Capítulo 46 Feliz ano novo
ATENÇÃO!
ESTE CAPÍTULO CONTÉM GATILHOS DE PRESSÃO PSICOLÓGICA E EMOCIONAL.
Eu acordei no sofá, estava confusa e tinha o coração acelerado. Por um instante pensei que fosse mais um dos meus inúmeros pesadelos, mas a aglomeração de pessoas a minha volta, me dizia que era muito real.
— Não fiquem em cima dela, precisa respirar — orientou dona Solange. Ela me lembrava muito Kiese, tanto na atenção, como na aparência.
— O que aconteceu? — perguntei ao ver aquela gente toda me observando.
— Você desmaiou de repente — explicou Eduardo, me olhando preocupado.
— Está se sentindo melhor? — Caio colocou a mão em minha testa.
— Pode ser hipotensão, mulher grávida tem muito disso.
Ao ouvir aquela voz novamente, tive certeza de que realmente não foi um sonho. Busquei forças de onde não tinha na tentativa de não perder o controle e acabar demonstrando meu desespero. Não sabia o quão perigoso seria se percebessem que recuperei a memória, e que os reconheci.
"O Nil me contou que conhece os filhos do coronel Arlindo Pontes, eu preciso muito dar um recado a ele"
A voz de Estela ecoava pela minha cabeça...
"Diga que a gêmea desaparecida, é a mãe do Nil, ela foi assassinada, mas o filho está aqui. Você precisa avisar que sua família corre perigo, ele procura no lugar errado".
Eu vi aquele homem ao lado do coronel, e minha vontade era de gritar aos quatro ventos quem ele era, mas o pavor me dominava, simplesmente não consegui.
"Aquele homem é obcecado pelo coronel, quer destruí-lo a todo custo, e não vai parar até conseguir".
— Isso sempre acontece? — o tio perguntou desconfiado.
— Estou melhor, não se preocupem, devo realmente ter tido uma queda de pressão — comentei sufocada.
— Então é melhor não ficar esse acúmulo de pessoas em volta — sugeriu o coronel.
— Verdade — concordou o tio. — Se quiser descansar, os quartos são bem arejados lá em cima.
— Eu posso ficar com ela — disse a Suelen. — Se não se importarem, é claro.
— Você vai ficar bem? — Caio me olhou preocupado.
— Se estiver sentindo alguma coisa, por favor, nos diga — agora foi a vez do Eduardo se manifestar.
— Tudo bem, eu só preciso descansar um pouco.
As informações em minha mente iam e vinham fracionadas. Não dava para confiar em tudo o que me lembrava, mas ali eu tinha certeza, absoluta, de que aqueles homens eram, sim, os meus sequestradores. A voz do Cobra foi como um gatilho, as lembranças vieram carregadas de medo, pavor, sofrimento e, ao mesmo tempo, desejo de justiça.
Estela não sobreviveu, ela nunca voltou de fato para a família. Nil nunca conheceu o mar, a Shelia jamais pisou em uma passarela. Tantas vidas roubadas, sonhos interrompidos, famílias destruídas, pessoas prejudicadas por absoluta maldade. É assustador pensar que o ser humano possa ser tão cruel ao ponto de prejudicar o seu semelhante dessa maneira. Mais assustador ainda, é pensar que alguns que juraram servir à justiça e proteger os inocentes cometiam crimes bárbaros e ainda poderiam ficar impunes.
— Fiz um chá, pode dar a ela, não faz mal — disse dona Solange entregando uma xícara nas mãos de Suelen assim que chegamos no quarto.
Não consegui dizer nada, mas também não tomaria o conteúdo oferecido por ela, agora naquele lugar, nem os peixes do aquário me inspiravam confiança.
— Melhor deixar esfriar — Suelen trocou olhares comigo antes de colocar a xícara sobre a mesa de cabeceira.
— Vou dar uma olhada em Marina, caso precisem, é só chamar — disse a mulher, nos deixando a sós.
Por fora, eu tentava manter a calma, mas por dentro o surto era intenso. Precisava falar com o coronel e contar o que havia lembrado, mas ficar sozinha com ele levantaria muitas suspeitas. O ideal seria falar com o Caio, mas tive medo de que ele explodisse e fizesse alguma besteira, então, só me sobrou o Eduardo, que era o mais centrado.
