August
Rikkar
A maior praça de Beymuth, outrora chamada Gêmeos, estava tão cheia que do palanque mal se podia ver os mais de trezentos unificados sentados e acorrentados aos pés do que restara do monumento que um dia havia sido a enorme estátua dos lendários irmãos Brunne.
Lorde August não fazia ideia de onde as pessoas haviam surgido, nem sequer que havia tantas, mas a cada momento que se passava, mais e mais delas chegavam para ver o que aconteceria aos prisioneiros.
Era bem verdade que os Beymutitas que estavam ali não passavam de frações do que um dia já fora a mais rica e mais populosa sociedade de Valanthar, mas ainda assim, Lorde August estava feliz que aqueles poucos filhos da Cidade Mãe estivessem presentes.
Um enorme tablado de madeira havia sido construído para que todos pudessem ver as execuções.
Soldados da Ordem faziam a contenção para que não linchassem os prisioneiros antes da hora, mas não podiam evitar que as pedras, paus e tantos outros objetos que voavam por sobre eles os atingissem.
Naquele momento Lorde August apenas esperava o retorno de Jansen Hover e seus soldados para começar o evento.
O velho cavaleiro partira há mais de dez dias com uma grande cavalaria e um enorme contingente de soldados em direção ao último reduto de resistência dos unificados, que ficava em Kirogh, três dias ao sul de Beymuth.
O general Kimutita fora pego de surpresa em campo aberto pela Ordem, então houve uma sangrenta batalha, mas ele de alguma forma conseguira fugir com os sobreviventes para o forte Van-Die.
Outrora o antigo conde daquelas terras fora Luthor Van-Die, um convicto e declarado opositor ao reinado Brunne.
Quando tomaram Beymuth e enfim chegaram àquela região, os unificados haviam assassinado a todos os homens e por último matariam o conde, mas ao ver que sua integridade estava ameaçada, o homem fez um acordo para abrir os portões e trocar sua vida pela submissão da esposa e três filhas. Depois disso, elas e as empregadas serviam os soldados durante o dia, e à noite deitavam em suas camas.
A filha mais nova do conde não havia suportado tal vida e se suicidara há alguns anos.
Lorde August ouvira dizer que o conde agora perambulava nu pelas suas antigas terras, e nem mesmo reconhecia sua família ou qualquer outro que já tivesse conhecido.
Pelos últimos relatos, atrás das baixas muralhas dos Van-Die haviam se escondido Ernest Donahill e o que restara das já esfaceladas tropas Unificadas, mas Jansen Hover havia invadido, executado todos os unificados lá encontrados, e que estariam na Praça dos Gêmeos hoje por volta do meio-dia, horário marcado para começarem as execuções públicas, mas quanto à Donahill não se tinha certeza.
A multidão estava inquieta com a demora, e Lorde August pedia a cada minuto para Timothy olhar para o horizonte com sua luneta. E na última vez em que o jovem havia feito o que o idoso pedira havia dado certo, pois ele viu que cerca de seiscentos cavaleiros subiam a ladeira do sol, e talvez em pouco mais de meia hora estariam na praça.
Ao ouvir a notícia, Lorde August levantou-se da cadeira ajudado por Timothy e em seguida ergueu o braço.
— Bons cidadãos de Beymuth! Este é um dia histórico! É o dia em que retomamos a nossa amada Cidade Mãe! — A multidão explodiu em vivas. Lorde August ergueu a mão novamente e então todos se calaram. — Bons cidadãos Beymutitas! Este é o dia em que retomamos o orgulho, a glória e a honra! — E mais uma vez a multidão explodiu em vivas. Lorde August esperou até que se calassem. — Escutem com atenção! — A multidão obedeceu. — Hoje também é o dia em que gritamos por independência! Principalmente, hoje é o dia em que declaramos guerra à unificação! — Inesperadamente, a palavra pareceu ter esfriado um pouco os ânimos das pessoas, e Lorde August percebeu. — Entendo o que a guerra significa para vocês, meus amigos. Entendo que cada um que está aqui neste dia perdeu algo de muito valor e que talvez não possa ser restituído. Entendo suas dores, medos e anseios. Mas também entendo que chegou a hora de nos erguermos! Chegou a hora de lutarmos por nossa cidade e reconstruí-la nas bases do respeito, da honra e da justiça! Temos nos escondido em porões há anos! Temos treinado! Nos preparado! E agora estamos prontos! Bons cidadãos de Beymuth, nós conseguimos retomar a cidade com pouco mais de dois mil homens! Usamos o fator surpresa, a inteligência e a estratégia! Mas a esta altura todos os Dominantes já devem saber o que se passa aqui. Não poderemos suportá-los com tão poucos... E é por isso que nesta hora eu pergunto: onde estão aqueles que ainda amam a Cidade Mãe? Onde estão os que querem justiça e restituição por todo o mal que nos foi causado?!
