Capítulo 29 Covarde
Andando em círculos, era assim que me sentia. Sempre que tentava fazer uma escolha importante, algo me desviava do meu caminho. Era como se tivesse perdido o controle da minha vida, mas, ao mesmo tempo, me perguntava se algum dia realmente o tive. Essa confusão me consumia, como se estivesse presa em um labirinto sem saída, onde cada decisão se tornava um novo desafio. Meu medo de magoar aqueles que amava era tão grande que acabei mergulhada na lama que eu mesma criei.
— É estranho te ver assim, de malas arrumadas — disse Samuel encostando-se ao batente da porta, com um olhar preocupado.
— Malas? — perguntei forçando um sorriso. — É só uma bolsa de roupa, Samuel. Não seja exagerado.
— Vou sentir sua falta, Nat — ele se aproximou e me envolveu em um abraço. — Queria que ficasse aqui comigo.
— Você sabe que não posso — murmurei, soltando-me de seu aperto, e me sentando a beira da cama. Eu também me sentia estranha. — Está agindo como se eu estivesse indo para longe — tentei suavizar a tensão no ar, mas não tive sucesso.
— O que eu fiz de errado, Natacha? Não consigo entender essa sua frieza repentina. Parece que estou te perdendo e não sei o motivo.
— Eu pensei que seria mais fácil assumir as rédeas da minha vida — confessei, sentindo um nó se formar na garganta. — Cheguei aqui cheia de ideias, impulsionada por uma vida que não era minha, e agora... agora tudo parece um caos. Meu mundo está desabando e, no fundo, eu só queria encontrar o meu lugar.
— Você se arrependeu de ficar comigo? — Samuel perguntou, com um olhar triste. — Eu te tratei mal? Se deixei a desejar, só me diz o que fazer para consertar. Eu posso mudar e... Não desiste de mim, por favor!
Ele me abraçou tão apertado que senti toda a minha coragem se esvaindo. Eu havia decidido conversar sobre como me sentia em relação ao Ian e toda aquela situação que nos envolvia, mas agora, com aquele gesto, simplesmente não consegui.
Desde a infância, aprendi com minha cultura que a lealdade ao meu companheiro era sagrada, assim como a obediência que eu lhe devia. Samuel, embora nossa relação não fosse oficialmente reconhecida, ele ocupava um espaço significativo em minha vida, um espaço que eu mesma permiti que ocupasse, o que tornava impossível ignorar essa realidade. O que estava em jogo era mais do que apenas uma amizade desfeita ou um coração machucado. Qualquer decisão que eu tomasse mudaria o rumo da minha vida para sempre.
— Me desculpa — murmurei culpada. — Eu não queria te magoar, me sinto perdida e... O que eu faço da minha vida?
— Eu te amo Natacha, de verdade, e não quero te perder. Desde que nos envolvemos eu tenho tentado ser alguém melhor e achei que estivesse conseguindo. Parei com as festas, estou me dedicando ao trabalho e aos estudos, pensado no futuro que gostaria de dividir contigo. Estou me esforçando para me encaixar na sua vida, mas, se você não está feliz comigo, preciso entender o que estou fazendo de errado. Por favor, me ajude a entender, porque eu realmente quero muito lutar pelo seu amor.
— Eu não tenho essa resposta — falei com lágrimas nos olhos. Certo ou errado, os momentos que vivemos me marcaram muito, e ver a dor em seus olhos só aumentava minha culpa. Eu e o meu dom de fazer tudo errado.
— Você está assustada e o conselho vem pressionando; eu te entendo. Mas não desista de nós assim. Vou assumir minha parte da fazenda e te dar a vida que você merece. Eu quero muito, mas muito te fazer feliz.
— Então me leve logo daqui — pedi, sem ter a menor certeza se realmente desejava aquilo. Aquele olhar profundo era capaz de me fazer confessar um crime que não cometi.
— Mê de uns dias, eu vou agilizar as coisas, prometo — disse ele, antes de me dar um beijo e deixar o quarto.
— Eu nem sei mais o que estou fazendo — murmurei, me jogando de costas no colchão e tapando o rosto com a mão.
