Capítulo 30 A queda
Após um banho demorado, coloquei um vestido verde-escuro, presente de uma vizinha quando cheguei ao sul. Embora fosse o modelo mais discreto que eu possuía, ainda assim, tinha um charme que não passava despercebido. Esta seria a primeira vez que o usava; esperei por uma ocasião especial que, infelizmente, nunca chegou.
O corpete trançado, que se moldava ao corpo, acentuava minhas curvas, enquanto a saia rodada, rica em babados e com um delicado acabamento em renda branca, criavam um efeito de movimento a cada passo que eu dava. Optei por usar joias discretas, não estava muito animada para me arrumar. Tudo o que eu mais desejava era ficar em casa, longe de olhares curiosos e de perguntas que poderiam acionar algum gatilho. No entanto, isso me fez lembrar de que da última vez que fiz isso um monstro entrou pela janela e me levou.
Da área externa da minha casa, era possível observar nitidamente o espaço da fogueira, já acesa no centro da pracinha ao final da rua. Estávamos não apenas recebendo visitas, mas também acolhendo a nova família que chegara para se integrar à nossa comunidade. As ciganas dançavam animadas em torno das chamas, vestindo suas roupas coloridas e vibrantes. Nos bancos de madeira rústica, alguns membros da comunidade trocavam conversas enquanto saboreavam o tcháyo romanó que minha mãe havia preparado. Essa bebida sagrada para nosso povo é elaborada com vinho, suco de laranja e uma mistura de especiarias, incluindo cravo, canela, anis-estrelado, sálvia, hortelã e açúcar melado.
Ciganos jovens conversavam distraídos ao redor da fogueira, enquanto as crianças brincavam alegremente, correndo de um lado para o outro. Uma garotinha de tranças, segurando uma boneca feita de palha, girava em círculos com um sorriso radiante, enquanto um grupo de meninos se divertia jogando bola. Não pude evitar que memórias nostálgicas surgissem, lembrando dos tempos em que éramos nós as crianças correndo por ali. Sorri por um instante; foi como se o tempo tivesse parado. Era bom estar em casa.
— Está uma noite linda, não acha? — perguntou Ariane, juntando-se a mim. A poucos passos, Soraia, Ian, Alejandro e Eduardo, que se apresentou aos demais membros da comunidade usando o nome do irmão, conversavam distraídos, acomodados nas cadeiras de bambu no canto da área, perto do gramado da frente.
— Pela demora, pensei que você estivesse se arrumando para o casamento — comentou Soraia, aproximando-se com um sorriso. — Vamos dançar?
— Você ficaria chateada se eu deixasse para outra hora? — perguntei.
— Imaginei que você não quisesse — respondeu ela, compreensiva.
— Eu danço contigo! — Ariane segurou em seu braço e as duas saíram animadas.
— Precisa de um babador, irmão? — ri ao notar o olhar de Alejandro fixo em sua noiva, enquanto me aproximava dos rapazes.
— Faltam apenas vinte dias, aguenta firme, guerreiro — Ian disse, dando tapinhas no ombro de Alejandro, que sorriu, corando levemente.
— Então, quer dizer que vamos mesmo perder um soldado? — Eduardo comentou, sorrindo, referindo-se ao casamento de meu irmão.
— E faço questão de que você esteja presente — afirmou Alejandro. — E tenho certeza de que o Caio também estará.
— Quem me dera que Ana estivesse aqui — murmurou Eduardo, desfazendo seu sorriso, enquanto eu me acomodava na cadeira à sua frente. — Sinto tanto a falta dela.
Nossas atenções se voltaram para ele, e um silêncio respeitoso tomou conta do ambiente, como um sinal de que estávamos ali para ouvi-lo.
— Dói demais não saber se ela está bem — ele continuou, com a voz carregada de angústia. — E se teremos a chance de nos encontrar novamente. Foi um momento de distração e... eu deveria tê-la protegido.
— Não dá para controlar tudo, amigo — Ian respondeu, olhando-o com compaixão.
— Essa culpa me consome. Ela entrou na mira desses caras por causa de mim, e não consegui impedir que a levassem. Eu fui socorrer minha ex-namorada, que estava grávida e havia sido atropelada. Quando voltei, Ana já tinha desaparecido.
— Você tinha uma namorada grávida e estava com outra? — perguntei, surpresa, recebendo olhares reprovadores do meu irmão.
