Capítulo 21 Um alvo
ATENÇÃO!
ESTE CAPÍTULO CONTÉM GATILHOS ENVOLVENDO SEQUESTRO E TORTURA PSICOLÓGICA. CASO SE SINTA DESCONFORTÁVEL, FIQUE À VONTADE PARA PULAR PARA O SEGUINTE.
Enquanto do lado de fora a música ecoava alegremente, acompanhada de sons de risos e conversas descontraídas; do lado de dentro eu sofria uma verdadeira tortura psicológica com aquele homem parado naquele canto me encarando com uma expressão sinistra. Torci tanto para que meu pai aparecesse, meu irmão, mas pelo silêncio que se fazia presente, infelizmente, minha única companhia era aquele estranho.
— Preste bem atenção: eu e você, vamos sair por essa janela, sem fazer qualquer tipo barulho. Nem pense em gritar, ou fazer coisas idiotas para pedir ajuda, não queremos que ninguém se machuque. Entendeu?
— Eu não quero sair — me encolhi quanto tive meu braço puxado bruscamente.
— Você vai — ele sorriu apertando meu rosto com a mão. — E vai quietinha, obediente, porque eu posso perder a paciência e será muito, mas muito ruim.
— Por favor, não — implorei sentindo as lágrimas molharem meu rosto.
— Ninguém precisa sair ferido, mocinha. É só fazer o que mando — ele passou o braço pela minha cintura, me apertando contra seu corpo. Suas mãos tremiam, a respiração era pesada. — Seja bem obediente.
— O senhor não é mal, seu Venâncio, é um de nós, não machucamos uns aos outros — murmurei, qualquer coisa tentado ganhar tempo, e nem sabia para quê.
— Eu pensei que pudesse levar uma vida normal, mas meu passaporte para o inferno já foi carimbado há muito tempo.
Apertei os lábios com firmeza, respirando acelerado, e fechei os olhos quando em um impulso usando o braço que apertava meu corpo, ele me fez sair por aquela janela; se ao menos conseguisse correr. Eu caí, tentei me arrastar para longe, mas o homem foi muito rápido, me agarrou pelo cabelo e me fez levantar. Sob ameaça daquela arma, sequer consegui gritar.
— Por favor, não me mate — implorei sendo arrastada pomar adentro.
— Eu não queria te levar, menina, mas se não fizer isso vão vir atrás da minha filha.
— Por favor, seu Venâncio, eu não consigo andar, está doendo! — falei em lágrimas.
Ao passo que nos distanciávamos, fui perdendo às esperanças. Já não ouvia mais as vozes nem a música, só via o clarão da fogueira e algumas silhuetas que se destacavam pela cor quente das roupas e seu brilho, lá adiante, longe o suficiente para não perceberem o que acontecia.
— Como assim, mudança de planos, estou com a cigana, se vira! — ele dizia ao celular. — Não, não! Ela estará na cabana da velha, se vira!
— Aiai — choraminguei caindo de joelhos, quando meu pé se enroscou no emaranhado de capim. Estava descalço, o corpo aranhado pelos galhos dos arbustos, jamais pensei viver algo tão torturante em minha vida.
— Vamos garota!
O homem se mostrou inquieto com aquele celular na mão, buscando sinal. Saímos do matagal e chegamos à estrada de terra da divisa da fazenda; a mesma que levava, tanto para a saída para a cidade, quanto para a mata fechada à beira do rio, que era o caminho que ele fazia agora.
— Cobra, deu errado aqui, os caras... não, ela está comigo — Venâncio andava apressado falando ao celular, que segurava com uma mão, enquanto a outra não desgrudava de meu braço. — Eu não sei, vou deixar a garota na cabana, eles que se virem, minha parte eu fiz. Não sei cara!
Ele desligou o celular e olhou a nossa volta como se tivesse percebido algum movimento estranho, então saiu da estrada e me arrastou para dentro da mata, agora ainda mais rápido. Estava escuro, alguns flashes de luz da lua clara passavam por entre as folhas das árvores, era a única iluminação ao nosso redor. Cheguei a pensar que era o fim da linha.
— Por favor, seu Venâncio tenha piedade — minha voz quase não saía, estava transpassada de dor e medo.
Ele bufou me arrastando, e faltando poucos metros do rio, o homem caiu me levando consigo.
