Capítulo 13 Uma rival cigana
Mais um dia amanheceu no acampamento Luzes do oriente, o sol saía tímido atrás da serra, o galo cantava no quintal, passarinhos nas árvores, e todos já se arrumavam para suas atividades do dia. Queria dizer que tive uma boa noite de sono, mas a verdade é que depois do sermão que levei do meu pai, somado a minha crise de consciência, eu perdi até o rumo da cama.
— Obrigado pela companhia, Jubileu — falei para a lagartixa que agora se escondia atrás da cortina. Aquele bichinho ouviu meus lamentos durante a noite enquanto caçava os bichinhos pela parede.
Soraia e Alejandro já haviam saído para o trabalho, e minha mãe aproveitou a carona do meu pai para ir até a cidade, só voltariam ao fim do dia. Eu recebi mais um sermão logo cedo para não sair do acampamento, nem ficar perambulando sozinha por ele, então limpei a casa e me sentei embaixo do pé de manga na tentativa de terminar um tapete de crochê que comecei a algum tempo e por conta da viagem acabei parando. O problema é que a cabeça não ajudou e acabei desistindo.
— Belo tapete — meu avô se aproximou com o sorriso de sempre, enquanto eu olhava para aquela peça sem motivação alguma para terminar. — Que suas mãos sejam abençoadas.
— Amém, vô — sorri ajeitando minha postura.
— Meus parabéns pelo pedido de noivado, o cigano Ian é um homem de bem, tenho certeza que terá um casamento feliz.
— Ele é sim — concordei.
— E essa carinha triste?
— O Pai está chateado comigo por eu estar dando trabalho, mas não faço por mal. Eu queria que minha vida fosse igual era antes de sair daqui, mas é que tanta coisa mudou.
— Seu pai tem muitas responsabilidades pesando em seus ombros, por isso anda tão tenso — ele comentou.
— Eu tive contato com ciganos que vivem na cidade, vô, eles tentam seguir ao máximo as tradições, mas não são tão rígidos como aqui.
— Realmente, hoje em dia está cada vez mais difícil manter viva a tradição cigana — concordou, se sentando em uma cadeira antiga de madeira. — Seu pai tem travado uma batalha para conseguir amenizar as coisas, e isso ainda vai longe.
— Quando era criança queria crescer logo, mas agora daria tudo para voltar no tempo. Eu era feliz e não sabia.
— Quando chegar na minha idade sentirá falta dessa época que está vivendo agora. É normal se sentir assim.
— O vô já passou por muita coisa também, não é? Mas no seu tempo a tecnologia não era tão acessível como hoje.
— As nossas dificuldades já existiam bem antes da tecnologia, Nat — afirmou. — São batalhas muito antigas.
— Eu cheguei a conversar pela rede social com uma cigana que nasceu e cresceu na cidade. Ela me contou que em sua comunidade eles vivem em harmonia com os gadjes, inclusive aqueles que se casaram com ciganas. Mas que infelizmente existem comunidades onde esses casais são hostilizados pelos próprios ciganos do clã, que não veem a união com bons olhos.
— Sim, eu mesmo já tive contato com algumas famílias assim.
— Por que nosso clã é tão rígido, vô?
— Consequências do passado — ele respondeu, voltando seu olhar para o topo das árvores.
— Como assim?
— Nos tempos do meu avô, o clã vivia lá para as bandas de Goiás em um pequeno pedaço de terra cedido pela prefeitura. O terreno fazia divisa com uma das maiores fazendas da região, e por influência da convivência entre alguns ciganos e gadjes, a filha do líder se apaixonou pelo filho do patrão.
Levei a mão até a cabeça sentindo o coração disparar, pois já imaginava que aquela história não teria um final feliz.
— Ela era uma cigana muito bonita, obediente, todos se encantavam por sua alegria. Só que de uma hora para outra foi ficando triste, seu brilho foi se apagando, e então, às vésperas de seu casamento, o noivo descobriu que havia sido desonrada pelo rapaz que lhe encheu de promessas e depois a abandonou.
— Não me diga isso, vô! — falei com o coração acelerado.
— Eles foram prometidos ao nascer, então Estefan cresceu nutrindo sentimentos por ela, pois sabia que seriam um do outro, e com isso acabou surtando e fazendo justiça com as próprias mãos.
— Por vida, vô, o que ele fez?