— Eu terminei com ela assim que conheci a Ana. Mas, na verdade, nosso relacionamento já havia chegado ao fim antes mesmo de começar; foi um erro ter insistido — disse Eduardo, com um olhar distante, como se estivesse revivendo as cenas que narrava. — Não se submetam a isso, pois não há como ter um final feliz. Um relacionamento que busca o sucesso precisa de amor, respeito, companheirismo e... química. Nada disso existia mais entre nós. Cheguei a um ponto em que tudo nela me incomodava, mas, por pena, não conseguia me desvincular. Sempre que tentava resolver nossa situação, era recebido por choros e chantagens emocionais, e acabava desistindo. Isso se transformou em uma bola de neve.
Troquei olhares com Ian e não precisei ouvir seus pensamentos para entender o que se passava. Eu estava percorrendo um caminho semelhante com Samuel, mas me recusava a enxergar essa verdade.
— Mas ela já estava grávida quando o namoro acabou? — perguntei, tentando desviar a atenção de meus próprios pensamentos.
— Ela furou a camisinha e conseguiu engravidar. Foi a última vez que estivemos juntos intimamente, e até hoje pago o preço por isso.
— Então você tem um filho?
— Ué, Natacha, você vai fazer um documentário sobre a vida dele? — Alejandro me interrompeu, claramente irritado. — Vamos parar com as perguntas.
— Desculpe — respondi, sentindo-me envergonhada. — A curiosidade é um dos meus piores defeitos.
— Está tudo bem, eu não me importo em falar sobre isso. Para responder à sua pergunta: eu não tenho filhos, ela perdeu a criança no dia em que foi atropelada. Está em repouso, ainda mergulhada na depressão.
— Valha-me! — exclamei, espantada.
— Minha história não tem muitos eventos marcantes, mas quero deixar um conselho: pense bem antes de se unir a alguém. O amor pode surgir disfarçado de amizade, implicância ou até mesmo de ódio. Ele aparece de maneiras surpreendentes, e muitas vezes temos dificuldade em reconhecê-lo. — Eduardo me olhou de um jeito que me fez sentir que ele falava diretamente para mim. Ele respirou fundo e continuou: — O verdadeiro problema surge quando percebemos isso tarde demais, após uma perda. Nesses momentos, a distância e o desprezo se tornam lições amargas, mostrando que as palavras não ditas e os gestos não feitos podem gerar os maiores arrependimentos.
— Sim — concordou Alejandro, pensativo. — O verdadeiro desafio não é só reconhecer os próprios sentimentos, mas também saber agir no momento certo. A saudade não traz ninguém de volta.
— Exatamente — disse Eduardo, esboçando um sorriso. — A vida é curta demais para perdermos tempo com indecisões alimentadas pela insegurança.
— Hum! — limpei a garganta, erguendo a postura com firmeza. Posso dizer que a carapuça serviu perfeitamente. — Ana é realmente uma mulher de sorte; seus olhos realmente brilham quando fala sobre ela.
— Eu estive com ela por tão pouco tempo, mas durou o suficiente para deixar uma marca profunda em mim; daria tudo por mais um instante ao seu lado. Mesmo que, talvez, ela não retorne para ficar comigo, como as cartas previram.
— As cartas previram isso? — perguntei, intrigada.
— Sim, pedi à sua mãe que realizasse a leitura para mim, e ela comentou que... deixe-me lembrar com clareza. Ela disse que, no abismo da escuridão e do esquecimento, a luz da vida renascerá. E que, na batalha entre o certo e o errado, quem agir primeiro conquistará uma vantagem significativa. Além disso, mencionou que, em algumas situações, abrir mão de um grande amor pode ser uma forma de amar e proteger aqueles que amamos.
— Uau, isso é realmente complicado — murmurei, sentindo-me confusa. — E quais são seus sentimentos a respeito disso? Digo, você acredita?
— Coincidência ou não, no auge do meu desespero, quando soube que ela havia sido sequestrada, pedi aos céus por mais uma chance de estar com ela, mesmo que isso significasse nunca mais tê-la em meus braços — respondeu, com os olhos marejados. — Renovei meu pedido quando recebi a ligação dos sequestradores e ouvi a tortura que ela estava sofrendo.
— Amigo, não fica pensando nisso agora — disse Alejandro, apoiando a mão em seu ombro. — Existem mil e uma formas de interpretar uma previsão.