— Filho da puta! — grunhiu levando a mão na perna e pela penumbra vi uma adaga fincada na parte de trás de sua coxa.
Olhei lá adiante e vi uma silhueta que me era muito familiar vindo correndo por entre as árvores. Venâncio atirou em sua direção me fazendo gritar de pavor.
— Mais um passo e eu mato ela! — ele gritou apontando a arma agora em minha cabeça.
Ian sumiu por entre as árvores, eu não sabia se estava machucado, pedia aos céus para que não estivesse. Venâncio voltou a me arrastar e naquela correria acabou caindo na ribanceira.
— Droga, droga, droga! — o homem praguejava.
Eu estava enroscada em um galho de árvore, abaixo de nós, tinha mais barranco, arbustos e lama, o rio fica ali perto.
— Onde está?
O homem inquieto apalpava o chão e um brilho dourado me fez ver que havia derrubado a arma, não pensei duas vezes a chutei fazendo com que caísse no atoleiro, onde sumiu de minhas vistas.
— Inferno! — ele grunhiu segurando a perna, percebi que tentava retirar a faca. — Não me force a te matar, garota.
— Você está cercado, Venâncio! — a voz de Ian, ecoou pela mata. E logo em seguida ouvi mais vozes masculinas se aproximando.
Rastejei barranco acima segurando em galhos de arbustos, Venâncio agarrou a barra da minha saia me fazendo soltar um grito involuntário.
— Volte aqui — ele rosnava me puxando.
— Ian, socorro! — gritei em meio aquela escuridão.
— Natacha! — Ian gritou em resposta. — Aqui, eles estão aqui!
— Me ajuda! — gritei novamente, tentando chutar Venâncio, que me puxava praguejando algo que não entendi.
Era um local de difícil acesso, íngreme e escorregadio. O chão coberto por folhas úmidas e lama dificultava a locomoção. Avistei a figura de Ian se aproximando, enquanto o homem ainda se agarrava à minha saia, que já escorregava até o joelho; não pensei duas vezes, com um movimento rápido, retirei, conseguindo me libertar. Venâncio me pegou pela perna machucada e gritei de dor, eu precisava suportar; e quando a mão de Ian alcançou a minha, reuni todas as minhas forças e chutei Venâncio novamente, o acertando no rosto. Ele se desequilibrou e rolou por entre os galhos, soltando um gemido abafado.
— Força, Nat — disse Ian, me puxando até que saímos daquele buraco.
— Me espere na clareira! — Caio passou por nós com uma arma em punho, seguido por William, que também estava armado.
— Calma, vai ficar tudo bem — Ian tirou sua camisa, me cobriu, e me aconchegou em seus braços.
— Estou com medo — falei em lágrimas, quando ouvi os tiros. Os homens travavam uma verdadeira batalha contra o cigano, que mesmo ferido, não se entregava.
Ian segurou firme em minha mão e saímos juntos por entre as árvores, mas enrosquei o pé em uma raiz e acabei caindo.
— Falta pouco, Nat — disse ele me pegando nos braços. — Não chora, minha pequena, eu estou aqui, vou cuidar de você.
Eu estava seminua, assustada, vulnerável, chorando agarrada a ele, que caminhava apressado comigo rumo à clareira.
— O que aconteceu cara, eu te vi correndo e não consegui alcançar, me perdi na escuridão — disse Wladimir se aproximando ofegante.
— Eu estava com o William e o Caio em casa, a Soraia me avisou que tinha um homem no quarto da Natacha.
— Que homem? Ela está bem? — Wladimir me olhava com espanto.
Ian explicou ao primo, que Soraia quando esteve comigo percebeu que havia algo de errado, e ao se abaixar para verificar a lagartixa morta no chão, viu o homem ao lado do armário, então rapidamente o avisou. O que ninguém sabia é que Caio estava ali com o propósito de investigar o cigano, que já estava na mira da polícia.
— E pensar que esse homem perigoso vivia entre nós — Wladimir balançou a cabeça revoltado.
Chegamos na clareira, era um local onde costumávamos fazer piquenique, havia uma mina que nascia das pedras, quando criança tomei muito banho ali. Estava sempre limpo e organizado, mesas e bancos de madeira improvisada ficavam espalhados, balanços, cipó; nos dias quentes as ciganas usavam o espaço para fazer artesanato ao ar livre. Pena que o clima agora não era de alegria.
