Capítulo 14 Dramática

 Bruna e Karen não apareceram para suas aulas de bordados, eu queria muito conversar com ela e esclarecer as coisas. Me sentia na obrigação de consertar a burrada que fiz, mas pelo visto só seria possível depois que me livrasse daquele gesso, e do castigo interminável que recebi de meus pais.

— Quando saí daqui, as coisas eram de um jeito, mas aí voltei e parece que está tudo pelo avesso — falei ao meu amigo, Jubileu, ou amiga, sei lá, para mim era um amigo, que estava no alto da parede acima da porta do quarto devorando uma mariposa, enquanto eu penteava meu cabelo logo após o banho aquela tarde.

— Está falando com quem? — perguntou Soraia, que chegava do serviço.

— Você acha que ele é menino ou menina?

— Ele quem?

— O Jubileu — apontei para a lagartixa.

— Com tanto problema na cabeça, você acha que vou pensar se seu filhote de calango é homem ou mulher?

— Insensível — respondi com uma careta.

— O seu Augusto passou mal hoje, a pressão subiu, o médico disse que não pode passar nervoso, sei lá, é algo relacionado a problemas de coração.

— Nossa, e seu Geraldo está viajando ainda?

— Estão vindo, pelo visto o caso dele é delicado — Soraia respirou fundo se jogando na cama. — Estou perdida.

— Por que?

— Pretendíamos ir embora, Nat, esqueceu?

— Mas ele vai melhorar, e tem outras pessoas para cuidar — argumentei. — Não precisam fugir agora.

— Você não está sabendo, não é? O seu Augusto decidiu ficar de vez na outra fazenda, é menor e mais fácil de cuidar, vai mexer apenas com gado de corte — ela explicou. — Por consequência, a Corcel Negro ficará sob responsabilidade dos filhos. O Samuel não tem tanta experiência, quem vai ficar a frente de tudo é o Cristian, o que significa que nossa história se complicou consideravelmente.

— E agora?

— Eu não sei, o Cristian não pode ir embora porque precisa cuidar do avô doente, da fazenda, e da empresa.

— A empresa que emprega as famílias do acampamento — meus olhos estalaram ao me lembrar, de que a Corcel Negro era o que mantinha o grupo unido, pois dali várias famílias tiravam seu sustento.

— Sim, são muitas coisas envolvidas, se ele fugir comigo, a reação será imediata — Soraia suspirou desanimada. — Eles não precisam de nós como precisamos deles, Nat, e o conselho vai cobrar o pai por tudo isso.

— Valha-me!

— Se pensar apenas em mim, estarei construindo minha felicidade em cima da queda do nosso acampamento porque ele vai se quebrar. São anos de convivência, anos de dedicação e trabalho, nem faço ideia do tamanho do estrago.

— Eu também não.

— Sei que deveria ter pensado antes, mas estou longe de achar uma resposta onde ninguém saia machucado.

— O vô Gregório me disse hoje, que o pai vem travando uma batalha entre a razão e o coração.

— E o que ele quis dizer com isso?

— Não sei, mas acredito que seja sobre respeitar nossas vontades.

— Nossas vontades? Natacha, aqui no nosso grupo, não aliviam, a regra é clara, não é permitido o casamento entre um gadjô e uma cigana e isso não tem discussão.

— Estamos perdidas.

— Eu estou, você ainda tem opção de escolha.

— Quem dera — falei pensativa.

— O Ale achou os documentos?

— Sim, eu o ajudei, mas do que se tratava?

— As terras do acampamento tem contrato de compra e venda, mas não tinha escritura, o pai deu entrada hoje a pedido do seu Geraldo, assim fica tudo documentado certinho.

— O seu Augusto doou as terras para o vô, não é?

— Sim, mas vai direto para o nome do pai, porque o vô não quer mexer com isso.

— E como ficam as outras famílias?

— Não vai mudar, o pai se comprometeu com o conselho do clã a manter o acampamento, e você sabe que a palavra de um cigano...

— Vale mais do que um escrito — completei.

— O Samuel quer falar contigo, disse que te espera lá na trilha da cabana da Ariadine hoje a noite.

— Ele pirou? Eu não posso sair e agora com essa novidade de noivado com o Ian, os olhares estão voltados para mim. A prima dele já veio aqui hoje me ameaçar.

— Vívian? Ela está noiva, eu hein!

— Você também está, e se mexerem com teu Cristian...

— Eu arranco os cabelos de quem fizer isso, e é diferente porque temos um relacionamento, proibido, mas temos, e ela com Ian, são apenas primos.

— Sentimento é sentimento, Soraia.

— Que seja, vou tomar um banho e você, dê seus pulos, se não for até ele, sabe que vem até aqui.

— E como eu vou?

