Capítulo 10 Inocência

Meu pai estava sentado próximo a fogueira com os jovens e crianças do acampamento, eles conversavam sobre nossas origens e histórias do passado quando me aproximei. Eu já conhecia todas, mas gostava de ouvir para nunca me esquecer de minhas raízes, então me sentei em um banco embaixo do pé de Ipê a uma certa distância e me pus a observar...

— Não se tem uma base precisa sobre a história do nosso povo, porque a grande maioria das documentações sobre o assunto foi escrita por pessoas não ciganas, e muito do preconceito que ainda sofremos é por conta do desconhecimento passado de geração a geração — ele dizia, sendo observado por olhos atentos.

— A tia da escola disse que o povo cigano veio da Índia, é verdade? — Perguntou Roger, um cigano de seus oito anos.

— Sim, acredita-se que a muitos anos atrás, entre os séculos seis e onze, nossos antepassados, emigraram do Norte da atual Índia, das regiões do Punjab e Rajastão, cruzaram então o Oriente Médio e entraram na Europa, por volta do século quatorze. Alguns ciganos, como os Nawar, ficaram no Oriente Médio e se espalharam principalmente em regiões como a Síria, o Egito e a Palestina.

— Eu não sei onde fica, mas deve ser longe — o ciganinho Mateus disse com a mão levantada.

— É bem longe — concordou meu pai.

— E é verdade que na segunda guerra mundial também perseguiram nosso povo? — Amélia, uma cigana de seus dez anos, perguntou.

— Sim, milhares de ciganos foram mortos naquela época, mas pouco se fala sobre isso. Eles afirmavam que a população romani virou um alvo por ser "antissocial", era um povo que vivia à margem da sociedade. Também era comum atribuir à imagem dos romani a prática de pequenos crimes e bruxaria, mas na verdade a intenção era exterminar a raça cigana, então usavam todo e qualquer argumento para justificar aquela barbárie que fizeram. Mas não foi só nos tempos da guerra não, a inquisição também ceifou a vida de muitos ciganos.

— Ele fala tão bem — Jade sorriu, se sentando ao meu lado. — Saudades dos nossos tempos de criança, as coisas pareciam mais fáceis.

— Eu também tenho saudades — comentei.

— Você viu o cigano que chegou?

— Não — respondi olhando para a direção que ela olhava.

— É viúvo e está procurando uma noiva.

Voltei meu olhar novamente para aquela direção e vi um homem de estatura baixa, cabelos já exibindo tons grisalhos, magro. Sua barba era comprida, e apesar de não conseguir enxergar com mais precisão por conta da distância e da iluminação, pude ver que se tratava de uma pessoa de mais ou menos quarenta e cinco anos, ou até mais. Meu coração acelerou ao lembrar da conversa com meu pai, com certeza meu nome estava na lista, e sinceramente, ao vê-lo, não consegui enxergar a imagem de alguém que dividiria a vida comigo.

— Ele me parece ser uma pessoa muito séria — falei ao observar sua postura.

— Meu pai fez uma reunião com a gente hoje e alertou sobre as cobranças do conselho em cima do tio. Ele vem sendo cobrado por muitas coisas que talvez não consiga resolver.

— Sim, o pai também falou com a gente hoje — afirmei. — Ele tenta manter as raízes fortes, mas entende que os tempos são outros e que não tem como querer que uma comunidade inteira viva o hoje, como se fosse ontem. É muita mudança, muita cobrança, muita influência, acaba sendo uma luta diária.

— Eu aceitei meu destino, mas nunca vou esquecer seu irmão, Nat — disse ela voltando sua atenção para Alejandro que conversava com meu pai lá adiante. — Só espero que ela o faça feliz.

— Eu sinto muito, prima — falei quando ela se afastou rapidamente, rumo a sua casa.

Não precisei ver seu rosto para entender que chorava.

— Ivan! — Acenei para o cigano que vinha rumo à fogueira.

— Fala, Nachatinha — ele sorriu se aproximando.

— Você viu o homem ali?

— O cigano Venâncio? Ele vai trabalhar na fazenda.

— Não era Roger?

— Roger é o outro, esse aí e Venâncio, ele não tem parada hoje está aqui, amanhã some no mundo.

— Acho que é ele que meu pai quer me arrumar, Ivan.

— Ele me parece ser um bom homem, Nat, é fiel aos nossos costumes, gosta das coisas certas, volta e meia está por aqui.

— Casa com ele, então! — falei irritada.

— Ué, Nat, o que foi isso agora? — Ivan cruzou os braços à minha frente.

— Você vai me ajudar, ou não?