— Sim, eu sei — respondeu Eduardo, com um olhar distante. — Estou disposto a atravessar o mundo, se necessário, para encontrar os responsáveis e garantir que paguem pelos seus crimes. E quanto a Ana, se o destino decidir que não estaremos juntos, aceito essa realidade. O que mais anseio é a felicidade dela, mesmo que essa felicidade não inclua a minha presença. Por mais doloroso que isso possa ser para mim.
— Isso se chama amor — disse meu pai, aproximando-se. — Amar de verdade significa colocar a felicidade do outro à frente dos nossos próprios desejos. Aceitar as escolhas da pessoa amada é parte disso.
— Realmente, deixar ir também é uma forma de amar — disse Ian, se levantando. — Vou fazer a ronda e já volto.
Enquanto ele se afastava, eu remoía suas palavras. Eu e Ian sempre fomos amigos, mas agora estava tudo muito diferente, e isso me afetava de uma forma que jamais pensei que fosse acontecer. As palavras de Eduardo também me fizeram refletir, e aquela reflexão me fez duvidar se largar tudo para viver com Samuel realmente me faria feliz. Quando imaginava meu futuro, sentada em um banco vendo o pôr do sol, não era a imagem dele que vinha à minha mente.
***
A presença de visitantes e novos moradores na comunidade desviou um pouco a atenção de mim. No entanto, precisei respirar fundo várias vezes ao perceber os olhares de compaixão e ao responder perguntas sobre a noite que gostaria de esquecer e os dias que passei na fazenda. Quando finalmente fiquei sozinha, sentei em um banco debaixo do pé de ipê-roxo, como sempre fazia. Comecei a pensar na minha vida e em como encontrar uma solução para a confusão em que me meti. Definitivamente eu precisava fazer algo a respeito.
— Nat? — Soraia chamou, se aproximando ao lado de uma moça alta, quase tão alta como Ian.
Ela tinha pele clara, cabelos negros e lisos, e curvas marcantes. Os seios fartos se destacavam em seu decote, e seus olhos eram verdes como uma bola de gude. Uma bela cigana.
— Eu?
— Cassandra quer te conhecer — disse ela, apontando para a cigana que sorria para mim.
— Você é famosa — a moça disse, estendendo a mão.
Confusa, apertei sua mão e perguntei:
— Eu, famosa?
— Sim, uma cigana muito querida — confirmou.
— Não acho que mereço essa fama — murmurei. — Você é bem alta — sorri, levantando-me. Minha cabeça não passava de seus ombros.
— Um metro e oitenta e sete, o que me rendeu vários apelidos; girafa é um deles.
— Pelo menos as pessoas devem te respeitar — comentei, brincando.
— É verdade, mas nem tudo é perfeito; até agora nenhum cigano me escolheu. Meu tamanho intimida, acho que vou ficar solteira para sempre.
— Calma! Aqui temos uma família de gigantes — disse Soraia. — O Wladimir tem quase um metro e noventa, e o Ivan também é bem alto, e tem o...
— Quem é aquele? — ela perguntou, apontando para o corredor de árvores.
— Ian — respondeu Soraia, olhando para mim.
Ian já tinha tomado banho e não estava mais com o uniforme da fazenda, como momentos antes em minha casa. Agora, vestia uma camisa branca com as mangas dobradas até o cotovelo, calça marrom justa e botas. Seu cabelo estava preso em um coque, com algumas mechas soltas que lhe davam um charme especial. Ele sorria ao lado de Eduardo, que conversava com Samuel e Juliana.
— O que ela está fazendo aqui? — perguntei, com ciúmes.
— Veio com Samuel e os patrões — respondeu Soraia. — Crístian está vindo com o avô, eles querem recepcionar a família de Cassandra.
— Que homem lindo! — exclamou Cassandra, admirando Ian. Ele se aproximava com uma de suas mãos no bolso, enquanto a outra segurava seu violino. Os primeiros botões da camisa estavam abertos, mostrando músculos definidos que se destacavam em sua pele morena, que a cigana encarava descaradamente.
— E não é? — perguntei, sentindo um calor repentino. — Hum! — Me recuperei, limpando a garganta. — Seus irmãos são tão altos quanto você?
Na verdade, não estava realmente curiosa, só queria mudar de assunto.
— Puxamos ao meu pai, que tem um e noventa e um — ela acenou para um rapaz de pele clara e cabelos negros, magro, que se aproximou com o irmão. — Túlio e Thales, meus irmãos mais velhos. São gêmeos, mas não idênticos — ela apontou para eles, que eram bem parecidos. — Esta é a Natacha, ela acabou de perguntar por vocês.