Hoje vejo que meu maior problema era a indecisão. Se eu tivesse tido um pouco mais de maturidade, poderia ter evitado muitos dos desafios que enfrentei. Quando somos jovens, alimentamos a ilusão de que sempre haverá tempo para corrigir nossos erros. No entanto, a verdade é que o tempo é implacável; ele passa rapidamente e não espera por ninguém. Foi tropeçando em meus erros que aprendi que quem vive na indecisão arrisca acordar um belo dia e perceber que ficou para trás.
***
Terminei de fechar a bolsa com as roupas e organizei o quarto, esforçando-me para deixá-lo exatamente como estava quando cheguei. Era estranho; embora estivesse ali há pouco tempo, já me sentia parte da família, da rotina, de tudo aquilo. No entanto, sabia que o momento de retornar para casa se aproximava, e que eu precisava enfrentar meus problemas de frente. Ou agiria agora, ou correria o risco de ver a vida passar enquanto girava em círculos, mergulhada no abismo da indecisão, colhendo os frutos amargos das sementes que plantei.
Respirei fundo enquanto caminhava pelo jardim, tentando memorizar cada canto, pois não sabia se realmente retornaria ali. Na verdade, eu não tinha certeza de mais nada. Ao passar pelo estábulo, avistei Eduardo encostado na baia, onde Ian examinava atentamente um potro. Eduardo parecia distante, olhando para o vazio, como se não estivesse realmente presente.
— Pensando longe? — murmurei, encostando-me ao seu lado.
— Um sentimento de impotência — sua resposta veio carregada de desânimo.
— Eles vão ficar bem — tentei sorrir, buscando amenizar a tensão, mas sabia que meu esforço não era suficiente. — O Caio é bom; ele vai encontrar a sua namorada.
— O Caio é teimoso e impulsivo; toma decisões sem pensar e age como se sempre houvesse uma saída. Mas a vida não funciona assim. Ele é muito diferente de mim.
— Não consigo imaginar a dor de ter um irmão desaparecido assim, sem saber se está seguro — refleti em voz alta.
— Não queira — disse Ian, se juntando a nós. — Eu daria tudo para poder abraçar a Pérola ao menos uma vez.
— Eu e o Caio passamos muito tempo afastados. Dividíamos o mesmo teto, mas mal nos falávamos. Nos aproximamos há pouco e nem consegui olhar em seus olhos e dizer o quanto o amo e admiro — Eduardo voltou seu olhar para cima como se tentasse controlar a emoção, seus olhos tinham um brilho intenso como se lágrimas fossem transbordar a qualquer momento. — Sempre quis ser como ele: alegre, divertido, destemido diante da vida. Mas temia essa sua paixão por aventuras, essa necessidade de desafiar o perigo. Se soubesse que ele desapareceria dessa forma, teria lhe dito tantas coisas.
— Eu já perdi minhas esperanças, mas você... você ainda terá a oportunidade de dizer tudo o que deseja. Seu irmão é forte, esperto, sabe se defender. Ele vai voltar.
— O Venâncio não poderia ter morrido, ele tinha que pagar em vida por todo sofrimento que causou — respirei fundo, me sentindo frustrada.
— O Venâncio tinha um cúmplice que enviava fotos da Ana, minha namorada com mensagens de ameaça ao Caio. Seus comparsas chegaram a invadir a casa dela, porque pensavam que eles estavam juntos. Sempre nos confundem.
— Então ele sabia que o Caio é policial — constatei.
— Sim, mas não sei por que ele não o delatou. É por isso que estou aqui: quero montar esse quebra-cabeça — Eduardo cerrou os olhos transmitindo uma fúria que me deu arrepios. — Eles levam duas pessoas que amo muito, e não vou sossegar até que paguem por isso.
***
Não era apenas o Samuel que agia como se eu estivesse indo embora para longe; sua mãe também demonstrou estar muito emocionada com meu retorno para casa. Confesso que também me senti triste. Foram momentos marcantes que ficarão eternamente guardados em meu coração e em minha memória.
— Você promete me visitar com frequência? — indagou a patroa, enquanto Alejandro já ligava o carro para partir.
— Com certeza, vou vir sim — respondi, sorrindo de verdade, enquanto lançava um último olhar ao redor. Mesmo sem ter deixado a sede da fazenda, uma saudade intensa começava a se instalar em meu peito. É reconfortante sentir-se acolhido.