— Foram treze facadas, o jovem nem teve chance de reagir, e depois Estefan fugiu não deixando rastros.
— Valha-me!
— Foi uma sucessão de erros, que acabou terminando em tragédia. A cidade se revoltou contra os ciganos que praticamente foram expulsos do local.
— Misericórdia, vô! — tapei a boca com a mão enquanto o olhava com espanto. — Mas o que aconteceu com a noiva?
— Ela foi banida.
Não contive a lágrima que brotou nos olhos, eu me vi naquela história e agora estava com muito medo.
— Não somos um povo agressivo, ele fez isso por amar demais — constatei.
— Não; os ciganos são conhecidos por muitas coisas, mas nenhuma delas envolve um histórico de agressividade, ou de confusões, sempre fomos pacíficos — disse ele, entrelaçando os dedos sobre o joelho direito, que repousava sobre o esquerdo. — Mas ninguém está livre de cometer erros, principalmente quando envolve sentimentos como o de traição, orgulho ferido.
— Nossa vô, eu nem sei o que pensar sobre isso — falei angustiada.
— Eu era criança, deveria ter uns dez anos, mas me lembro com tristeza dessa passagem, vieram tempos muito difíceis, e foi assim que o clã decidiu ser mais rígido a fim de evitar que histórias como essa se repetissem.
— Eu nunca soube dessa história — comentei pensativa.
— Apesar de servir de exemplo, não é um assunto que gostamos de comentar — ele explicou, observando as crianças no balanço feito com uma corda e pneu no galho de uma árvore. Aqueles olhos claros que contrastavam com sua pele madura, cheia de fios de barba branca eram muito rápidos.
— Agora entendo o motivo de crescermos ouvindo que os filhos do patrão são intocáveis — mordi o canto da unha que já sangrava, eu sempre fazia isso quando estava nervosa.
— Sim, e foi graças a essa rigidez que conseguimos conviver tantos anos pacificamente com o povo da fazenda, assim como da comunidade.
— Eu nem sei o que dizer sobre isso — desviei o olhar me sentindo mal por saber que me encontrava em uma situação parecida. Tudo o que eu não queria era que terminasse em uma briga, pior ainda em tragédia.
— Essa rigidez toda é pelo nosso bem, pequena Natacha, mas não pense que não compreendo o raciocínio do seu pai quando diz que não podemos ser tão intolerantes. Eu sei que ele vem travando uma batalha entre a razão e o coração, e não sabemos quem vencerá no final.
— Que a solução não demore a chegar, vô.
— Às vezes as peças se encaixam da maneira mais estranha que existe, e quando menos esperamos o quebra cabeças de nossas vidas estará todo montado. Essa história do passado tem muito mais coisas envolvidas, e no momento certo acabará vindo à tona... ou não.
— O senhor é um cigano muito sábio e sempre diz o que precisamos ouvir — falei com um sorriso.
— O coração de um cigano é uma terra desconhecida onde o amor e o mistério andam de mãos dadas — disse ele se levantando. — E quando tudo parece perdido, a esperança nasce como o sol atrás das montanhas. Se cuida ciganinha.
— Estou tentando, vô.
***
Eu fui orientada desde sempre, que o casal cigano toda vez que fica junto em sua intimidade, é como se fosse a primeira vez. E que o amor precisa ser conquistado todos os dias, para que a união seja promissora e dure até o fim da vida. Quem dera toda a humanidade pensasse assim, haveria mais pessoas felizes e menos corações partidos no mundo. Sorte daquele que encontrou a sua cara metade.
— Precisa de ajuda? — perguntei ao me aproximar de Ariane que descascava umas mandiocas na cozinha.
— Não, Nat, já estou terminando — respondeu ela, como sempre muito educada.
— E você como está se sentindo? — puxei a cadeira e me sentei próximo a ela, onde comecei a debulhar algumas favas.
— Eu estou bem, eu acho.
— Não me passou segurança essa resposta, sabia?
— Talvez seja coisa da minha cabeça, mas eu sinto que seu irmão não gosta de mim — ela se sentou à minha frente, e começou a me ajudar.
— Ele gosta, sim, só não está conseguindo demonstrar — respondi.
— Sabe, Nat, desde que soube que tinha um noivo eu sonhei com meu casamento. Comecei a fazer bordados, aprendi receitas novas, me aperfeiçoei nos temperos, na dança, vivia sonhando acordada com o dia em que fosse conhecê-lo.
