Capítulo 24 Venâncio

ATENÇÃO!

ESTE CAPÍTULO PODE CONTER GATILHO DE RELATO DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA E SEXUAL. CASO  A TEMÁTICA LHE INCOMODE, PODE PULAR.

Aquela tarde saí com a Bruna pela fazenda, ela queria saber um pouco mais sobre nossos costumes e até que foi legal aquela conversa, percebi que estava mais aberta sobre algumas coisas que para os não ciganos não são tão comuns. Eu já conseguia caminhar sem muitas dificuldades, então descemos pela trilha até que paramos na divisa da fazenda. Dali para frente eu não ousaria passar, estava perto da mata onde tudo aconteceu.

— Tenho medo dessa cabana — Bruna esfregou os braços, arrepiada.

— Eu soube que espalharam que é assombrada, mas que surgiu esse boato por alguns jovens estar usando para fazer coisas erradas.

— Então não tem fantasma? — perguntou ela

— Não, lá só tem móveis velhos, Ariadne não fazia mal a ninguém.

Olhei para a velha cabana de madeira rústica, e imaginei como deveria ter sido solitária a vida de Ariadne. Suas paredes de tábuas desgastadas, por muitas vezes presenciaram murmúrios de uma mente em surto, assim como a saudade daqueles que amava. As janelas, com vidro embaçado, permitiam que os raios de sol iluminassem seu interior, que algumas vezes, quando brincava por seus arredores, me pus a observar. Era estranho saber que um dia foi habitada e agora era só uma pequena construção no meio do nada, esquecida pelo tempo.

— Não tenho muitas lembranças dela, eu era criança pequena quando desencarnou, mas me recordo de uma vez passar por aqui com meu pai e vê-la sentada na escada da porta da cozinha, bem ali. Me lembro de seu cabelo amarelo, comprido, caindo nos ombros, da pele maltratada pelo sol. Os olhos eram verdes e exibiam um brilho triste, nunca me esqueci daquele olhar.

— Tio Ozório conta que era uma bela mulher — Bruna comentou.

— Queria tê-la conhecido melhor — murmurei.

— Por que o povo cigano é tão fechado?

— Nem todos os clãs são rígidos como o nosso.

— eu seguia uma cigana na rede social casada com um não cigano, eles têm dois filhos e moram na cidade.

— Sim, existem vários casais assim, mas é como te falei, depende muito das regras de sua comunidade. Sempre ouvi que é uma forma de manter vivas as nossas raízes. O casamento entre um cigano e uma gadgí só é permitido porque as mulheres devem obediência ao marido, garantindo assim que não haja desonra aos nossos costumes. É por isso que o casamento entre uma cigana e um gadjô não é permitido, ele não carrega a semente cigana — expliquei antes de soltar um suspiro profundo. — Na minha opinião, ser cigano é mais sobre como se sente aqui no coração, do que sobre o sangue que corre nas veias.

— Eu mudaria para me encaixar nessa cultura, mas sei que não seria fácil. Não se desliga assim de uma vida inteira de uma hora para outra.

— Não mesmo.

— E o que faremos agora?

— Você vai dançar.

— Dançar?

— Sim, vista minha saia — falei retirando a peça que estava em meu corpo e estendendo para ela.

— Tá maluca!

— Veste logo, como vai dançar sem balançar a saia?

— Tá, então você coloca a minha calça.

— Eu?

— Claro, vai ficar assim?

— Valha-me — peguei a calça de sua mão e vesti rapidamente, me empolguei tanto em transformá-la numa cigana, que esqueci que estava semi nua, e confesso que foi muito estranho vestir aquela calça. Era a primeira vez na vida que fazia isso, me senti sei lá, não curti, mas Bruna ficou uma bela cigana.

— Solte os cabelos — pedi.

— Odeio cabelo solto, sinto muito calor.

— O cabelo é o charme da mulher, solta logo!

— Senhor, onde isso vai parar? — Bruna protestou, mas soltou as madeixas que viviam enroladas em um coque. — Na boa, é estranho te ver de calça.

— Não sei se me acostumaria.

— É bom pensar nisso, se ficar com Samuel, terá que se vestir como nós.

— Quando estive no sul, eu usava vestidos longos, mas calça é a primeira vez.

— Um cachorro, que fofinho! — Bruna correu de encontroa um caramelo que vinha saltitante pelo pasto, pelo visto era filhote.

— Maluca, vai pegando bicho no colo, nem sabe de onde saiu — falei a alcançando.