— Na verdade, eu só estava curiosa sobre... — engoli em seco ao notar que Ian nos observava, tão perto que tinha certeza de que ouviu a conversa.
— Parece que ela gosta de homens altos — comentou Cassandra, sorrindo.
— E, está solteira? — perguntou um deles, não consegui identificar se era Túlio ou Thales. Estava tão confusa que mal sabia quem era eu mesma, enquanto Ian se aproximava com Juliana, Eduardo e Samuel.
— A lua está tão bonita, não acham? — perguntei, sentindo um pouco de vergonha.
— Não tanto quanto você — respondeu o rapaz, me deixando corada.
— Esses são: Samuel, filho dos patrões; Juliana e Caio, amigos; e Ian, filho do cigano Ozório e da Carmencita — apresentou Soraia.
— Sejam bem-vindos à comunidade! — disse Ian, apertando a mão dos novos amigos.
— Estou encantada com tudo aqui! Essa alegria é contagiante! — comentou Juliana. — Posso dançar? Só não tenho uma saia rodada, mas quero muito dançar entre as ciganas!
— Está fazendo hora extra? — murmurei para Ian, que me olhou de cenho franzido. — Arrume uma saia para ela dançar.
— As minhas não vão servir — respondeu sarcástico. — Foi seu noivo quem a trouxe, por que não pede uma a ele?
— É fácil tocar violino? — perguntou Cassandra, sorrindo para Ian, e interrompendo nossa discreta troca de farpas.
— Mas o quê? — olhei para Brenda que se aproximava ao lado de Vívian.
— Ela veio com a patroa — sussurrou Soraia, em tom de aviso.
— Saudade dos tempos em que as regras eram mais rígidas — sussurrei de volta.
— Estou tão feliz quanto você com essas visitas — Soraia exibiu um sorriso forçado.
Mordi o interior das bochechas, revirando os olhos em frustração. Era impossível ignorá-las; as vozes baixas e os olhares maliciosos que trocavam entre si eram como farpas a me ferir. A cada passo que davam em minha direção, a tensão crescia, como se a atmosfera estivesse impregnada de veneno. Sabia que qualquer interação poderia se tornar uma armadilha, então decidi respirar fundo, manter a calma e centrar minha atenção no que realmente importava.
— Reunião? — Vívian perguntou, parando ao lado de Ian, com um olhar curioso.
— Já conheceu a Cassandra? — ele perguntou, sorrindo para a prima, que retribuiu com um aceno amigável para a cigana, que conversava de maneira descontraída com Soraia.
— Sim, e os rapazes também — respondeu ela, entrelaçando os braços com Brenda, que permanecia em silêncio, como uma sombra.
— Você pode me ensinar a dançar? — Juliana perguntou a Soraia, cheia de animação. Eu, por outro lado, já estava perdida na conversa. Os vários temas se entrelaçavam na mesma roda de pessoas, enquanto minha mente girava em torno da minha própria falta de sorte. Era frustrante ter que suportar Brenda desfilando ao lado da serpente Vívian, no único lugar onde eu pensava que poderia escapar dela.
— Claro — respondeu Soraia, com um sorriso animado. — A Cassandra vai conosco, certo?
— De jeito nenhum que eu perco isso! — exclamou Cassandra, com entusiasmo. — E você violinista, faça bonito, quero ver do que suas mãos grandes são capazes.
Ian permaneceu em silêncio, mas isso não a incomodou. Com um gesto ousado, ela acariciou seu braço antes de se afastar. Que audácia!
— E você, Nat? Vai se juntar a nós? — Soraia desviou o olhar para mim, despertando minha atenção.
— Não, vou cumprimentar os patrões e os recém-chegados antes de ir para casa — respondi, sentindo um desconforto que não conseguia disfarçar.
— Vai ter chuva de meteoros esta madrugada. Vamos acampar na clareira para assistir. E você, Ian? Vem com a gente? — perguntou Brenda, com um sorriso provocativo.
— Agradeço pelo convite, mas não estou disposto a ficar acordado até tarde — ele respondeu, desviando o olhar da garota.
— A galera da colônia já deve estar lá. Samuel e Cristian vão nos levar em breve. Você poderia ir com a gente — ela insistiu. — O Caio também vai.
— Eu preciso revisar uns documentos que recebi por e-mail. Coisas de trabalho — Eduardo afastou a ideia, com um tom de seriedade.