O silêncio estava instalado no meio da multidão. Lorde August sabia que levar a ideia de declarar abertamente uma guerra contra os Unificados, talvez não fosse bem aceita aos cansados olhos do castigado povo. Era bem verdade que durante a silenciosa retomada da cidade, muitos foram se juntando à causa e encorpando cada vez mais as forças da Ordem, contudo, seus números estavam muito longe de começarem a ser bons, por isso o idoso e corajoso senhor tentava a todo custo trazer para o seu lado o máximo de combatentes possíveis. No início parecia que isso não seria tarefa difícil, já que ao verem as centenas de traidores subjugados e acorrentados, o patriotismo talvez tivesse se inflado no peito dos beymutitas, porém, até então eles ainda não tinham ouvido a palavra guerra. Lorde August gostaria de ter ouvido os mesmos gritos de euforia que ouvira pouco tempo atrás, mas o fato era que todos os que ainda permaneciam em Beymuth, estavam arrasados, pobres, ou mesmo acomodados com a situação, e ao invés de ouvir um sonoro "eis-me aqui", apenas um burburinho percorreu entre as pessoas. Elas se entreolhavam como se buscassem força umas nas outras, como se esperassem encontrar a coragem outrora perdida. O idoso percebia o medo e a incerteza em cada olhar. Sabia que fazer aquele apelo de forma tão urgente não era a melhor estratégia, entretanto, os inesperados eventos acabaram por levar a Ordem a fazer algo totalmente precipitado: tomar a cidade com tão poucos homens e tentar mantê-la. Ele sabia que o ideal seria Rikkar estar ali. O filho do rei com certeza tinha a força que o idoso senhor jamais poderia ter. O jovem tinha o sangue real e o peso de toda uma dinastia a quem o povo sempre amou. Se o último filho de Reston aparecesse com o exército Bérniff e a espada Régia em suas mãos, aquela insana empreitada poderia ter uma real possibilidade de dar certo.
— Perdoe-nos, senhor... — a voz cansada de um homem com um braço só, tirou Lorde August de seus pensamentos e quebrou o silêncio. — Não tenha dúvida que queremos de volta nosso orgulho, nossa cidade, nossas famílias... mas tudo isso nos foi tirado e agora nos restou tão pouco. — O homem olhou para o chão antes de falar novamente. Era como se estivesse com vergonha do que iria dizer. — Temos medo de perdermos o pouco que ainda nos resta.
O idoso olhou para o horizonte como se realmente pudesse enxergá-lo. Não conseguia entender aquele pensamento, apesar de respeitá-lo. Para ele, viver daquela forma não era viver, e o que o homem chamava de "tão pouco", na verdade era nada; apenas humilhação, miséria, fome, estupros e morte, definitivamente, viver assim não era viver. E ainda que respeitasse tudo o que ouvira, tinha que tentar abrir-lhe os olhos.
— Entendo o que diz, meu amigo. Nesta mesma praça perdi meu único filho e herdeiro, assim como tantos aqui. Sei que a dor jamais passará, mas podemos fazer justiça para aqueles que se foram. Podemos levar um pouco de paz às suas almas aflitas!
— Vocês têm pouco mais de dois mil homens? — Perguntou outra voz masculina vinda da multidão. — Os quatro Dominantes juntos têm mais de cem mil! Não sei o que andaram fazendo nestes últimos anos, velho, mas olhe à sua volta! Ainda que tivesse vinte mil homens bem treinados, de nada adiantaria. Os poucos castelos ainda em pé, não servem mais para nos defender. E como você mesmo disse, os Dominantes logo saberão o que se passa aqui, e trarão ainda mais soldados para nos arrasar! Sabe o que eu penso, velho? Penso que vocês trouxeram à ruína completa ao que restou de Beymuth! — A voz do homem se inflamara, e inesperadamente a multidão que há pouco estava ansiosa por ver execuções, agora murmurava com ele.