A distância entre nossa comunidade e a fazenda era pequena se olhássemos em linha reta, mas a estrada sinuosa tornava a jornada um pouco mais longa, com pouco mais de um quilômetro de terra batida a percorrer. Havia uma trilha que serpenteava entre as pastagens, muito usada pelos peões que iam a pé ou, como a Soraia, de bicicleta para o trabalho. No entanto, nem todos se atreviam a utilizá-la, pois o gado nelore costumava pastar por ali.
Era comum ter que desviar apressadamente de vacas paridas, sempre prontas para defender suas crias. Eu mesma já vivi muitas emoções ao passar por ali, mas, agora, ainda em recuperação da última queda, não me arriscaria a enfrentar aquele cenário, então a carona do meu irmão era bem-vinda.
Enquanto dirigia, Alejandro começou a relembrar os tempos passados, trazendo à tona os momentos alegres que compartilhamos em nosso lar. Naquele instante, eu não percebia suas intenções, mas hoje entendo que ele fazia isso para me lembrar de que não estava sozinha. Ele queria que eu visse quantos momentos felizes vivemos naquela casa e em nossa comunidade, ajudando-me a não ficar presa às lembranças daquela noite terrível que tanto me marcou. Mal sabia ele o quanto sua atitude foi crucial para que eu me acalmasse, pois, à medida que me aproximava de casa, meu coração disparava ainda mais.
— Como é bom ter você de volta, filha — meu pai me acolheu em um abraço apertado.
— Vai ficar tudo bem, não é? — perguntei, ainda no calor de seu abraço.
— Vai, sim, você não está sozinha; estamos todos aqui para te apoiar.
— Bem-vinda ao seio de sua família, minha ciganinha sonhadora — disse meu avô abrindo os braços para me acolher.
— Eu te amo vô.
— Desculpe por não ter ido te visitar. Estive mal nos últimos dias, peguei uma virose e fiquei de cama — disse Ariane, com um semblante abatido.
— Eu não sabia que você estava doente. Espero que já esteja melhor — comentei, preocupada.
— A cigana Carmencita me deu algumas ervas para fazer chá, e estou me sentindo bem melhor.
— Ariane é forte! A Jade também pegou virose e ainda não se recuperou — comentou minha mãe, juntando-se a nós.
— Nat, o quarto está lindo! Venha ver! — exclamou Soraia, eufórica.
Por um instante, hesitei. Não sabia como seria entrar naquele cômodo onde aquele homem me apontava a arma, como se fosse uma tortura psicológica sem fim. No entanto, ao sentir a mão de Alejandro apertando a minha, decidi seguir em frente. Afinal, como eles disseram: eu não estava sozinha.
— Obrigado — gesticulei com os lábios, ganhando um sorriso como resposta.
Respirei fundo e avancei alguns passos, com o coração disparado, enquanto uma mistura de sentimentos me consumia. A lembrança daquela noite ainda estava fresca em minha mente, como um eco persistente que não me deixava em paz.
— Ele não está lá — disse Alejandro, apertando minha mão quando paralisei no meio do corredor.
— Eu sei, mas é que... — respirei fundo e fechei os olhos, buscando a lembrança de Ian. Ele me protegeu em seus braços e me fez sentir segura aquela noite. Queria muito que estivesse ao meu lado agora.
— Quando estiver pronta — murmurou meu irmão, cuidadoso.
Sentia os olhares nas minhas costas, enquanto minha família permanecia em silêncio, como se esperasse que eu encontrasse forças para ultrapassar aquela barreira que tanto me incomodava. A lembrança da arma e a sensação do pavor paralisante retornavam com uma intensidade que me fazia querer fugir. Um nó se formou em minha garganta; eu me sentia pequena e vulnerável.
— Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem — sussurrei para mim mesma, com os olhos cerrados, tentando afastar o desespero que crescia em meu peito. O medo era tão intenso que mal percebi quando Alejandro soltou minha mão.
— Calma, você está segura agora.
Um sorriso de alívio surgiu em meu rosto ao reconhecer aquela voz. É impressionante como algumas pessoas têm o poder de nos acalmar simplesmente por estarem ao nosso lado. Ele veio em meu socorro, pronto para me oferecer apoio naquele instante de tensão que parecia me sufocar. A mão que agora segurava a minha era a mesma que me acolheu em seus braços quando eu mais precisei; a mesma que sempre esteve estendida para mim durante os momentos difíceis, um farol de esperança em meio à tempestade.