— Ian? — Ela não desistiu, determinada a convencê-lo.
— Olha, eu realmente não estou afim — Ian respondeu, firme, deixando claro que não haveria mais oportunidades para insistências. — Com licença — acenou com a cabeça, seguindo em direção à fogueira, acompanhado por Eduardo.
— Minha mãe pediu que acompanhássemos as meninas — Samuel disse, como se tentasse justificar. — E meu pai quer que a gente cuide para que não aconteça nada sério, da última vez alguém bebeu demais e passou mal.
— Divirta-se — respondi, tentando parecer indiferente.
— Pensando bem, com o Crístian indo com os rapazes, eu posso ficar e...
— Ah, não! — Brenda interrompeu, com um toque de manha, entrelaçando seu braço ao dele e repousando a cabeça em seu ombro. — Não teria graça sem você, gatinho.
Samuel me lançou um olhar aflito, soltando-se dela, como se estivesse perdido diante da situação.
— Tá, mas... hum — ele limpou a garganta, visivelmente atrapalhado, enquanto enfiava as mãos nos bolsos. — Não posso pernoitar com vocês, tenho que trabalhar amanhã.
— Até parece que isso é um empecilho. Você é o patrão, esqueceu? — Brenda mordeu os lábios, lançando-lhe um olhar provocante.
— Hum... então você tem mostrado as estrelas para ela, patrão? — brincou um dos novatos.
— Ele é realmente muito bom nisso — ela confirmou, com um sorriso malicioso. — Até mesmo quando o céu está nublado.
Thales riu alto com a resposta da garota, enquanto Samuel, visivelmente constrangido, optou pelo silêncio. Eu não conseguia acreditar na ousadia dela; era uma falta de respeito e de noção que me indignava. Para nós, ciganas, essa liberdade de fazer brincadeiras de cunho sexual com os rapazes simplesmente não existia. Era como se eles ignorassem as nossas tradições e limites, e isso me deixava profundamente incomodada.
— Desculpa, mas não gostei da brincadeira — intervim, com firmeza. — Nossa comunidade tem regras que precisam ser respeitadas, e o respeito deve existir em todos os lugares. Com licença! — disse, afastando-me, aliviada por me distanciar daquela situação desconfortável.
***
Se o inferno astral realmente existe, eu certamente estava vivendo um. Desde que voltei, minha vida virou uma montanha-russa de emoções e desafios. Tudo que poderia dar errado, deu! Era como se o universo estivesse me desafiando, testando minha paciência e perguntando até onde eu conseguiria ir. E isso era só o começo das dificuldades que estavam por vir.
Samuel não me acompanhou, e por razões evidentes, ele decidiu não ficar com aquele grupo. Em vez disso, foi se juntar aos pais, que conversavam animadamente com alguns ciganos mais velhos. Enquanto isso, Crístian estava com Alejandro, Eduardo e Ivan, todos reunidos perto da fogueira. Ian, que tocava violino, logo passou o instrumento para seu primo Wladimir, pois Cassandra havia começado uma dança sensual, claramente feita para ele. O cigano, sério como sempre, se afastou discretamente, deixando a pretendente desapontada.
Brenda passou por mim, anunciando em voz alta que passaria o fim de semana na sede da fazenda, no quarto que eu deixara vazio naquele mesmo dia. Eu sabia que não deveria me sentir assim, tão possessiva. A casa não era minha, o quarto também não, mas saber que ela estava lá, enquanto havia outros quartos disponíveis, me deixou profundamente irritada. Minha mente inquieta começou a imaginar cenas de Brenda e Samuel juntos, dormindo como ele costumava fazer comigo. Essa ideia me deixou incomodada, mas estranhamente, nem tanto quanto a presença de Juliana por ali. Essa, sim, eu queria saber onde dormiria aquela noite.
"Deixar ir também é uma forma de amar."
Me lembrei das palavras de Ian quando me afastei da fogueira. Depois de ser simpática com os visitantes e os novos membros da comunidade, decidi voltar para casa. Cassandra, que se comportava de maneira diferente das outras ciganas, dançava e ria espalhafatosamente com Juliana no meio da roda, acompanhada de seus dois irmãos. Mais adiante, Alejandro, Eduardo e os outros rapazes conversavam descontraídos. Ninguém percebeu que o Caio não estava ali.
— Sabe contar até vinte? — disse Vívian, bloqueando minha passagem.
