Capítulo 02 - Contemplando as estrelas

Não existe namoro na cultura cigana. Quando os jovens começam a demonstrar interesse um pelo outro, já estão, na verdade, firmando um compromisso de noivado. Contudo, até o dia do casamento, o toque, o carinho, qualquer forma de intimidade é estritamente proibida. Mesmo estar perto um do outro, sem a presença de um acompanhante, é algo que deve ser evitado. Os casamentos arranjados seguem as regras do clã, e embora os jovens tenham a opção de recusar, essa escolha é rara. Desde pequenos, somos ensinados a valorizar e respeitar nossa cultura, a entender que cada decisão carrega o peso de nossa história e identidade. No caso de Soraia, a situação era mais complexa porque ela não estava apenas rejeitando o noivo; sua escolha era por um gadjô, um não cigano, e isso trazia consigo um peso imenso de desonra.

— Tentamos nos afastar, mas nos amamos. Será que é tão difícil entender? — a voz dela tremia, e eu podia ver a sinceridade em seus olhos, uma mistura de desespero e esperança, mas não era tão simples assim compactuar com algo tão sério.

— Sô, você está noiva — argumentei angustiada. — Se o pai descobre isso aqui, estamos perdidas.

— O pai não vai descobrir, eu só vou falar com ele e vamos embora — ela gesticulou, mas sua determinação parecia vacilar enquanto o jovem se aproximava.

— Não acredito que me meteu nessa encrenca! — Protestei, não conseguindo esconder a frustração.

— Não complica, por favor! — pediu manhosa.

— Boa noite! — ele acenou, e retribuí com um sorriso fraco.

Quando chegou mais perto, consegui vê-lo com clareza. Crístian sempre foi bonito, mas agora, mais maduro, se tornou um homem capaz de deixar qualquer mulher hipnotizada. Ele tinha cerca de vinte e cinco anos, pele clara, olhos verdes. O cabelo castanho-escuro, levemente bagunçado, caía pelo rosto. Vestia uma camisa de fundo azul com pequenas estampas que não consegui identificar, e tinha ombros largos e braços fortes. Minha irmã tinha um ótimo gosto para homens, mas o problema é que escolheu um que, segundo as regras de nossa comunidade; ela não podia ter.

— Boa noite, amor. A Nat não gostou muito de saber que estamos juntos.

— Natacha? Quanto tempo! Eu nem te reconheci!

Ele sorriu, me surpreendendo. Pensei que soubesse que estava com ela. Então percebi que o outro homem não estava ali por minha causa, o que me deixou mais aliviada. Ele continuou sentado no mesmo lugar enquanto conversávamos.

— Eu também não te reconheci.

— Cristian, hoje não posso demorar — Soraia nos interrompeu. — Estou usando o cavalo do Ivan e ele pode dar por falta

— Foi um prazer revê-la. O tempo te fez muito bem, está uma bela moça — disse ele, sendo puxado pela mão.

— Cuida do cavalo! — Soraia pediu se afastando.

— Aonde vocês vão? — perguntei, mas não obtive resposta, eles já haviam sumido por entre as árvores.

Amarrei o cavalo em uma árvore, irritada por estar naquela situação. Não só o peso da mentira; tudo estava errado ali. E, como se não bastasse, um homem estranho se aproximava de mim.

— Oi, moça, quanto tempo! — ele sorriu, parando na minha frente.

— Olha, moço, não sei por que você está aqui, mas não vou participar disso... — respondi assustada.

— Desculpe, mas participar do quê?

— A minha irmã não tem juízo. Vim com ela sem saber de nada, então nem pense que vai rolar qualquer tipo de sacanagem aqui.

— E de onde tirou que eu quero fazer algo contigo?

— Ah, não? — minhas sobrancelhas se elevaram. — Tem certeza?

— Ué, decepcionada?

— Não, né!

— É sério que não está me reconhecendo, Natacha?

Olhei para o peão alto, que parecia estar em boa forma. Ele tinha a pele clara, lábios carnudos e uma barba cheia. Fiquei confusa. Eu me lembraria se conhecesse um homem tão bonito. Ele parecia aqueles cantores sertanejos que eu via na internet.

— Sua aparência me é familiar, mas, sinceramente, não me lembro.

— Isso porque dizem que o primeiro beijo a gente nunca esquece.

— Samuel? — Ele confirmou com a cabeça. — Caramba, é você mesmo?