— Eu já te disse que é para resolver seus problemas, e que se acaso não conseguir outra solução eu vou, não disse?

— E aquela história de consumar o casamento, tem como negociar?

— Negociar o quê? Eu não vou viver um casamento de mentira só porque você se perdeu em suas ideias.

— Grosso!

— Eu não sou grosso. Você acabou de voltar, duvido que tenham se encontrado mais do que três ou quatro vezes e já está aí querendo jogar sua vida no vento. Você acha que ele vai te pedir em casamento assim, do nada?

— E porque não pediria?

— Acorda, Natacha, eles não são como nós. Você nem sabe se o cara realmente quer algo sério contigo.

— Ele me pediu em namoro.

— E desde quando os ciganos namoram?

— Ele não é cigano, você sabe disso.

— Mas você é.

— Poxa, Ivan, você é um poço de incentivo.

— Ciganinha iludida, ele não é cigano, não vai levar essa história tão a sério como nós levaríamos. Talvez só esteja querendo curtir e você fica aí acreditando, põe os pés no chão, Natacha!

— Ele me pediu em namoro, por que não ia querer algo sério?

— Te pediu em casamento?

— Não.

— E o que você precisa para ontem, Natacha?

— Um pedido de casamento.

— Então você já tem sua resposta.

— Ele não ia se aproximar de mim só para passar o tempo, sabe a confusão que isso daria.

— Quem te garante? Você passou cinco anos fora, ele é um cara que vive cercado por garotas, já trouxe várias para passar o fim de semana com ele na fazenda, quantas vezes eu mesmo vi o pai dele pedir que tomasse juízo.

— Acha impossível ele mudar por minha causa?

— Não, mas para quem até outro dia saía todo fim de semana para baladas com os amigos, ele não vai largar essa vida para se casar com uma cigana que chegou ainda ontem.

— Você é cruel.

— Eu sou realista.

No fundo Ivan tinha razão, nossos mundos eram muito diferentes, a questão cultural dele esbarrava na minha facilmente, e a ideia de que ele poderia encarar o desafio de ficar comigo assim de repente, para mim até poderia ser normal, mas para um gadjô talvez fosse absurda.

— Sua condição para me pedir em noivado, é que se sair casamento ele seja de verdade?

— Óbvio — ele afirmou. — Eu não vou viver uma vida de mentiras.

— Por que está complicando tanto?

— Eu não estou complicando, é você quem está.

— Você ainda nem escolheu uma noiva, calango! — protestei.

— Então corre que a fila é grande — Ivan piscou de canto.

— Folgado! — Em um impulso dei um tapa em seu braço.

— Olha o respeito, Nachatinha, hoje sou seu amigo, amanhã posso ser seu marido.

Levantei o dedo com a resposta na ponta da língua, mas ponderei e baixei em seguida. Era eu quem precisava dele naquele momento.

— Era só isso que a madame queria comigo? — Ele me olhou divertido.

— Não acredito que está se divertindo com essa situação! — bufei.

— Eu não sei se percebeu, mas estamos no mesmo barco.

— É, mas você tem escolhas, né?

— Ela também — disse ele se afastando.

— Ela quem? Volta aqui! — Chamei, mas ele seguiu sem olhar para trás. — O que ele quis dizer com isso?

A fala de Ivan me deixou confusa, deu margem para várias interpretações, só que eu tinha receio de ficar fazendo perguntas demais e acabar sendo invasiva, então, tive que me contentar com o ponto de interrogação como resposta.

— Aonde vai filha? — perguntou minha mãe, quando passei por ela.

— O gesso está incomodando um pouco, vou para casa me deitar e colocar o pé para cima, pode ser que tenha inchado.

— Se precisar de alguma coisa me chame — ela sorriu seguindo seu rumo.

***

Cheguei em casa e fui direto para meu quarto, eu não tinha cabeça para agitações, só queria poder desfrutar do silêncio e esquecer que o mundo existia. Meu quarto era modesto, tinha duas camas de solteiro, um roupeiro antigo e uma cômoda pequena. No canto havia uma poltrona ao lado de uma mesinha com uma cadeira, era ali que eu escrevia minhas cartas e poemas. Meu pai havia pintado pouco antes de eu voltar, as paredes eram brancas com uma em destaque na cor rosa, eu gostava assim. Na janela tinha cortinas na cor lilás em um tom escuro, e nas camas a colcha de babados com travesseiros e pelúcias, parecia um quarto de criança.

Logo que entrei me deitei de costas de olhos fechados e com o pé para cima, eu realmente estava sentindo um leve desconforto, mas o barulho da porta se fechando me fez abrir os olhos novamente.