— Sabe contar até cinco? — retruquei, irritada. — É o tempo que te dou para sumir da minha frente.
— Vinte dias, cigana. Você tem vinte dias para juntar suas trouxas e puf, desaparecer daqui. Ou eu te desmascaro em frente a toda essa comunidade.
— Eu acabo com a tua raça antes, Vívian. Não tenha dúvidas disso.
— Isso é o que vamos ver!
Ela esbarrou em meu ombro ao se afastar, quase me derrubando. Não reagi, pois a imagem de Soraia sentada no gramado, entre os arbustos, me distraiu.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei, parando na sua frente.
— Somos uma piada para elas — ela respondeu, virando uma garrafa de vinho na boca.
— Tá maluca, aonde pegou isso! — tentei tomar de sua mão, mas ela abraçou a garrafa me fazendo desistir.
— Peguei na despensa, estou muito decepcionada com a vida — Soraia não estava exatamente bêbada, mas já se mostrava levemente alterada. — O amor da minha vida está aqui e não posso sequer chegar perto dele. A patroa está toda animada, conversando com aquelas ciganas que disseram que as irmãs Bárbara e Brenda seriam suas futuras noras. Acredita que ela até falou que daria sua bênção?
— Me dá um pouco desse vinho! — eu disse, pegando a garrafa da sua mão e virando o líquido na boca. — A patroa não sabe do nosso envolvimento, Soraia. Não podemos culpá-la por isso.
— Somos uma piada para aquelas oferecidas. Vão ver a chuva de meteoros hoje, espero que caia bem em suas cabeças.
— O Crístian te ama, deixe de ser surtada! — falei virando mais um pouco daquele líquido que desceu queimando a garganta. Nunca gostei de vinho.
— Ele diz que me ama, mas fica conversando com outras. E eu aqui, sozinha. Se Crístian for acampar esta noite com aquela garota, pode me considerar solteira!
— Pelo menos você teve a oportunidade de tê-lo por inteiro. Nunca vai ficar se perguntando como poderia ter sido.
— Você está sendo boba! O Ian te olha como se quisesse te despir com os olhos.
— A Vívian me deu um prazo até o casamento do Alejandro para ir embora. Se eu não sair, ela vai me expor para a comunidade. Bebi mais um pouco do vinho e entreguei a ela; já sentia o rosto quente e achei melhor parar.
— Iludida — disse Soraia, sorrindo. — Eu cuido disso pessoalmente. Agora, pare de enrolar e vá falar com o Ian. Ele está no barracão das selas e arreios, sozinho. Eu cuido para que ninguém atrapalhe.
— Me dê mais um pouco! — tomei a garrafa de sua mão bebendo mais um gole.
— Bêbada! — Soraia sorriu me tomando a garrafa, que agora estava vazia.
— Bêbada, não! Só um pouco alterada — respondi, fazendo uma careta. Na verdade, não era totalmente mentira; o vinho me causou uma leve tontura e um calor danado.
— Anda logo, antes que ele saia de lá, ou alguém apareça.
— E o que eu digo quando chegar lá?
— Tome a atitude que nunca teve.
— Mas Sô, eu...
— Acha que me arrependi de ter me entregado ao Crístian? Nosso relacionamento não foi perfeito; é um desafio que se transforma a cada dia, onde um termina e o outro começa. Mas, apesar das dificuldades, nunca desistimos um do outro. Mesmo que o destino nos separe, tive a coragem de viver experiências incríveis ao seu lado, e isso é algo que ninguém pode tirar de mim. Então não, eu não me arrependo de nada. Se tudo der errado em minha vida, Natacha, não será por falta de atitude ou de entrega. Eu escolhi amar, eu escolhi viver intensamente, e essa é a minha maior conquista.
— Se beber mais um pouco, ela escreve um livro de romance — ri nasalado.
— Idiota — Soraia retrucou, de forma divertida. — Vai logo antes que a Juliana venha atrás dele.
— E o que eu digo? Não sei nem por onde começar.
— Não precisa dizer nada, somente aja! E, por favor, não caia de cabeça no meio do caminho!
— Eu vou! — respondi, dando alguns passos. — Esse negócio esquenta.
— Vai logo Natacha! — Soraia balançou a cabeça aos risos. — Coitado do Ian!
— Eu ouvi! — respondi me afastando.
Quanto mais me esforçava para seguir o caminho certo, mais parecia me desviar dele. Se a queda era inevitável, então faria desse tombo um momento que valesse a pena.
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