Não bastava eu reencontrar o jovem que me beijou no galinheiro. Sim, nada romântico, mas foi ali, com pena no cabelo, piolho de galinha na roupa e cheiro de esterco. Se era um clichê que queriam, não foi dessa vez. Mas voltando ao assunto: não bastava reencontrá-lo; ele tinha que ter se transformado em um convite para a perdição. Samuel era muito parecido com seu irmão Cristian: olhos verdes, cabelo castanho-escuro e ondulado, barba bem desenhada. Tinha apenas vinte e um anos, mas parecia mais velho.

— Já estava ficando magoado — sorriu ele.

— É que naquela época você não era tão grande — observei, olhando para ele. Definitivamente a genética era ótima.

— Você também não tinha essas curvas.

— Espero que isso seja um elogio — respondi, olhado ao redor. — Para onde foram aqueles dois?

— Relaxa, Nat, não vou te atacar — disse ele, caminhando em direção à pequena fogueira. — Essa situação não foi combinada; eu nem sabia que tinha voltado.

— Me desculpe, é que...

— Tudo bem, eu entendo sua preocupação, mas é importante lembrar que eles se amam. O que mais podemos fazer além de respeitar esse sentimento?

— Não é bem assim que as coisas funcionam, e você sabe disso — balancei a cabeça negativamente, me juntando a ele.

— Não é justo separar duas pessoas que se amam por causa de uma tradição.

— Não é só uma tradição, e ela sabe as consequências dessa loucura — insisti.

— O Crístian está disposto a enfrentar o mundo pelo amor de sua irmã, Nat. E ela também está disposta a tudo para ficar com ele.

Samuel tinha voz grave, e a calma com que falava sempre foi um charme. Agora, eu já não me sentia mais desconfortável ao seu lado. Enquanto o observava, ele se sentou em um tronco de árvore caído e começou a colocar gravetos para aumentar o fogo.

— Venha, sente-se aqui, vamos conversar — sugeriu, afastando-se para que eu pudesse me sentar ao seu lado.

— Samuel, não sei se é uma boa ideia. Eles podem sair para fazer ronda, e...

— Ninguém vem aqui, Nat, fique tranquila.

— Não entendo essa calma de vocês — falei, sentado-me ao seu lado.

— Quando você voltou? — perguntou, mexendo na fogueira com um graveto.

— Cheguei hoje à tarde — respondi, observando-o brincar com o fogo.

— Eu vi vocês se aproximando e logo te reconheci, mas fiquei paralisado. Não consegui me aproximar, acredita?

— Por que ficou paralisado?

— Acho que fiquei nervoso — sorriu, tímido. — Não esperava te encontrar assim de repente.

Aquela declaração me surpreendeu, mas não quis ficar lhe fazendo perguntas sobre isso. Então, mudei de assunto.

— Minha irmã vem sempre aqui?

— Quando Crístian está na fazenda, eles se encontram em casa, mas nem sempre dá certo. Aí eles vêm para cá, que é afastado e dá para ter privacidade — respondeu, de forma natural.

— E ela vem sozinha?

— Por que você pergunta?

— Porque você não viria aqui por nada — dei de ombros.

— E por que eu viria, então?

— Para namorar, talvez.

— Eu nem tenho namorada. Venho apenas dar apoio a eles. Normalmente fico sozinho e aproveito para pensar na vida até eles voltarem.

— E por que eu viria, então?

— Para namorar, talvez.

— Eu nem tenho namorada. Venho apenas dar apoio a eles. Normalmente fico sozinho e aproveito para pensar na vida.

— Você é estranho — eu ri.

— Sim, mas não doeu nada se sentar ao meu lado e falar comigo — disse ele, ainda mexendo na fogueira com um sorriso fofo.

— É, realmente não doeu — retribuí o sorriso.

As chamas da fogueira iluminavam seu rosto, que exibia um semblante calmo, e seu comportamento tímido o tornava mais interessante. Lembro dos rapazes com quem convivi no colégio; eles eram atirados e falantes, enquanto Samuel era reservado e discreto.

— Como foi viver na cidade?

— Bem... sofri bastante, mas acabei me acostumando.

— Você foi embora e não deu mais notícias. Eu pensei que não ia mais voltar.

— Quase não tinha tempo para mexer no celular. O Igor é hiperativo e dava muito trabalho. Era para eu ter vindo ano passado, mas estava estudando. Meus tios trabalhavam muito, acabamos deixando para vir esse ano.

— Eu vi as fotos de quando seus pais foram te visitar. Não conheço a Itaipu, mas parece ser um lugar muito bonito.

— É, sim.