— Samuel? — Em um impulso me sentei. — Como entrou aqui?

— Eu disse que não ia conseguir ficar longe de você.

Ele veio em minha direção e me beijou.

— Samuca, espera — falei o empurrando. — Se alguém te ver aqui, estou...

— Eu pulei a janela, ninguém me viu — ele murmurou me beijando outra vez.

— Calma, como sabia que esse era meu quarto?

— O Cristian me contou, ele já esteve aqui — mais um murmúrio abafado enquanto beijava minha boca.

— Meu pai quer me arrumar um noivo.

— O quê?

Agora ele parou o beijo e me deu atenção.

— Eu não sou a única que já passou da hora de ter um marido, e o conselho está pressionando.

— Por que isso agora?

— São as nossas tradições, Samuel, está acontecendo muita coisa por conta da influência externa, e isso...

— Mas o Alejandro não tem que se casar primeiro? — ele me interrompeu.

— Já vão marcar a data.

— E a Soraia?

— Também.

— Por isso o Cristian disse que quer sair da república e alugar uma casa — disse ele. — Ele vai levar a Soraia daqui.

— E eu, faço o quê? — Perguntei apreensiva.

— O Cristian já está formado, tem uma carreira sólida como zootecnista e agora com a especialização que está fazendo tem grandes chances de arrumar um emprego em outro lugar. Mas eu ainda estou estudando, não tenho como manter uma casa e ainda o custeio da faculdade, não agora.

— O que isso quer dizer?

— Eu não posso te tirar da sua casa para dar uma vida menos confortável do que já tem.

— Conforto é a menor das minhas preocupações.

— Não é tão fácil assim, se descobrem que um de nós levou uma de vocês pode haver um conflito nas relações do seu grupo com a minha família. Imagine duas?

— Será uma catástrofe, o acordo existe há muitos anos, e sempre foi respeitado. Mas quem imaginaria que justamente os filhos do patrão se envolveriam com as filhas do líder?

— A regra é clara, as ciganas são intocáveis.

— Para nós, os não ciganos são intocáveis, e sendo filhos do patrão, duas vezes mais.

— Eu não sei o que fazer, Nat.

Ele acariciou meu rosto antes de me puxar para um abraço apertado.

— Eu gosto de estar contigo, Samuel.

— Eu também gosto de estar contigo, minha cigana.

— Quando ficamos juntos, minha única preocupação era estar me envolvendo com um gadjô, mas agora as coisas mudaram. Tem um homem lá fora que pode me pegar como esposa, eu olhei para ele e não senti absolutamente nada, consegue me entender?

— Que homem?

— O cigano recém chegado.

— O seu venâncio?

— Então você conhece ele.

— Ele não tem parada, Nat, fica um tempo e depois cai na estrada — afirmou enquanto brincava com meus dedos entre os seus. — É um bom homem, mas porque acha que vão te fazer casar com ele?

— Meu pai disse que vai me arrumar um noivo mais velho, e ele é o único mais velho que apareceu por aqui.

— Não, sei, você é novinha, acho que...

— Isso não quer dizer nada, você sabe.

— Você deduziu e já está sofrendo por antecipação, as coisas não são assim.

— E se for?

— Não vamos pensar nisso agora, eu vim para matar a saudade e não temos muito tempo — ele me deu um beijo breve.

— Estou com medo, Samuca — murmurei, enterrando meu rosto em seu pescoço.

— Que coisa linda, me chama de novo de Samuca — ele sussurrou me apertando em seu corpo, antes de usar seu peso para me deitar sobre a cama.

— Samuel, eu...

— Calma, Nat, eu não vou fazer nada que não queira, só quero te curtir um pouco — sussurrou novamente, colando seus lábios nos meus. — Eu vou pensar em algo para te ajudar, mas agora só me beija.

Já havíamos nos beijado antes, mas ali na minha cama, com ele sobre mim, foi uma sensação muito diferente.

— Minha Natacha — ele dizia com a voz rouca em meu ouvido.

Enquanto sua boca explorava a minha, sua mão subiu pela minha perna de forma provocante, me causando uma sensação muito boa, e a cada passo que ele avançava eu sentia um arrepio diferente.

— Samuca, isso é... — murmurei em seus lábios quando alcançou meu top, colocando a mão embaixo do tecido.

Era a primeira vez que um homem me tocava de forma tão íntima, e agora ele acariciava ali me fazendo sentir um misto de sensações, que iam, desde euforia até a culpa.

— Como é bom estar assim contigo, Nat — ele dizia, quando seus beijos passaram para o pescoço, e foi descendo.

— Isso é errado — falei quando alcançou meu colo, sugando, beijando, mordiscando.

