Para nós.
Ouvir aquela última frase trouxe aflição a Derick. O que aquele homem seria capaz de fazer ao seu sobrinho para conseguir seja lá o que quisesse?
— E os Noutmander, eles também não têm esse "poder"? Tem muito mais deles vivos que dos Brunne. — Nêmenas falou enquanto torcia levemente o canto da boca, denotando que realmente não se interessava nem um pouco por aquele assunto.
— Os Noutmander não são como os Brunne. É fato que Durendhor tinha esses dons, mas depois de alguns séculos seus descendentes os perderam, e os que existem hoje não carregam mais em si qualquer traço do que seu antepassado lhes deixou... Não acredito sequer que ainda tenham sangue Brunne. Eles não têm importância pra mim.
Nêmenas andou até a porta com a intenção de sair, mas antes parou.
— Achei que aquele homem que limpa a bunda gigante do monstro Kimutita havia roubado o seu tão precioso livro.
— Sim... ele roubou... — Dava para sentir a ira de Binn naquela resposta. — E ele pagará com sua vida no momento certo. Contudo, toda a informação que o exemplar continha há muito tempo está em minha mente. — Ele finalizou tocando a ponta do dedo na lateral da cabeça.
— Enfim... Não acho que esteja tomando a decisão correta, mas você é quem sabe.
Binn atravessou o Dominante com um olhar furioso, mas não respondeu.
Nêmenas entendeu o recado e saiu sem nada mais dizer.
Depois de ouvir tudo o que ouviu, Derick tinha duas opções: entrar no quarto naquele momento e matar Binn, mas com o risco de estar condenando automaticamente Rikkar à morte, já que seu sobrinho ainda estava em poder de Zathar. Ou poderia simplesmente voltar para o seu quarto o quanto antes, pela manhã aceitar o acordo, e em seguida viajar para Bérniff e tentar salvá-lo; era a aposta mais arriscada, mas havia a possibilidade de dar certo. Ele sabia que não podia pôr em perigo a vida de seu rei em hipótese alguma, contudo, uma decisão tinha que ser tomada rapidamente.
Benaffar havia se sentado novamente em frente ao espelho e estava distraído se penteando outra vez. Foi quando em baixo da cama o beymutita viu algo que o fez se decidir: seu alaúde.
Ele esgueirou-se pelas paredes e andou cautelosamente até o objeto. Em seguida retirou as adagas com todo cuidado, foi até Benaffar Binn e encostou uma delas em seu pescoço.
— Tem razão em não confiar em ninguém... — Sussurrou no ouvido do homem.
Binn assustou-se com o intruso armado. — Como conseguiu chegar até aqui?
— Como Grabb disse: sou um grande assassino, e quando tenho que matar alguém, não falho em minha missão.
— Mas você disse que não pretendia me matar.
De repente Derick afastou as adagas do pescoço do homem. — E não pretendo...
— Então o que faz armado em meu quarto?
Não houve tempo para responder.
De repente alguns soldados invadiram o quarto e o cercaram.
— Ele não estava em seu quarto, senhor! — disse um deles já com uma lança apontada para o beymutita.
— Parem! — Binn ordenou aos homens e encarou Derick. — Dê-me um motivo para que eu não o mate agora, Endos?
— Por que sou o homem certo para a sua quase impossível missão, como acabei de comprovar. — Derick girou as duas adagas nas mãos e as colocou lentamente no chão à frente de Binn. — Eu aceito. Vou a Bérniff matar Ermeneu Dovant para você.
Sobreviva hoje... Se vingue amanhã.
Binn voltou-se para o espelho e enfim conseguiu terminar de se pentear. Depois voltou-se novamente para Derick.
— Este ainda não será o dia da sua morte, Endos de Skalun, você ainda tem um Dominante para assassinar...
Ainda tenho um traidor a assassinar... E agora tenho transporte para chegar lá. Só peço aos Antigos que o maldito não envie Rikkar até eu encontrá-lo.
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