— Você é uma raridade — comentei.
— Quando vi o Alejandro pela primeira vez fiquei tão feliz, ele era um rapaz perfeito, lindo, educado, foi um contato breve, mas nunca saiu da minha cabeça.
— Você aceitou o seu destino e o recebeu de coração aberto. Uma história digna de um livro de romance — sorri imaginando o roteiro.
— Eu passei cinco anos sonhando com nosso reencontro, nosso casamento, mas parece que essa emoção toda só existiu dentro de mim, ele mal me olha. Talvez fosse melhor pedir para meus pais me levarem embora.
— Valha-me! Você não vai fazer isso, vai?
— Não sei, Nat, me sinto rejeitada — Ariane soltou um suspiro profundo enquanto eu procurava por uma resposta. — Será que um dia vai me amar?
Antes mesmo que eu respondesse, o barulho do carro estacionando na frente da porta nos chamou a atenção.
— Está certo, pai, vou procurar aqui — disse meu irmão entrando apressado na cozinha.
— Em casa a uma hora dessas? — perguntei curiosa. — Aconteceu alguma coisa?
— Estou indo até a cidade, tenho uma prova do curso, e o pai pediu para levar um documento. Me ajuda a procurar?
— Ajudo sim — respondi.
— Você está bem? — ele perguntou para Ariane.
— Eu?
— Ela está triste — intervim. — Saudade de casa.
— Você vai se acostumar aqui — Alejandro sorriu para a noiva, que ficou corada.
— Estou tentando — ela respondeu desviando o olhar.
— Ei — Alejandro tocou seu queixo levemente com o dedo indicador, fazendo com que levantasse o rosto de modo que olhasse em seus olhos. — Não quero te ver assim.
— Me desculpa — ela encheu os olhos de lágrimas e baixou a cabeça em seguida, mas ele a fez olhar em seu rosto novamente.
— Eu que te peço desculpas, ando tão atarefado e cheio de coisas na cabeça que não demonstrei o quanto sua presença aqui é valiosa — Alejandro segurou em sua mão. — Não desista de mim, eu prometo que vou me esforçar.
— Eu também — ela respondeu com a voz embargada.
— Se o destino te colocou em meu caminho, eu aceito de coração aberto, Ariane — ele acariciou seu rosto com a mão e foi rumo à sala.
— Ele tocou em mim — ela sussurrou emocionada.
— Eu vi — sorri, surpresa, diante de sua reação.
— Eu vou acender o fogão de lenha — ela caminhou alguns passos e então se virou com um sorriso bobo. — Ele pegou em minha mão! — sussurrou, me fazendo rir.
— Não conte a ninguém — sussurrei em resposta.
Ariane me mostrou que era possível se apaixonar por um parceiro arranjado, mesmo não convivendo com ele. Os olhos da cigana brilhavam quando Alejandro se aproximava, e automaticamente seus lábios se curvaram em um sorriso. Sem dúvidas meu irmão tirou a sorte grande, o problema, é que seu coração ainda batia no presente, por um amor do passado.
— O que foi aquilo? — perguntei ao me aproximar dele, que estava mexendo em umas pastas de documentos sobre a mesinha no canto da sala.
— Aquilo o quê?
— A maneira como tratou Ariane, você pegou na mão dela e agora está sorrindo à toa.
— Ela é uma boa menina, merece tudo o de melhor que eu puder oferecer.
— O que mudou Alê? — questionei me sentando à sua frente.
— Eu vi que estava agindo errado com ela, preciso mudar de postura.
— Sei, e qual foi a motivação?
— Você me conhece mesmo, não é?
— Claro — concordei.
— Eu vi ela, Nat.
— Ela quem?
— A Rubi, eu a vi na fazenda, veio com o marido e a sogra.
— Na fazenda?
— O patrão dele tem um filho com autismo e veio escolher um cavalo para usar na terapia.
— Poxa, Alê, e como está se sentindo?
— Eu não a via há cinco anos, Nat, foi um baque — ele afirmou com as mãos trêmulas. — Doeu, mas eu sobrevivo.
— Estou vendo a tristeza em seus olhos — falei apertando sua mão. — E como ela está?
— Ela está tão linda, tem duas filhas pequenas e está grávida do terceiro filho — respondeu abrindo outra pasta de documentos, e percebi que lutava para controlar suas emoções. — Eu poderia ser o pai, mas o destino não quis assim.
