A saudade que a chuva não leva

NOTA DO AUTOR:
Este conto foi escrito para o Desafio de Contos Mentes Criativas feito pelo perfil concursoffdc cujo tema proposto é "Pelas Ruas da Cidade".

Num dia como esse é que me vem à memória, é assim que percebo que andar pela estrada nem sempre pode ser fácil para mim. Já é hora de visitar novamente o passado e, mesmo que hoje em dia minha rotina não seja mais a mesma, eu devo a mim mesmo essa troca do remorso pelo belo sentimento de saudade daquilo que não posso mais ter.

Nesse dia chuvoso e nublado, continuo caminhando pela rua enquanto penso nas memórias que esse lugar guarda, nos clamores que ele exala e no quanto o mesmo significa para mim, até que, finalmente, chego ao meu destino que, mesmo aparentando cinzento e triste, é, na maioria das vezes, minha maior felicidade e meu maior motivo de continuar a vida sem muitos arrependimentos.

Carrego comigo uma caneta e um caderno que seriam a única novidade em meio a minha visita rotineira a este local e a presença destes objetos é graças ao dia de hoje, que exigiu uma maior necessidade de se expressar a verdade, a qual só poderia ser alcançada, em minha opinião, por meio da movimentação lenta da caneta no papel, desenhando em letras a emoção do momento.

Antes de vir, avisei Maggie do quão particular é este momento que tenho a cada dia, enfatizando, ainda, que hoje o que eu tanto esperei, ou pelo menos quem eu estou visitando hoje desejou, finalmente aconteceu. Agora as nuvens parecem se dispersar e a chuva se transformou apenas em chuvisco, e, aproveitando o momento, escrevo as últimas partes da única carta capaz de expressar o que desejo para a pessoa que mais amo.

Querida Ana,

Sei que a visitei ontem, mas para mim faz muito tempo que não a vejo. Tenho tanto a contar que talvez nem existam linhas o bastante numa só folha para lhe escrever. Hoje tenho de tentar descrever em papel o que me ocorreu em decorrência da importância que você dava a este fato.

Lembro do dia em que te conheci, chovia muito e eu estava encharcado desejando nunca ter saído de casa para visitar a lanchonete da rua vizinha, até que vi você sentada em uma parada de ônibus sorrindo para mim como se já me conhecesse e me chamando para sentar ali também para não me molhar. Quando finalmente aceitei o convite, foi você quem iniciou a conversa, disse que seu nome era Ana e perguntou o meu. Quando eu disse, você falou que era um nome diferente, perguntou-me porque eu estava andando naquela rua num dia com um clima tão péssimo, e sorriu de orelha a orelha, deixando-me a vontade para iniciar uma conversa com uma, até então, desconhecida. Quando eu disse que estava indo tomar um café ou talvez até um capuccino na lanchonete no fim da rua para terminar de ler um romance que comprei a pouco, você disse que estava com sorte e que era para lá que estava indo também e agora teria companhia.

Quando a chuva diminuiu, você me puxou para perto para dividirmos o seu guarda-chuva florido enquanto íamos juntos à lanchonete. Eu corei imediatamente. Não era comum que uma moça que acabara de conhecer me puxasse para dividir um pequeno guarda-chuva que deixaria os dois colados um no outro. Chegando no estabelecimento, você pediu dois capuccinos antes que eu pudesse falar algo e nos sentamos em duas poltronas para aguardar o pedido. Sem perceber, eu aproveitei aquele momento para reparar mais em você. Sentada naquela poltrona vermelha, suas bochechas rosadas ganhavam mais intensidade e, mesmo com o cabelo molhado, sua beleza era inegável. A cor dos cabelos era um ruivo escuro, mas eu tinha certeza de que secos eles seriam uma cor próxima ao ruivo vivo, e seus olhos eram de um azul cristalino que me trazia uma paz inexplicável. Estava óbvio, eu estava me apaixonando por você, e, mesmo que não tenha percebido, naquele instante eu já queria poder te amar.

Depois de tanto te encarar, mesmo que sutilmente, você percebeu e retrucou com um olhar alegre me deixando envergonhado novamente. Nesse momento, nossos capuccinos chegaram. Pouco falamos durante aquele capuccino, mas nossos olhares continuaram a estudar um ao outro, tornando aquele silêncio um momento mágico, até que você me trouxe de volta a realidade perguntando se meu capuccino estava tão delicioso quanto o seu e se eu preferia conversar ao invés de apenas nos encararmos. Exitei um pouco ainda meio fora da realidade antes de conseguir responder com respectivos "sim" e "claro".