— Monta na sua lagartixa — ela balançou a cabeça aos risos, deixando o quarto.

— Da próxima vez que te insultar, pode atacar, não precisa ter piedade — apontei para o Jubileu, que parecia uma estátua na parede.

***

Era noite de lua cheia, o que dificultaria uma movimentação discreta entre as árvores do pomar, mas não podia arriscar outra visita clandestina em meu quarto, então pensei que passear por entre os ciganos no pátio da fogueira seria uma boa opção de ser vista; e depois sumir sem ser notada. A segunda parte já seria mais complicada.

— Continua bravo comigo? — perguntei ao Ivan, que afinava o violão sentado em um banco.

— Não posso ficar bravo, eu te disse que tinha uma garota, mas não que estava com ela.

— Me desculpa, eu não sabia que estava te prejudicando tanto. Achei que ela fosse vir até sua casa hoje, mas não veio, queria falar com ela.

— Ela não virá.

— Eu realmente sinto muito — lamentei, me sentando ao seu lado.

— Fui lá falar com ela, estava ajudando na cantina da escola e me enxotou com uma vassoura. Foi humilhante, nunca pensei que um dia fosse ser tratado assim por uma garota.

— Tudo por minha causa — balancei a cabeça envergonhada.

— Não, Nat, por minha, eu tinha que ter contado a ela. A verdade é que fiquei tão preocupado contigo que não pensei nas consequências e agora paguei o preço.

— Você estava disposto a sacrificar seu relacionamento com ela para me ajudar?

— Eu realmente achei que fosse encontrar uma saída.

— Quando disse que se meu plano desse errado o casamento seria de verdade, estava falando sério?

— Eu falei aquilo de propósito, jamais te forçaria a nada — Ivan balançou a cabeça de cenho franzido.

— Mas se estivéssemos casados eu teria que cumprir minhas obrigações de esposa, então não de certa forma...

— Se eu tiver que forçar minha esposa a se deitar comigo, passo a vida solteiro, Nat — ele respondeu posicionando o violão em sua perna. — Mas porque estamos falando sobre isso, mesmo?

— Você é um cara legal, calango.

— Eu sei, e também sou bonito — Ivan piscou de canto com um sorriso fofo.

— Convencido — eu ri.

— Você sabe que a palavra de um cigano vale mais do que um papel assinado, não sabe?

— Sei sim — concordei.

— Esse foi um dos motivos, eu estava ciente do preço a ser pago, mas não me esqueço de que um dia prometemos cuidar uns do outros.

— Foi uma promessa de criança, Ivan — falei ao me lembrar daquela tarde de outono quando brincando na chuva eu, ele, Ian e meus irmãos, fizemos essa promessa. Foi uma tarde comum, brincadeira de criança, mas pelo visto só eu pensei assim.

— Foi uma promessa de amigos verdadeiros, família, tanto que o Ian, também não se esqueceu — Ivan parecia ter lido meus pensamentos.

— Por isso ele tomou aquela atitude — falei pensativa sobre as palavras de Ian.

— Que atitude? — Ivan perguntou quando a prima se aproximava.

— Posso falar contigo? — perguntou Vívian, parando em pé à minha frente.

— Eu vou...

— Tudo bem, primo, pode ficar — ela gesticulou quando Ivan ia se levantando. — Eu queria te pedir desculpas por ter ido até a sua casa daquela forma.

— O Ian chamou a sua atenção, não foi? — perguntei.

— Ele falou comigo, sim, mas não chamou a minha atenção, apenas me disse como se sentia sobre minha atitude. Eu te procurei porque entendi que agi errado, avancei um sinal que não devia.

— Não precisa se desculpar, Vívian, eu...

— Eu preciso, sim, ele fez a escolha e precisa ser respeitada. Só cuida para não magoá-lo, eu conheço mais de uma cigana deste acampamento que daria tudo por uma chance com ele e não tiveram.

— Ele ainda não fez o pedido oficial, e...

— O Ian que eu conheço jamais demonstraria interesse por uma garota, se não tivesse a intenção de levá-la a sério.

— Está certo, não vou discutir, se seu pedido é sincero, está aceito e não se fala mais nisso — afirmei, tentando terminar o assunto, eu precisava sair dali.

— O Ian foi a pessoa que meu coração escolheu, mas meu noivo Ramon, foi a pessoa que a vida me deu, e sei que seremos felizes juntos porque aceitamos de coração aberto um ao outro.

— Nem sempre conseguimos ter tudo o que queremos, não, é? — perguntou Ivan.

— Pois, é, primo, alguns têm mais sorte do que os outros e não enxergam — ela soltou um suspiro profundo, e se afastou.

— Acredito nas desculpas dela? — perguntei ao ciganinho, que dedilhava algo em seu violão.