— É uma pena que quando duas pessoas se entendem, uma terceira acabe sofrendo. A Rubi não teve escolhas, só aceitou seu destino.
— Eu sei, e... esse reencontro com meu passado me fez entender que preciso dar atenção ao meu futuro. No que depender de mim, darei o meu máximo para que Ariane seja feliz ao meu lado.
— Sei que está sendo sincero.
— Estou, sim, foi uma queda feia, mas aceitei. Eu entendi que não posso ter a Rubi de volta, mas posso construir uma história com Ariane, é nisso que vou focar a partir de agora. Achei.
Ele olhou para uns papéis que não me dignei a perguntar sobre o que era, já havia me perdido em pensamentos depois de tudo o que me disse.
— Natacha, tem uma moça te chamando — avisou Ariane apontando a cabeça na porta da sala.
— Bruna! — saí apressada trombando nas coisas. Mas infelizmente não era ela.
— Oi, Natacha.
— Oi — respondi confusa.
— Não se lembra de mim?
Olhei para aquela cigana de pele em um tom amarronzado e cabelos volumosos e não a reconheci.
— Vivian, prima do Ian.
— Ah, sim, é que você era tão pequenina — sorri fazendo um sinal para que se sentasse na cadeira de área.
Vivian estava com dezesseis anos, mas aparentava ter mais, uma bela cigana diga-se de passagem.
— Você também era — ela disse, como se me analisasse.
— Então, acho que todas crescemos — respondi desconfortável com aquela garota ainda me encarando.
— Eu soube que o Ian te escolheu.
— Ainda não tem nada formalizado, o pai dele está viajando, e...
— Eu sempre fui apaixonada por ele, fiz de tudo para que me notasse, achei que fosse me escolher, mas isso não aconteceu.
— Eu sinto muito, por...
— Não, você não sente, você não sabe como estou quebrada por dentro, e não me olhe com pena, eu não preciso dela.
— Não estou te olhando com pena, só não sei o que quer de mim.
— O Ian é uma das melhores pessoas que conheci, e não quero que sofra nas mãos de uma mulher que não o mereça.
— Ele também é uma das melhores pessoas que conheci, e não quero que sofra. Só não estou entendendo o motivo de sua visita, nunca fomos amigas, pelo que eu me lembre — cruzei os braços à sua frente com uma expressão rígida.
— Nem seremos — disse ela com um sorriso sarcástico. — Eu sei que você brigou com a Brenda por conta do filho do patrão.
— Eu não briguei com ela por conta de ninguém, discutimos por conta da maneira preconceituosa como ela vem me tratando.
— Indiferente — ela respondeu se levantando. — Eu não me importo com seus rolos, mas com a felicidade do meu primo, então vigia, cigana. Estou de olho em você.
— Está agindo como se eu o tivesse obrigado a pedir a minha mão, eu sequer sabia que faria isso.
— O Ian não ficou todo esse tempo solteiro para jogar sua vida no lixo por conta de uma cigana que não sabe qual é o seu lugar.
— Então diga isso a ele e o convença a desistir, ainda dá tempo — dei de ombros.
— Eu não tenho que dizer nada, você está dando corda para se prender sozinha.
— Se gosta tanto assim dele, lute, ainda não se casou, ficar aqui me ameaçando não vai ajudar em nada.
— Eu já estou de casamento marcado com outro cigano, e apesar de não parecer, estou bem com isso.
— Então porque se deu ao trabalho de vir até aqui me aporrinhar as ideias?
— Eu conheço a história que motivou a rigidez de nossas regras, e se tiver que te denunciar ao conselho, não duvide que tenho coragem.
— Denunciar o que, garota, não estou fazendo nada!
— Ande na linha, ou eu te atropelo.
— Eu também conheço a história, e você deveria cuidar da tua vida!
— Ei, o que está acontecendo aqui? — Alejandro surgiu rapidamente ao ouvir minha voz exaltada.
— Ela já está de saída — falei com uma expressão fechada.
— Vigia, cigana — ela gesticulou se afastando. — O conselho existe para manter a ordem.
— E a língua para ficar dentro da boca!
— O que foi isso, gente? — Ariane veio apressada.
— Só mais um dia normal na minha nada mole vida — dei tapinhas em seu ombro e fui para dentro. — Ótimo, pelo visto eu tenho uma rival cigana!
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