— Ele... ele entrou no meu quarto — chorei esfregando meus braços, quando Ian me ajudava a sentar em um banco. — Me agarrou, ele me agarrou, eu pensei que ia... aquele homem me fez pular a janela, me pegou pelo cabelo. Foi horrível!
Senti meu corpo formigar, uma sensação terrível se formou, não conseguia respirar, o pânico tomou conta.
— Tudo bem Nat, estou aqui! — Ian me abraçava apertado. — Ele não pode mais te machucar.
— Ele quer me levar para o Cobra, por favor, não deixa — implorei, me agarrando a ele naquele momento de desespero. Era uma mistura de medo, angústia, sensação de morte, tudo ao mesmo tempo.
— Ele te disse isso? — Ian perguntou, segurando meu rosto entre as mãos. — O que você sabe, Natacha?
— O Venâncio ligou para uma pessoa, parece que algo deu errado, então ligou para esse homem que chamam de Cobra. Ele também disse, que se não me entregasse iam vir atrás da sua filha.
— Que filha?
— Eu não sei, ele disse que ia me deixar na cabana da velha — eu falava e tremia ao mesmo tempo.
— Droga! — Ian praguejou. — Que cabana é essa?
— Ele vai ter que contar essa história direito — Caio apareceu por entre as árvores, trazendo Venâncio algemado.
O loiro tinha sangue em seus braços, peito e mãos, eu não sabia se era dele, mas parecia estar bem. Venâncio, todo coberto por lama, mancava segurando a costela, e pelo estrago em seu rosto, a luta foi feia. William os acompanhava, cheio de lama, também havia sangue em suas vestes, arranhões nos braços, uma cena de horror. Até tentei olhar para o homem que estava de cabeça baixa, mas o temor era tão grande que não consegui.
— Eu peço que minha identidade profissional seja preservada. É importante, então, por favor, não digam nada a ninguém — Caio orientou. — Provavelmente haverá uma revolta, temos que evitar um possível linchamento. Ele é só a ponta do iceberg, a polícia precisa interrogá-lo para obter mais informações e concluir a investigação, então, conto com vocês para isso.
Ian respirava pesado olhando para o cigano com ódio, assim como seu primo, Wladimir. Confesso que nunca os vi daquela maneira, tive medo da reação dos demais.
— Que pena, um verme desse não merecia viver — Wladimir cuspiu no chão de punho cerrado.
Deixamos a clareira rumo a minha casa; até tentei caminhar, mas mancava muito, então, diante de minha dificuldade, Ian me pegou novamente nos braços.
— Natacha!
Ao ouvir a voz do meu pai, não consegui segurar o choro, ele vinha com vários ciganos, dentre eles, meu irmão e os dois filhos do patrão. Todos muito preocupados.
— Aqui, cubra ela — ele tirou sua camisa e colocou sobre a parte exposta de minha perna. — Eu mato esse...
— Calma! — William e Wladimir o seguraram, quando partiu para cima do cigano.
— Me solta! Eu mato esse infeliz!
— A polícia já está vindo, seu Ramirez — avisou Caio, em meio aquele breve tumulto que se iniciou ali.
— Dane-se a polícia, esse verme entrou o quarto da minha filha!
— Pai, se acalme, o Caio tem razão, não pode agredir o cara, por mais que ele mereça! — Alejandro interveio. Mas meu pai estava muito nervoso.
— Cadeia foi feita para homem, se tocou na minha filha, eu acabo com sua raça!
— Ela está bem? — Samuel perguntou em meio aquela movimentação toda. Ian me apertava ainda mais em seus braços, ele não queria me soltar. — Você está bem, Nat?
Não consegui responder, apenas assenti com a cabeça, com o rosto molhado em lágrimas silenciosas.
— Vou levá-la para casa — disse Ian passando por eles.
Ele caminhou a frente dos demais, que falavam coisas que eu não ouvia, me agarrei ao seu pescoço e fechei os olhos, era como se ali, me sentisse segura.
— Não me deixe sozinha, por favor — murmurei, enterrando a cabeça em seu peito.
— Jamais — ele respondeu, me ajeitando em seus braços.
— A Nat! — ouvi Soraia dizer lá adiante.
Minha mãe chorava abraçada a cigana Carmencita, que estava tão nervosa quanto. Um reboliço de pessoas estava por ali acompanhando aquela cena, me agarrei ainda mais ao Ian, não queria que se afastasse de mim.