— Eu ficaria esperto, ela gosta dele desde criança — Ivan murmurou iniciando uma música triste. — Pelo visto o cupido declarou guerra aos ciganos do acampamento.

— Nem me fale.

Me levantei e dei um jeito de passar em volta da fogueira, cumprimentei algumas ciganas e saí de fininho, mal cheguei na estrada e Samuel me esperava impaciente...

— Você demorou — disse ele, vindo em minha direção.

— Não é fácil sair sem ser vista, estou me arriscando muito, temos que ser breves.

— Que história é essa de noivado com o Ian?

— Eu te disse que o conselho...

— Não, Nat, o Ian, não, ele é meu amigo!

— Então me tira daqui — pedi quando me abraçou.

— Eu não posso, meu avô está doente, meu pai tem nos pressionado, nossa vida virou de pernas pro ar nos últimos dias.

— Soraia me contou — afirmei apreensiva. — E agora?

— Agora eu não vou apenas estar fugindo com a filha do líder do acampamento, estarei roubando a noiva do gerente da empresa, que por sinal é meu amigo.

— Vai desistir de mim?

— Não, eu jamais faria isso — respondeu, antes de me beijar.

— Samuel, a gente não pode, alguém...

Eu não consegui terminar a minha frase, ele me encostou em uma árvore e atacou minha boca novamente. Era como se o mundo parasse quando fazia isso, eu simplesmente perdia a linha do raciocínio, juntamente com a noção do perigo. Samuel era intenso, não escondia seu desejo por mim e isso elevava meu ego, pois aquele homem lindo, romântico e carinhoso me queria simplesmente pelo que eu era.

— Você é minha, Nat, não dele — sussurrou beijando meu pescoço.

— Ele só quer me ajudar.

— Não vai, eu te levo daqui antes.

Ele me suspendeu em seus braços em um abraço apertado que durou poucos instantes, mas foi intenso o suficiente para aquecer meu coração. Em seguida sua boca alcançou a minha e entre beijos e mordidas, dizia palavras românticas e elogios, de como eu era linda, de como meu beijo era bom, de como gostava do meu cheiro. Samuel me fazia sentir nas alturas, e nem precisava de muito para isso.

— O que é isso? — perguntei quando ele forrava uma manta no gramado.

— Só quero observar as estrelas contigo — disse ele se sentando.

— Como está seu avô? — perguntei me sentando ao seu lado.

— Teve uma crise nervosa por conta da decisão do pai de ficar no Mato Grosso — ele se deitou usando um dos braços como apoio atrás da cabeça enquanto olhava para o céu. — Meu velho está pegando no nosso pé para assumirmos os negócios, não quer mais lidar com cavalos.

— Soraia me contou.

— Deite-se aqui — ele acariciou meu braço.

— Eu não sei, se...

— Não precisa ter medo de mim, Nat.

— Eu não tenho — falei me aconchegando ao seu lado.

— Sonhei contigo essa noite, acordei com muita saudade — murmurou.

— E foi bom? — sorri curiosa.

— Foi, sim, você estava dançando tão linda — ele se virou de lado e me abraçou. — Dançaria para mim um dia?

— Claro — sorri sentindo o rosto esquentar com aquela aproximação.

— Você não sai da minha cabeça, Nat.

O céu estava claro por conta da lua cheia, mas não menos bonito, o silêncio da noite era rompido pelo cantar dos grilos e sapos a beira rio, que não estava muito longe dali. Até era possível ouvir o som das águas quebrando nas pedras da pequena cachoeira, um som de paz que ecoava enquanto sobre aquele pedaço de tecido macio Samuel me beijava com carinho. Dessa vez ele não foi tão ousado, me beijava, acariciava meu rosto, tecia elogios fofos que me faziam sorrir feito uma boba em seus braços.

— Quero construir uma casa bem bonita com vários cômodos para nossos filhos — disse ele, enquanto observávamos o céu. — Fico me imaginando chegando em casa ao fim da tarde e te encontrando, um jantar a dois, dormir abraçado depois de te amar. Ah, Nat, você virou minha cabeça.

— Tive medo de que você fizesse comigo como os caras fazem com as meninas, eles as desonram e depois abandonam.

— Sério que pensou isso de mim?

— Desculpa.

— Só desculpo se me der um beijo, a noite está linda demais para ser desperdiçada.

— Você também virou a minha cabeça, Samuel — falei colando nossos lábios.

Beijar o Samuel era tão bom que eu nunca me cansava, não sabíamos quando ficaríamos juntos novamente, então tínhamos que aproveitar, e ele fazia muito bem isso. Eu amava quando me apertava contra si mostrando seu desejo evidente, me derretia quando dizia coisas fofas ao pé do ouvido, ele sabia como me fazer esquecer do mundo e focar apenas em sua presença. Como agora, que estávamos juntinhos, deitados, tendo o céu estrelado como teto, como os ciganos amantes das histórias fictícias que li.