— Você tem dono, meu amor? — ela acariciou o bichinho. — É ela, vou chamar de pipoca, veio pulando pelo pasto. Quer morar comigo?

— Você não vai levar esse cachorro pra casa, ficou maluca?

— Eu vou!

Balancei a cabeça incrédula, e quando ouvi um barulho de cachorros vindo do outro lado dos arbustos, fiquei muito preocupada, poderia ser homens estranhos caçando, desejei muito que não fossem os bandidos que trabalhavam com Venâncio.

— Pipoca, volte aqui!

Eu me distraí por um segundo e Bruna corria atrás da cachorrinha que disparou por entre os galhos verdes de espinho. A divisa da fazenda naquele local não tinha cercas, e sim, uma parede de arbustos espinhosos. Eu tentei chegar ao outro lado me arrastando por baixo, mas não consegui, então resolvi voltar novamente rastejando, e ao sair, pude ver uma bota preta bem a minha frente, e ao olhar para cima, o dono daquela bota, me encarava de cenho franzido.

— Natacha, espero que tenha uma boa explicação para estar se rastejando no meio do mato — disse Ian, de braços cruzados a minha frente.

— Se eu te disser que estava brincando de ser cigana com a Bruna e a cachorrinha fugiu, você acredita?

— Não subestime minha inteligência, mocinha! — suspirou me estendendo a mão.

— Obrigado pela ajuda — falei me limpando.

— Por tudo o que é mais sagrado, cigana, que roupa é essa?

—Ah, a calça, então...

— Aí! — o grito da Bruna do outro lado nos chamou a atenção. Ian fez sinal para que eu ficasse quieta.

— Me solta! Eu só queria pegar minha cachorrinha!

— Essa cachorra é minha — disse uma voz que eu não conhecia.

— Não sabia, ela apareceu ali e eu...

— Para que tanta pressa, ciganinha?

— Me solta! Não sou cigana, e mesmo que fosse exijo respeito!

— Invadiu minhas terras, não está em posição de exigir nada, garota — disse ele, enquanto o Ian e, eu, seguíamos pelo outro lado.

Meu coração gelou ao ver Bruna encostada a uma árvore toda arranhada pelos espinhos e um rapaz em pé a sua frente.

— Me deixe ir embora, por favor! — implorou ela.

— Não sem antes me dar algo em troca pela sua liberdade.

— Não é assim que se trata uma dama, meu rapaz! — Ian interveio.

— O que faz em minhas terras? — perguntou o jovem.

— Vim buscar minha irmã — Ian cruzou os braços a poucos metros de onde estavam.

— Que eu saiba sua irmã fugiu com um babaca, o que é uma pena, ela era uma menina linda.

— Não vou perder meu tempo discutindo contigo. Bruna vamos embora.

— Ah, ela não vai não.

— Ah, ela vai!

Dei um pulo quando Ian descruzou os braços rapidamente e atirou uma faca, que acertou a árvore ao lado da cabeça do rapaz, que se encolheu com uma expressão assustada.

— Cara, você está louco? Poderia ter me acertado com essa merda!

— Acredite, eu acertei exatamente onde queria, mas posso jogar outra se preferir sentir o gosto da lâmina desta vez — disse ele mostrando mais uma de suas facas, mas o jovem não esperou para ver o resultado. — É por isso que não ando com arma de fogo — Ian balançou a cabeça negativamente. — Você está bem?

— Eu acho, que... — ela não terminou de responder, cambaleou e desabou desmaiada no chão.

— Bruna! — gritei enquanto o Ian a socorria.

— Olhe o preço da rebeldia, vocês não têm juízo mesmo — bufou quando ela melhorava. — Qual a necessidade de trocar de roupa no meio do mato?

É claro que ouvimos aquela bronca de cabeça baixa, estávamos erradas.

— Nat, vista sua saia antes que seja vista por alguém — ele se virou de costas; já estávamos em nossas terras.

— Pronto — avisei quando já estávamos trocadas.

— Não quero que as duas voltem a entrar nas terras dos Amaral, estamos entendidos?

— Você conhece aquele cara? — perguntei curiosa.

— Ele é o João Pedro, filho do senhor Evandro Amaral, eles sempre foram contra a estadia de nosso povo por estas terras. Esse cara poderia ter feito algo muito sério contigo, Bruna, mais cuidado da próxima vez.

— Não vai ter a próxima vez — ela respondeu cabisbaixa.