— Senti sua falta — respondeu ele, olhando para baixo.

— Sentiu minha falta? Ah, fala sério! Vivia cercado de amigos e ainda tinha as meninas da fazenda que sempre gostaram de você.

— Deve ter se esquecido de que eu trocava minhas amizades para brincar contigo quando criança, e que, na adolescência, inventava desculpas para estar sempre estar ao seu lado. Me lembro dos banhos de riacho, os passeios a cavalo, ficou tudo sem graça sem você aqui.

— Nossa, nunca imaginei.

— Eu sempre fui apaixonado pela cultura cigana. Quem dera poder ser um de vocês — comentou, ainda cutucando as brasas.

— Cresceu em nosso meio, deve ser por isso.

— Não tenho sangue cigano, mas meu coração com certeza é.

— Que lindo — minha boca se curvou em um sorriso tímido.

— Veja como o céu está bonito hoje — disse ele, apontando para as estrelas. A noite realmente estava linda.

— Eu costumava olhar o céu lá em Foz, mas lá não parecia tão bonito quanto aqui. Sentia falta de dançar, e hoje mal consegui me aproximar da fogueira.

— Gosta de observar as estrelas?

Olhei para o céu e sorri; eu costumava fazer isso enquanto pensava nos mistérios da vida.

— Muito — respondi.

— Vem comigo! — disse ele, fazendo um gesto para que o seguisse.

Samuel me conduziu pela trilha até a estrada de terra, onde havia uma porteira de madeira. Dali era possível ver melhor o céu, e fiquei completamente hipnotizada.

— Lindo demais — disse, me debruçando na porteira usando os braços como apoio.

Sorria discretamente enquanto tentava reconhecer as constelações. Sem que eu esperasse, ele se posicionou atrás de mim e colocou as mãos na minha cintura.

— Sim, é muito linda — sussurrou em meu ouvido.

— Eu não sabia que você gostava tanto de observar as estrelas — falei, virando-me para ele, o que me deixou nervosa e confusa.

— Gosto muito, me faz viajar em pensamentos — respondeu, apoiando os braços na porteira e me prendendo à sua frente.

Minha respiração acelerou ao perceber o que estava acontecendo. Samuel se aproximou lentamente até ficar com o rosto a centímetros do meu, encarando meus lábios. Um calafrio diferente percorreu meu corpo; era bom, muito bom. Nunca havia me sentido assim e, apesar da enorme vontade de provar seus lábios novamente, virei o rosto e ajeitei minha postura, posicionando-me ao seu lado.

— Não precisa ter tanto medo de mim, sabia? — disse Samuel, sorrindo e enrolando uma mexa do meu cabelo em seu dedo.

— Eu não posso.

— Me beijar?

— Não posso.

— Eu te esperei por cinco anos, Nat. Não fuja de mim, por favor — ele murmurou, com a voz rouca em meu ouvido, antes de se encostar na cerca e olhar para o céu.

— O que quer dizer com isso?

— Eu te beijei naquela tarde e nunca mais te esqueci. Tentei namorar, mas não deu certo — confessou timidamente. — Nenhuma boca tem o gosto da sua.

— Eu não beijei mais ninguém, você foi o único.

— Então me deixa te beijar de novo? Só mais uma vez — ele segurou meu queixo, fazendo com que o encarasse.

— Em que momento isso virou um encontro romântico? — perguntei, dando um passo para atrás.

— Já entendi — ele levantou as mãos, em sinal de rendição. — Vamos voltar para a clareira.

— Vamos — concordei de imediato.

— Não sei se já disse, mas você está linda — ele sorriu me estendendo a mão.

Era a primeira vez que caminhava de mãos dadas com um rapaz, e confesso que me sentia diferente. Ele não me tratou com a malícia que os meninos do colégio costumavam ter. Embora nunca tivessem me tocado, tentaram, e eu me sentia muito desconfortável na presença de alguns que me olhavam como um objeto. Samuel tentou me beijar, mas recuou ao perceber que não correspondi, o que fez com que ele ganhasse pontos comigo.

— Obrigado por vir, realmente foi uma surpresa.

— Foi bom te rever.

— Será que te vejo aqui outra vez?

— Sinceramente, eu não sei.

Nos sentamos no tronco em frente a fogueira, que já estava quase apagada. Ele acrescentou alguns gravetos, fazendo com que o fogo ganhasse força novamente. Agora, só se ouvia o som dos animais noturnos e o estalar dos galhos secos, que logo se tornaram brasas. Samuel se mostrou tímido e, ao mesmo tempo, misterioso, mas essa não era a lembrança que eu tinha dele. Sempre foi extrovertido, me chamava por apelidos e fazia muitas travessuras os garotos do acampamento. Agora, estava sério e reservado, mas confesso que não achei ruim, afinal, eu também estava assim, pelo menos naquela noite.