— Eu preciso ir — murmurei deitada em seu peito.

— É frustrante não poder te acompanhar, queria chegar lá de mãos dadas e dizer que sou teu namorado — ele protestou, me apertando em seu abraço.

— Você sabe que não dá.

— Eu sei, Nat, mas queria muito te assumir em público, sem medo de represálias, sem medo de te levarem de mim, eu queria tanto colocar uma aliança no teu dedo.

— Você vai, mas não agora, e eu preciso mesmo ir.

— Quando te vejo de novo?

— Eu não sei.

— Não quero ficar tanto tempo sem te ver, Nat — disse ele acariciando meu rosto.

— Eu também não, mas está cada vez mais difícil sair, ainda mais agora com o noivado, e...

— Você é minha namorada, o Ian que arrume outra noiva, oras.

— Está com ciúmes de mim? — perguntei com um sorriso bobo.

— Muito — assumiu me puxando para um último beijo. — Se cuida, minha ciganinha.

— Se cuida meu gadjô.

Nos despedimos ali mesmo na estrada de chão com um daqueles seus beijos de tirar o fôlego, e enquanto ele sumia pelo pasto rumo a sede da fazenda, eu sonhava acordada exibindo um sorriso de orelha a orelha. O problema é que assim que entrei no pomar fui pega em flagrante...

— Está fazendo o que sozinha aqui a uma hora dessas, Natacha?

Meu sorriso se foi imediatamente, soltei um grito fino ao me assustar com a voz de meu avô, que aproveitou a luz da lua cheia para pescar bagres e traíras como sempre fazia. E como se não bastasse, estava na companhia do cigano Wladimir e meu noivo porque se não for para me encrencar em grande estilo eu nem saio de casa.

— Hein, menina, não vai me responder? — insistiu meu avô, quando eu ainda procurava por uma desculpa.

— Acerola! — falei em um impulso.

— O quê? — meu avô perguntou com uma expressão estranha.

— Vim comer acerola — alcancei uma fruta vermelha no pé. — São muito nutritivas, ótimas para manter a imunidade, sabia?

— Isso é pitanga, e que eu saiba, você nem gosta dessa fruta — afirmou meu avô, para meu total desespero.

— Pi-tanga? — engoli em seco olhando para Ian, que balançou a cabeça negativamente com um semblante sério. — É que está escuro, eu...

— O pé de acerola é aquele lá adiante — meu avô apontou com a vara de bambu para a árvore a alguns metros de onde estávamos. — Tem polpa no freezer.

— Ah, têm?

— Vigia, cigana! — o vô caminhou à nossa frente.

— Imunidade baixa? — Ian me olhou de cenho franzido.

— Foi a única desculpa que me veio à cabeça — murmurei discretamente, envergonhada.

— Se precisou mentir, é porque estava fazendo coisa errada.

— Eu preciso falar contigo.

— Me procure amanhã, de preferência durante o dia.

— Não Ian, eu sou muito ansiosa — apressei o passo parando a sua frente.

— Maracujá — disse ele, se desviando e seguindo sua caminhada.

— O quê?

— É um calmante natural, vai te ajudar a dormir e esperar até amanhã cedo. Te espero na minha casa antes de ir para o trabalho.

— Não pode ser agora? — puxei seu braço discretamente. — Vou deixar a janela aberta, e...

— Eu não sou o Samuel, Natacha, não me presto a esse papel.

— Não é nada disso, só quero dar duas palavrinhas — falei ofendida.

— Amanhã, antes das sete, na minha casa. Avisarei minha mãe que tomará café conosco.

— Você é muito chato! — protestei entredentes, mas ele estava irredutível.

— E você não pode ter tudo o que quer, na hora que bem entende. Se quiser falar comigo, me procure amanhã, pela manhã, ou espere até eu chegar do trabalho.

— Ian, por favor! — insisti.

— Amanhã, Natacha, antes das sete.

— Ah, que coisa!

Não entendi sua atitude, ele nunca se recusou a falar comigo e ali simplesmente não quis saber de conversa. Também não entendi o sentimento de frustração que senti diante do gelo que levei, eu estava acostumada com um tratamento diferente vindo da parte dele, que sempre foi atencioso comigo, e saber que me ignorou foi um tanto quanto incômodo.

Voltei para casa, revoltada, levei outro sermão por sair a noite sozinha, meus pais disseram que iam me casar na primeira oportunidade, e eu só me perguntava em pensamento com quem? Porque meu namorado não podia e meu noivo mal olhou na minha cara, pelo visto estava bravo comigo, sei não se não seria devolvida na noite da lua de mel. 

Sim, eu sou dramática!

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