— Vocês têm noção de que se ele estivesse armado poderia ter acontecido uma tragédia ali?

— A minha mãe?

— O quê? — Ian perguntou, olhando para mesma direção que ela.

— A minha mãe está entanto na cabana da Ariadne, com seu pai.

Eu e Ian, nos entreolhamos, e quando ela correu rumo a cabana, ele a alcançou e a segurou pelo braço.

— Não.

— Não? — ela o olhou de cenho franzido. — O que eles estão fazendo ali?

— Não sei, mas não acho que deva ir até lá. Eu resolvo isso.

— Não mesmo! — Bruna o seguiu, e eu fui logo atrás.

— Eu já disse que não, Ozório! — a voz de Daiane nos fez fazer uma parada brusca.

— Você não tem escolha, eu vou contar a verdade a ela.

— Que verdade? — Bruna sussurrou. Eu e Ian, trocamos olhares mais uma vez.

— Não, você não vai. Tem que respeitar minha decisão!

— Por que faz isso comigo, Daiane, qual a necessidade de me privar de ser pai?

— Não Ozório!

— Por quê?

— Por que menti para você. Não é o pai dela.

— Está falando isso para me afastar da minha filha, mas dessa vez não vou deixar. Ela tem que saber!

— Quando me deu carona, eu estava com o teste de gravidez na bolsa. Descobri naquela tarde e fiquei desesperada, aí te encontrei e vi a oportunidade perfeita de dar um pai decente ao filho que esperava. Tive relações contigo, não só porque te amava, eu precisava.

— Pare de história Daiane!

— Não é história, eu queria muito que fosse o pai, mas infelizmente, não é.

— Quem é?

— Não me force a tocar nessa ferida.

— Quem é. O pai. Da Bruna. Daiane!

— O Venâncio.

— O quê? — um uníssono ecoou entre nós. Bruna caiu de joelhos em um choro silencioso.

— O Venâncio, mas... como?

— Ele também me deu carona uma vez e..., foi horrível — sua voz trêmula denunciava que estava chorando.

— Ele te forçou?

— Sim.

— Ele a forçou, você engravidou e depois se deitou comigo? Quer mesmo que eu acredite nisso?

— Mas é a verdade!

Ian bufou dando um passo a frente, mas Bruna segurou em seu braço, balançando a cabeça negativamente.

— Eu quero ouvir tudo.

— Uma mulher violentada não correria para a cama de outro homem, Daiane.

A conversa lá dentro continuou, e do lado de fora, Bruna derramava lágrimas e mais lágrimas, agora de joelhos naquele chão em meio ao capim. Eu e Ian trocmos olhares, então me abaixei e segurei a mão da garota, que apertou firme; choramos juntas.

— Você não sabe o que passei até decidir fazer aquilo. Não sabe o que ainda passo, remoendo um trauma que nunca cicatrizou.

— Por que não me contou a verdade?

— Ele me ameaçou, me perseguia, me amedrontava, não podia contar. Eu te amava, pensei que se conseguisse ficar contigo me sentiria um pouco menos suja. Queria ter uma lembrança boa para reprisar em minha mente quando ele me forçasse outra vez, porque ele nunca parou. Todas às vezes que estive com ele, era em você que pensava.

— Isso é insano.

— Talvez, mas foi a única forma de suportar. Eu consegui te tirar do coração, mas as feridas abertas por ele, ainda estão aqui.

— Deveria ter denunciado, ele seria preso, e...

— Você não sabe no que aquele homem se transformava quando estava com raiva. Quando nos beijamos no carro, Ozório, eu vi a oportunidade perfeita de dar um rumo diferente a vida da criança que esperava. Já bastava, eu, ficar a mercê daquele monstro, não queria o mesmo destino para um ser inocente. Bruna não é prematura, ela...

— Droga, você deveria ter me contado, eu teria te ajudado!

— Ninguém poderia ter me ajudado, ele era muito perigoso.

— É por isso que nunca se envolveu com ninguém?

— Ele não deixava, mesmo de longe me ameaçava, dizia que se arrumasse alguém ficaria viúva.

— O Venâncio sabia que ela era sua filha?

— Ele foi meu primeiro homem, então, sabia.

Por um breve instante o silêncio tomou conta, eu não sabia o que fazer, e pelo visto, Ian estava tão perdido quanto. Bruna agora olhava para o chão respirando pesado.

— Eu não me importo, amo a Bruna como minha filha e quero assumir sua paternidade.