Timothy e outros soldados da Ordem fizeram um cordão de isolamento de modo a defender Lorde August do alvoroço. Alheio a tudo aquilo, o idoso lembrou-se do primeiro discurso do jovem rei Reston de Brunne ali naquela mesma praça, logo depois que seu pai havia morrido. Lembrou-se de sua altivez, de seu vigor, e principalmente de sua paixão pela Cidade Mãe. O cansado senhor ainda sentia tudo aquilo, mas os anos o haviam roubado toda intrepidez que a juventude fornece aos rapazes. A cada momento que se passava, o ânimo do povo parecia ir se inflamando mais e mais, algo tinha que ser feito o quanto antes, senão aquela vitória poderia não significar nada ao final de tudo.
— SILÊNCIO! — A voz do idoso ganhara uma pujança que nem mesmo ele achava ainda ter, e Inacreditavelmente as pessoas abaixo do tablado pareceram ouvir, e então se calaram. Lorde August os olhou com fúria. — O que aconteceu com vocês? Se acostumaram a ser lacaios desses malditos? Se acostumaram a ter suas propriedades invadidas? Suas mulheres e filhas violadas? Aceitaram de bom grado entregar todo o suor de seus rostos a essa gente até o resto de suas vidas? Como ousam esquecer tudo o que aconteceu aqui? Como podem desonrar tanto assim a memória daqueles que se foram? Esses homens tomaram nossas posses, nossas famílias, nossas vidas! E ainda assim, alguns poucos de nós estamos aqui lutando contra eles! E vocês, o que fizeram todo este tempo? — O idoso deu alguns passos à frente. — Como bem ouviram: com pouco mais de dois mil homens conseguimos retomar a cidade, e com estes mesmos poucos homens a defenderemos! Imaginem o que poderíamos fazer com todos os que estão aqui! Digo a vocês: se quiserem lutar, juntem-se a nós! Mas se estiverem com medo, partam agora, pois ainda que não gostem... a guerra já começou!
As pessoas se olhavam meio constrangidas depois do discurso do idoso. Discutiam entre si a respeito do que deveriam fazer e não pareciam estar chegando a qualquer conclusão. Até que um homem magro, alto e com grandes costeletas brancas atravessou a multidão.
— August Redmond...
De cima do tablado o idoso apertou os olhos de modo a poder enxergar quem falava seu nome. — Pelos Antigos... Markus Venker?
— O chamaria de milorde com muito prazer, senhor... Mas ambos sabemos que títulos já não existem aqui. — Respondeu o esguio homem, não tendo coragem de encarar August olho no olho.
— Isso até pode ser verdade, Markus, mas ninguém jamais roubará seu título de melhor ferreiro que Valanthar já teve, meu amigo. — Ao ouvir aquilo, o homem apenas curvou levemente a cabeça com certa tristeza. — Acreditei que estivesse morto, Markus, como sobreviveu, e por onde andou?
— No dia da unificação estava em Vilamar. Fui buscar uma encomenda de aço truskini. O rei queria uma nova armadura para o Dia dos Gêmeos. Em pouco tempo ficamos sabendo o que havia acontecido a Malakar Jones e a cavalaria real, e também ao rei e sua família. Tive medo por minha vida e peguei o primeiro navio para fora de Valanthar. Usei o dinheiro que o próprio rei havia me dado para comprar o aço... E fugi... — uma lágrima escorreu pelos olhos cansados do ferreiro. — Me envergonho de minha atitude, senhor. Por isso voltei um ano atrás, para que pudesse morrer em minha terra natal. Mas hoje pela manhã me disseram que haveria execuções em praça pública. Pensei que fossem os malditos unificados assassinando pessoas por prazer, mas quão grande foi minha surpresa ao vê-lo aqui, ainda vivo, e liderando uma resistência contra esses malditos! — Markus deu um passo à frente. — Nunca fui um soldado, meu senhor, mas ainda faço armas como poucos, e se me permitir, farei quantas puder para vocês.
— Será de grande ajuda, meu amigo. Aleric tem estado doente há muitos dias, mas se recusa veementemente a largar a forja.
— Aquele velho ranzinza e maluco... Um dos melhores ferreiros que já conheci. Tentarei tirá-lo de lá.
— Acredito que ninguém conseguirá fazer isso, Markus, você o conhece. Contudo, mesmo correndo o risco de parecer insensível, a grande verdade é que apenas um ferreiro nesse momento seria um grande atraso para a nossa causa. Precisaremos de armas mais do que nunca. Mas com você e Aleric nas forjas, aqueles malditos terão que ficar muito mais preocupados do que já estão! — O idoso falou com um sorriso no rosto.
A multidão pareceu ter gostado do gesto do ferreiro do rei, e então, outro homem, que era cego de um olho, se encheu de coragem e também deu um passo à frente.
— Quem lideraria os homens, senhor August? Não sabemos bem o que está acontecendo aqui. Qual o propósito em chamar a atenção dos Dominantes para cá, quando já quase nem estamos sobrevivendo?