— Obrigado por estar aqui — murmurei com a voz trêmula, quase inaudível.
— Por mais difícil que seja cruzar aquela porta, é necessário enfrentar o medo. Ele não está lá, não voltará, e você não está sozinha.
Olhei para trás e percebi que vários olhares curiosos me cercavam. Senti o peso da expectativa, mas, ao mesmo tempo, uma sensação reconfortante, pois Ian estava ao meu lado, prestes a atravessar aquela barreira.
— Ele não está lá — reafirmei. — E também não voltará.
— Não, ele não voltará — murmurou Ian enquanto seguimos até o final do corredor.
O medo é um sentimento cruel, capaz de nos paralisar e nos afastar de nossos objetivos. No entanto, quando o enfrentamos, ele pode se transformar em um poderoso gatilho para a coragem e a superação. Às vezes, tudo o que precisamos é da pessoa certa ao nosso lado, segurando nossa mão e nos encorajando a dar o próximo passo.
Quando finalmente atravessei aquela porta, esperava encontrar os ecos da minha angústia e os fantasmas da noite fatídica que tanto me atormentavam. No entanto, em vez disso, deparei-me com um espaço sereno e acolhedor, onde cada detalhe havia sido cuidadosamente planejado por meu pai para me receber e dar início a uma nova jornada. Olhei para Ian e respirei fundo; agora me sentia segura, preparada para enfrentar meus fantasmas e deixar aquele pesadelo para trás.
— Está tudo bem? — Ian perguntou. Seu olhar exibia um misto de preocupação e curiosidade.
Olhei para a janela que agora tinha uma floreira repleta de petúnias coloridas, era possível ver pela fresta da cortina de renda branca, um presente da patroa como uma promessa de paz. Para não fugir à tradição, fitas coloridas adornavam a cortina dando um ar mais alegre. No canto direito estava uma cama nova, presente de meus pais. Ela estava coberta por uma colcha feita à mão, repleta de bordados; presente de Carmencita.
Almofadas de diferentes tamanhos e formatos, em tons variados, enfeitavam a cama juntamente com bichos de pelúcia, assim como a cama de Soraia no lado oposto. Embaixo da janela, entre as camas, uma mesa de madeira rústica repleta de objetos pessoais, como livros de contos, cartas de tarô e pequenos amuletos. Frascos de vidro com ervas secas e especiarias estavam dispostas cuidadosamente, exalando aromas que deixavam o ambiente mais acolhedor.
Na parede branca, um desenho vibrante de uma fogueira se destacava, retratando ciganas dançando alegremente ao seu redor, enquanto um cigano tocava violino. Ao fundo, uma charrete era representada com tanto realismo que quase parecia uma fotografia; um presente de Wladimir, que tinha um imenso talento. A mobília era complementada por uma penteadeira repleta de produtos de beleza, porta-joias e perfumes, posicionada em frente a um roupeiro também novo, que tinha em sua porta, imagens que lembravam um painel de fotos, contendo momentos felizes que vivemos desde a infância; um presente de Ian.
Um tapete colorido, felpudo, se estendia entre as camas, completando a decoração, daquele quarto que nada lembrava o cômodo onde vivi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Cada detalhe pensado com muito carinho, presentes de pessoas queridas, por mais simples que fossem, me fizeram sentir amada. Eu realmente não esperava todo aquele acolhimento.
— Muito obrigado — falei enquanto lágrimas de emoção desciam pelo meu rosto. — Eu amo todos vocês.
— Seus amigos fizeram isso, para que nunca se esqueça de que não somos apenas uma comunidade, somos uma grande família — disse minha mãe, me entregando uma caixinha, que ao abrir desabei em um choro sentido.
Ali estavam bilhetes e cartas repletos de mensagens de carinho, incentivo e motivação, além de relatos de momentos da nossa infância e fotos que formavam um verdadeiro tesouro. Parte do meu choro era causada pela culpa. Eu tinha tudo o que precisava para ser feliz naquele lugar, mas me permiti mergulhar no abismo da ilusão, quando sonhei com uma vida que não era para mim.
Agora sentia-me como uma traidora do meu próprio povo, carregando o peso de uma decisão que partia meu coração em dois pedaços. Entre ficar e enfrentar as consequências dos meus erros, e a dor de fugir de tudo isso: fugir me parecia menos doloroso. Covarde.
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