— A polícia, já está vindo, se afastem! — pediu Caio, quando os demais ciganos, revoltados, tentaram agredir Venâncio.
— Ela está bem, a situação está sob controle. Por favor, sem tumulto! — disse William.
— Aqui! — disse meu avô apontando para o quarto de artesanatos da minha mãe. — Traga-o para cá.
— Ótimo, eu preciso que nos deixem a sós — disse o Caio, apressado, levado o homem pelo braço.
Meu avô ficou em pé na porta, ninguém ousaria passar por ele, não naquele momento. William foi logo dispersando os curiosos, os mais íntimos ficaram na área da frente aguardando por notícias. Meu pai andava de um lado para o outro, lá adiante, com uma barreira de homens bloqueando sua passagem. Outros homens gritavam alvoroçados, a coisa estava fugindo ao controle.
— Ela precisa de um banho, não a deixem sozinha — disse Ian, me devolvendo ao chão.
— Não me deixa — pedi o agarrando.
— Calma, eu não posso te banhar, sua mãe cuidará de ti e...
— Não vá embora.
— Não vou, pode confiar — Ian segurou meu rosto entre as mãos, de modo que me fizesse encará-lo. — Eu preciso ajudar lá fora, Nat.
— Não me deixa — murmurei com a voz trêmula.
— Ele ficará aqui, meu amor — disse Carmencita, ajudando minha mãe a me levar até o banheiro.
Me encolhi embaixo do chuveiro e abracei minhas pernas enquanto minha mãe lavava meu cabelo. Estava cheia de lama, toda ralada, mas as feridas maiores estavam dentro de mim, e essas levariam um bom tempo para cicatrizar.
— Droga, calma, Ian, não! — Caio gritou.
Meu corpo estremeceu quando ouvi um barulho alto, vindo do outro lado da parede, tapei os ouvidos, mas não foi o suficiente.
— Eu não sei se você tem alguma coisa a ver com o sumiço da minha irmã, mas se voltar a encostar um único dedo na minha mulher, eu te mato!
Outro estrondo me fez abraçar minha mãe.
— Não, cara! Vai matar o homem!
— Me solta, Caio!
— Não!
— Solta ele, eu já estou morto.
— Me solta, Caio, eu não quero te machucar!
— Vá lá, mulher, teu filho está fora de controle! — disse minha mãe.
— E quem segura o Ian! — Carmencita saiu apressada.
Em meio a um tumulto de vozes, inclusive a do meu avô, que, juntamente com Caio, tentava conter a explosão do Ian, o som das sirenes anunciou a chegada da polícia, que trouxe consigo uma ambulância. Nunca me vi em uma situação tão desesperadora e aquela movimentação toda me deixou ainda pior.
— Que pesadelo — eu chorava tapando os ouvidos.
Os socorristas me examinaram, e apesar de descartarem ferimentos mais graves, disseram que precisava ir até o hospital para fazer exames, e depois ainda teria que prestar depoimento na delegacia. A polícia, após vasculhar a cabana do cigano, o colocaram no carro, ligaram o giroflex e saíram apressados pela estrada de chão. Eu só queria esquecer que vivi aquele pesadelo, mas ainda estava longe do fim.
Na cabana de Venâncio foi encontrado uma pasta com fotos de várias meninas, anotações e uma boa quantia em dinheiro, o homem pelo visto não ficaria ali por muito tempo. Dentre essas fotografias, estavam várias minhas, tiradas da janela do meu quarto — ele já me observava há algum tempo —, além disso, havia fotos aleatórias de Vívian, Ariane e Jade em situações rotineiras ali mesmo na comunidade. Não se sabe se, estas, tinham ligação com a facção criminosa, ou se o homem era um pervertido; ele simplesmente não disse nada sobre isso e, na manhã seguinte, apareceu morto dentro da cela.
Ian não desgrudou de mim um único minuto, nem no hospital, onde me colocaram uma bota imobilizadora, depois de me aplicar um calmante que me apagou pela noite inteira; nem na delegacia, na manhã seguinte, onde recebi uma avalanche de perguntas. Agora eu tinha que aprender a lidar com aquele trauma que me consumia, o medo, a sensação constante de estar em perigo.
De todas as coisas que me aconteceu na vida, jamais pensei que um dia pudesse me tornar, um alvo para o tráfico humano.
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