Infelizmente, antes de iniciarmos o que realmente seria uma conversa, você olhou rapidamente o relógio e, com uma feição surpresa, se apressou em escrever seu número em um guardanapo e me entregou, despedindo-se desesperadamente e, em meio a mil desculpas, lançou uma explicação simples do porquê de sua ida, afirmando estar atrasada para um compromisso. Senti-me decepcionado por falar tão pouco e devo ter causado uma péssima primeira impressão, mas, como você havia deixado o número, percebi que eu ainda poderia ter uma chance de te ver novamente.

Depois daquele dia, passei vários momentos pensando em você antes de criar coragem para te chamar para sair, mas o dia em que finalmente te levei a um jantar foi quando percebi que tinha sorte em ter te conhecido e que lutaria por mais alguns momentos ao seu lado. Depois do jantar, vieram noites de cinema, jantares e, é claro, nosso primeiro beijo. Não posso narrar cada encontro nosso, mas posso lhe dizer que viveria todos eles novamente ao seu lado e posso descrever minhas melhores sensações daqueles calorosos momentos. Sentir seus lábios me beijarem foi como sentir que estava realizando um sonho antigo e iniciando uma nova perspectiva do futuro e, a cada sorriso seu, minha motivação de tornar esta perspectiva real aumentava.

Nossa história não é tão longa quanto desejo, mas pretendo relembrar também quando pedi a sua mão em casamento. Era uma noite escura, mas sem nuvens, e estávamos em nosso restaurante predileto comemorando nosso aniversário de namoro. O clima era perfeito e eu estava me preparando para aquela ocasião há semanas, por isso, era, para mim, a melhor possível. Assim que nos levantamos para sair do restaurante, eu a impedi e me ajoelhei na sua frente. Seus olhos reluziam e me encaravam perplexos. Você já sabia o que estava acontecendo e, quando finalmente perguntei, você não pensou duas vezes e me disse sim. Na ocasião, você estava tão feliz que não conseguia desfazer aquele sorriso contagiante e isso, combinado com o seu "sim", foi o melhor presente que eu poderia ganhar.

Depois daquele dia, a vida decidiu te tirar de mim e, em dez anos, você estava deitada em uma cama de hospital enquanto eu recebia a notícia de que nem tudo é perfeito no amor e que você não havia resistido à doença. Naquele momento, eu teria dito a qualquer um que estivesse à espreita da morte que, se não aguentasse àquela dor, então optasse por morrer antes de provar o sabor amargo da perda do amor da sua vida. Contudo, já percebi que não se deve relembrar dores e mágoas e aprendi a me agarrar às memórias que tenho de você e transformá-las no meu apoio para continuar a jornada da vida sem ter você ao meu lado.

Hoje, com esta carta, vim relembrá-la de nosso agridoce passado e de como venho me saindo tentando realizar seu último pedido antes de falecer. Lembro-me como se fosse hoje de te ver deitada em uma cama de hospital com um olhar perdido e com pouco fôlego enquanto me pedia para não desistir de tudo e tentar novamente encontrar o amor pelas ruas de nossa cidade.

Por isso, hoje deve ser uma de minhas visitas mais alegres, pois vim te informar que achei alguém que posso tentar amar como amei você. O nome dela é Maggie e a conheci no mesmo café onde serviram os nossos capuccinos naquele dia e ela, mesmo com seus cabelos castanhos e olhos negros, me lembra muito você, seu jeito, seu sorriso e até mesmo o seu modo de me deixar bobo com sua beleza estonteante. Foi com tudo isso em mente que ontem a pedi em casamento e queria que você fosse a primeira a saber que ela aceitou. Estamos vivendo experiências tão boas quanto eu e você vivemos e, mesmo a conhecendo a menos tempo do que você, tenho a certeza de que ela é "o segundo amor que eu encontraria pelas ruas da cidade" do qual você sempre me falou.

Prometo não parar de visitá-la, mas agora Maggie estará ao meu lado e espero que ela possa saber como vivi por você e como você morreu me falando sobre ela. Por último, deixo aqui meu maior desejo: que pelas ruas da cidade todos encontrem alguém como eu encontrei você, Ana.

Com amor e saudades, Nick.

Depois de concluir a carta, saí do cemitério com minhas forças revitalizadas enquanto o Sol sobrepunha-se às nuvens que anteagora choravam a minha saudade do dia em que conheci meu primeiro amor.

Conto concluído contendo 1536 palavras.

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