— Não é não, isso é humano — ele disse, levando minha mão até suas partes íntimas.

— Samuca? — eu o olhei com espanto.

— É o meu desejo por ti, Nat, eu te quero muito... muito.

— Eu, não, posso — fechei os olhos quando ele me tocou.

— Está tudo bem, minha menina — sussurrou em meu ouvido. — Não vou fazer nada além disso, eu juro.

— É que...

— Você não quer? — ele parou e me olhou atentamente.

— Quero, mas não posso, eu...

— Gosta disso?

— É bom, mas...

— Estou sentindo os sinais de que me quer, Nat.

Ele voltou a me beijar agora com mais intensidade, eu não conseguia pedir que parasse porque simplesmente não queria isso. Principalmente depois de sentir aquelas carícias em minha pele.

— Isso é bom, mas não podemos — falei em seu beijo.

— Podemos sim — sussurrou levantando minha saia. Ali eu já não sabia mais se queria que parasse.

— Natacha?

— Droga! — ele se jogou no chão e rolou para debaixo da cama.

— Mãe?

— Nat, você trancou a porta?

— Eu não percebi, espera, vou abrir!

Me levantei, aflita, ajeitando a minha saia e depois o meu top, enquanto pedia ao universo para ela não ter ouvido nada.

— O que foi, mãe? — perguntei com o coração ainda mais acelerado.

— Eu vim ver se está tudo bem, senti que precisava de mim — ela me olhou desconfiada.

— Eu estou bem, não se preocupe.

— Tem certeza de que está bem, você estava resmungando, e está vermelha. Sente dor?

— Não, eu estava cochilando, devo ter sonhado.

— Certo, eu estou ali na sala, tenho um pano de copa para terminar de bordar, se precisar me chame.

— Ah, sim, eu chamo.

— Não tranque a porta, pode ser que precise e não consigo abrir.

— Eu não vou trancar — falei quando ela se afastou.

— Foi por pouco — ele saiu debaixo da cama.

— Eu disse que era arriscado — reclamei me sentando à beira da cama, eu tremia muito naquele momento.

— Meu amor, me desculpa, eu estou tão acostumado com as meninas da cidade que acabei avançando o sinal.

Samuel se aproximou e se sentou ao meu lado, antes de me puxar para um abraço.

— Você tem que ir embora.

— Nat, é sério, eu me empolguei e acabei agindo errado contigo, mas é que estava com tanta saudade e aí estando aqui contigo acabei deixando me levar.

— Vai logo! — o empurrei quando ouvi a voz de meu pai na sala.

Samuel pulou a janela e sumiu pela escuridão da noite.

— O que eu faço da minha vida agora, Samuel, você me tocou — murmurei olhando para o nada que se formou naquele espaço vazio do quintal.

Eu não poderia ter deixado as coisas chegarem ao ponto em que chegaram, ele me tocou intimamente e eu o toquei, não era certo e agora minha consciência me torturava. Samuel era um verdadeiro furacão e eu uma menina que nunca tinha tido aquele tipo de contato, e que apesar de se achar esperta, aos poucos foi vendo que não sabia nada da vida. 

Não que não tivesse tido orientações sobre a relação íntima entre um homem e uma mulher, eu tive, mas não era de costume falar abertamente, minha mãe me explicou o básico e meu marido me ensinaria tudo que fosse preciso depois do casamento. É claro que eu ouvia algumas coisas das amigas. Durante o tempo em que morei na cidade, convivemos no colégio e elas sempre contavam algumas de suas experiências, mas convenhamos que, na prática, é muito diferente, e quando se mistura o medo com a insegurança tudo o que aprendemos se esvai como a velocidade da luz. 

E antes que me perguntem; nunca fui do tipo curiosa que acessava sites proibidos, nem nada do tipo, eu sabia que era errado e se fosse descoberta seria castigada, cresci ouvindo que deveria honrar, obedecer meu marido e ser somente dele, que seria o único homem despido que poderia ver a vida toda.

Mentira é mentira e ponto, agora depois de ter sido tocada pelas mãos de Samuel eu sabia que não era mais pura, não era mais digna de um cigano, mesmo que guardasse isso em segredo. Eu ainda o toquei sobre o tecido de sua calça, mas ele foi muito além e agora uma confusão gigantesca habitava em mim. Como explicaria ao meu futuro marido que não passaria na prova do lençol? Porque na época, no auge da minha inocência disfarçada de esperteza, era isso que eu acreditava.

Vivo o hoje como se não houvesse amanhã

Samuel

A Terra é meu lar, o céu é meu teto e a liberdade é minha religião. (Provérbio cigano)

Natacha

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