— Não gostamos de usar este conceito, meu jovem. — Respondeu August. — A Ordem é uma só pessoa, mas também somos todos um. Não temos um só líder ou um só comandante, mas todos lideramos e comandamos juntos, para um único propósito... Proteger o rei!
— O rei?
A pergunta ecoou na multidão.
— O que isto significa, senhor August? — Markus perguntou erguendo as sobrancelhas.
Lorde August ergueu a mão novamente. Aquele momento pedia ainda mais silêncio que qualquer outro.
— Não somos apenas um punhado de gente que se reuniu com o propósito de morrer com honra, se é o que estão pensando. Temos treinado, nos organizado e nos preparado para devolver o trono de Valanthar a quem ele pertence por direito... A um Brunne!
— Existe um Brunne vivo? — Alguém perguntou no meio da multidão.
— Rikkar, a última semente de Reston de Brunne, está vivo! — Lorde August falou com orgulho. O fato pareceu trazer ânimo ao povo, pois entre eles foram ouvidos gritos.
— NOS TRAGA O REI! NOS TRAGA O REI!
A presença do rei mudaria tudo...
August não pôde evitar o pensamento.
— Onde ele está, senhor August? — Markus perguntou, mas não pôde obter a resposta.
De repente a multidão começou a abrir caminho e dezenas de cavaleiros começaram a adentrar a praça. Cada um dos que passava ia jogando uma cabeça ensanguentada aos pés dos outros unificados acorrentados, e o terror percorreu pelo rosto de cada um deles. Jansen Hover parou seu cavalo bem em frente ao idoso e o olhou em cima do tablado.
— O restante dos homens chegará dentro de um dia, Milorde. — Ele anunciou para que todos na praça ouvissem e depois prosseguiu. — Quanto a Ernest Donahill, para minha vergonha, tenho que informar que ele conseguiu fugir em navios com muitos de seus homens, mas os últimos unificados ainda vivos em Beymuth estão presos bem ali... — ele apontou para os homens acorrentados na praça e por fim disse: — No mais, todos estão mortos!
Ao ouvirem todas aquelas coisas, os unificados amarrados entraram em desespero.
— POR FAVOR NÃO NOS MATEM!
— TEMOS FAMÍLIAS!
— APENAS SEGUIMOS ORDENS!
Havia verdade nas alegações dos prisioneiros, contudo, Lorde August sabia que qualquer unificado que estivesse vivo em Beymuth, poderia ser um perigo e um encargo desnecessário assim que mais tropas chegassem, então ignorou os apelos.
— Não houve falha alguma, Sor Jansen, e o saudamos pela vitória. — Lorde August reverenciou o cavaleiro e depois voltou-se novamente para a multidão. — O rei, vocês perguntaram? Agora ele está em Bérniff com o que restou da família Longstrider. Se a missão para a qual foram designados correr bem, em breve vossa majestade retornará a Beymuth à frente de um exército!
— Como podemos ter certeza disso, m-milorde? — Uma voz tímida qualquer no meio da multidão enfim se arriscava a quebrar o protocolo.
— Enviamos Dennis Pennant com alguns homens para garantir que o rei retorne em segurança, e também enviamos espiões aos territórios de modo a trazerem de volta a espada Régia!
Aquilo era tudo o que as pessoas queriam ouvir. Espada Régia e um descendente Brunne na mesma frase, ainda que nem tudo fosse tão simples assim. Não havia nenhuma certeza de que o rei retornaria com um exército à Beymuth, pois à princípio Dennis Pennant partira apenas para tentar trazê-lo de volta com vida. Além do quê, a espada régia continuava uma incógnita até aquele momento, mas nada disso precisava ser dito ao povo. Por hora, a simples menção das duas palavras pareceu dar ânimo a muitos ali, já que assim que as ouviram, pôde-se escutar poucos e tímidos gritos de: Rikkar! Rikkar! Rikkar!
Lorde August sentiu-se angustiado com a incômoda situação. Esperava que a àquela altura já tivesse apoio incondicional do povo, e não somente aqueles poucos que foram se juntando à medida que retomavam a cidade, pois era de extrema importância que todos abraçassem a causa e encorpassem as fileiras quando necessário, caso contrário, tudo teria sido em vão. O idoso não tinha certeza se havia ganhado a confiança deles. Tudo o que havia oferecido era promessas e nada mais, e agora apenas rogava aos Antigos que aquilo fosse o suficiente para manter pelo menos aqueles poucos ao lado da Ordem.
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