— Não, você tem família, e...

— Me deixe ser pai dela, Daiane. Ainda dá tempo dela realizar esse sonho e ter o pai por perto, não precisa passar pelo sofrimento de saber que ele era um assassino.

— Sou fruto de uma violência — Bruna murmurou, balançando a cabeça. — Ela tinha que ter me...

— Não — Ian se abaixo a sua frente a olhando nos olhos. — Sua mãe te ama e sempre te protegeu.

— Eu não merecia ter nascido, ela não podia fazer isso comigo. Eu não sou filha daquele demônio! — Bruna gritou, espancando a própria cabeça.

— Calma! — Ian a abraçou. — Pare, vai se machucar!

Daiane e tio Ozório vieram apressados, e eu, só sabia tremer e chorar assistindo aquela cena.

— Filha! — Daiane tentou abraçar a filha, que a empurrou.

— Você tinha que ter me contado a verdade!

— O que estão fazendo aqui? — tio Ozório perguntou ao Ian.

— Depois eu te explico, ela precisa de apoio agora.

— Filha, eu quis te proteger, me perdoa! — Daiane chorava em desespero diante da recusa da filha a aceitar o seu abraço.

— Aquele demônio não é meu pai, mãe. Por favor, diga que isso é um engano — Bruna repetia entre soluços. — Ele não é meu pai.

— Não. Eu sou seu pai — tio Ozório se aproximou e se abaixou a sua frente. Bruna chorava de joelhos e cabeça baixa.

— Não é, você não é meu pai.

— Bruna, olha para mim! — ele segurou seus pulsos, ganhando sua atenção.

— Não importa o sangue que corre em suas veias, eu sempre te amei como uma filha, e isso ninguém tira de mim..., nem de você. Não estive sempre por perto?

— Sim — ela chorou olhando em seu rosto.

— Sou seu pai de coração, e ninguém precisa saber a verdade. Podemos fazer um combinado e essa história não sai daqui.

— Não entendi — Bruna o olhou confusa.

— Não escondo nada de minha esposa, mas as demais pessoas não precisam saber a verdade. Eu te assumo como minha filha e te dou meu sobrenome, deixe aquele monstro onde está, queimando no inferno.

— Ciganos não podem mentir — ela disse entre soluços.

— Se aquele que nos guia achar que mereço um castigo por isso, eu pago o preço. Você me aceita como pai?

— Mãe? — ela olhou para Daiane, que apenas chorava.

— Hoje eu sei que está segura, filha, ele sempre foi o seu pai de coração.

— Ian? — Bruna olhou para o cigano que observava a cena com lágrimas nos olhos.

— Desde que não enganem a minha mãe, estou de acordo. Eu já te considerava minha irmã.

— Eu não sei se...

— Eu quero ser teu pai, filha.

— Me chamou de filha — Bruna limpou o rosto com a mão. — Eu vou poder te chamar de pai?

— Por favor — tio Ozório sorriu. — Esse assunto morre aqui — afirmou, olhando para nós.

— Todo mundo tem um segredo — desviei o olhar.

— Darei entrada no reconhecimento de paternidade, faremos o anúncio oficial no assentamento assim que sair a papelada.

— A tia Carmencita vai aceitar?

— Ela sempre te aceitou, tenho certeza de que concordará. Minha velha tem um coração bondoso.

— Eu vou ser cigana?

— Você é cigana — falamos em um uníssono, que apesar da situação tensa, terminou em risos.

— Venâncio ajudou e levar a sua filha — Bruna o olhou com um semblante de tristeza —, e agora quer abraçar a dele?

— Não sou um cara perfeito, meu filho está aqui para confirmar, e... — tio Ozório olhou para Daiane, depois voltou sua atenção para Bruna novamente. — Já fiz coisas que magoaram pessoas e creio que um dia pagarei por isso. E com Venâncio não será diferente, ele escolheu seu caminho, pode até ter se livrado da justiça dos homens, mas se existe uma justiça maior; ele ainda pagará por todos os seus crimes.

Voltamos para a sede da fazenda, Bruna foi para casa com a mãe, e o tio foi para o assentamento falar com sua esposa. Ian se mostrou preocupado com aquela decisão de manter um segredo tão sério, mas em momento algum se opôs. Ao menos agora sabíamos de qual filha o homem falava aquela noite, e confesso que tive muita pena da minha amiga. 

Não sei como reagiria se descobrisse que era filha de um assassino cruel como, Venâncio.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top