Estava cansada por conta da viagem, e logo o sono me pegou. Ele gentilmente me ofereceu seu ombro para que me apoiasse e passou o braço pela minha cintura. A sensação de sentir o calor do corpo dele era boa, muito boa. Em silêncio, ele acariciou meu cabelo e, apesar de lutar para me manter acordada, o sono me venceu. Eu sabia que estava agindo errado; não podia estar tão próxima assim de um homem, isso ia contra tudo o que aprendi. Mas não consegui evitar, aquele reencontro acendeu um sentimento diferente dentro de mim e agora temia ficar como minha irmã, que arriscou tudo e deixou sua sorte nas mãos do destino.

— Que bonitinho!

— Santa Sara!

Eu me assustei com a voz de Soraia, e pelo visto Samuel também havia adormecido, pois se desequilibrou quando puxei sua camisa e caímos de costas no chão. Parte de minha saia foi parar na cabeça, agora eu me debatia entre aquele tecido, desejando encontrar um buraco para me esconder.

— Nat, Você se machucou? — perguntou Soraia, rindo da minha situação desconfortável.

— Esqueceu seu neurônio na gaveta, não é, irmã? — perguntei, referindo-me à sua demora.

— Parece que juízo não é o forte das filhas do papai, né, Natacha?

— A falta de juízo é contagiosa. Não acha que já está meio tarde?

— A culpa foi dele, perdi a hora.

— Minha não — respondeu Crístian, puxando-a para um abraço.

— Podemos acompanhá-las para que voltem em segurança — disse Samuel.

— Não há necessidade — disse Soraia, beijando o jovem, sem cerimônia.

— Não há necessidade — disse Soraia, beijando o jovem, sem cerimônia.

Samuel e eu trocamos olhares, que desviei em seguida, sentindo o rosto esquentar. Terminar a noite, avulsa, era uma das minhas habilidades.

— Obrigado pela companhia — ele sorriu e me deu um beijo no rosto.

— Eu que agradeço. Se você não estivesse aqui, teria ido embora e deixado essa maluca para trás.

Voltamos ao acampamento, e pelo barulho, a festa ainda acontecia em volta da fogueira. Pulamos a janela e percebi que Soraia havia colocado travesseiros na cama, como se estivéssemos dormindo. Fiquei aliviada por não encontrarmos ninguém pelo caminho. Apesar de ser impulsiva, tinha muito medo de fazer coisas erradas e ser castigada.

— Nat, obrigada por ir comigo. É ruim sair sozinha.

— Soraia, você sabe que não podemos ter intimidades com antes do casamento, não sabe?

— Eu já tive — confirmou ela, como se fosse óbvio.

— Preferia não saber disso. Você é muito irresponsável!

— Vou fugir com ele. Não posso me casar com um homem que não amo — afirmou, decidida.

— Ai, meu santo protetor das ciganas desmioladas! — tapei o rosto com o travesseiro. Agora desejava nunca ter vindo do sul. Aquela confusão, com toda certeza, iria sobrar para mim.

— Só quero ser feliz, Nat.

— Sinceramente, não sei o que dizer. Sempre ouvimos que os herdeiros da Corcel negro são intocáveis. E agora você se envolve com um deles?

— Bem... eles não são intocáveis. São pessoas como nós e nos respeitam muito. Torci muito para o conselho afrouxasse as regras, mas perdi as esperanças.

— Há quanto tempo estão juntos?

— Está completando um ano.

— Um ano? Caramba, isso é mais sério do que eu pensava.

— Não escolhemos por quem se apaixonar.

— Certo, mas e seu noivo?

— Não sei, não quero pensar nisso ainda.

— Pelo jeito o juízo ficou em cima do armário — respondi, apagando a luz do quarto.

— Malaxeriats, Natacha — disse ela, se deitando.

— Malaxeriats, Soraia — respondi seu boa noite bastante pensativa.

Agora, no escuro, eu olhava o céu estrelado pela fresta da cortina e não pude evitar que o pensamento fosse até ele. Estava preocupada com a situação de Soraia, mas se não cuidasse, acabaria caindo na mesma enrascada. 

Depois daquela noite, contemplar as estrelas nunca mais seria a mesma coisa.

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