Não precisei explicar nada a Suelen, ela é tão medrosa que preferiu não saber o motivo da minha expressão de pavor. A loira conseguiu dar um jeito de o Edu vir até o quarto onde eu estava e ainda ficou no corredor, cuidando caso alguém se aproximasse.
— O que aconteceu? — Eduardo se sentou a beira da cama preocupado.
— Eu quero ir embora daqui, esse lugar não é seguro, me tira daqui!
Eu bem que tentei me controlar, precisava ao menos conseguir conversar, mas ao ganhar sua atenção, foi como se todos os meus medos me dominassem novamente.
— Calma, Ana, me explica o que está acontecendo, está me deixando preocupado.
— Ela disse... Gel — afirmei. — É isso, Geraldo, eu devia ter percebido, droga!
— Ela, quem, do que está falando? O que tem meu padrinho?
— O coronel disse que um gatilho poderia me fazer recuperar a memória, e aconteceu. Eu me lembrei de tudo, precisamos sair daqui!
Eu andava de um lado para o outro, transtornada, não sabia se falava, gesticulava, ou chorava, enquanto Eduardo tentava me acalmar em vão.
— Ana, por favor, quem é ela, não estou entendendo. Que gatilho? Do que se lembrou?
— Aquele Evandro, ele é o Cobra, eu tenho certeza absoluta, e seu tio, o chefe da quadrilha que me sequestrou. A Estela me pediu para encontrar seu pai, eu reconheci sua voz, ficou marcada aqui dentro — bati com a mão em minha própria cabeça. — Tenho certeza de que são eles, precisamos chamar a polícia, e...
O Eduardo correu até a porta, e a fechou rapidamente.
— Ana, por favor, pare — ele pediu vindo em minha direção. — Se nos ouvirem...
— Você sabia — afirmei com lágrimas nos olhos. — Falou com ele ao telefone, é óbvio que reconheceria seu primo.
— É lógico que não, as vozes saíram abafadas, nem a sua estava nítida, mas que ideia!
— Eu quero ir embora daqui, todos temos que ir, é perigoso, eles são gente muito ruim.
— Eu preciso que se acalme, não dá para entender o que está tentando me dizer, e... Ana, pare! — Ele me segurou pelos ombros.
— Me acalmar? Eu fui sequestrada e torturada naquele inferno. Estela, Nil, Sheila, pessoas inocentes morreram, eu quase morri, e quer que aceite numa boa? O teu irmão foi espancado, não me pede calma, ou vou surtar mais ainda!
— Não estou te pedindo para aceitar, só preciso que se contenha, ou vão nos ouvir.
— Eu quis falar contigo porque o Caio é impulsivo e tenho medo de sua reação.
— Fez bem, mas me ouça. Está fazendo acusações gravíssimas, por favor, se contenha, e fale baixo — ele pedia, mas eu estava fora de controle.
— Me conter? Eles quase me mataram, inferno!
— Ah, mas que droga!
Em um impulso ele me abraçou apertado, e tapou a minha boca com a mão. Me debati, mas não tinha chance contra aquele homem grande e forte me espremendo na parede ao lado da porta.
— O que está fazendo, me solta! — bufei feito um touro bravo. — A situação aqui é muito séria, e...
Não terminei de falar, ele fez sinal com a mão, e logo entendi que algo não estava certo.
— Ela está dormindo, eu ia buscar um remédio para dor de cabeça, e... Ela está dormindo tio.
A voz de Suelen saiu trêmula, tive muito medo que ele desconfiasse de alguma coisa.
— O Eduardo, onde está?
— Eu, não... sei — ela disse vacilante. — Não o vi.
— Ok, não vamos incomodar a moça, pedirei para Solange lhe trazer um analgésico.
— Eu agradeço.
Dito isso, o carrasco camuflado se foi.
— Era disso que eu falava — Edu sussurrou apontando para a porta.
— Esse homem, é um criminoso muito perigoso, temos que avisar seu pai, que...
— Ana, me escuta — Eduardo me puxou pela mão, até que me sentasse na cama de frente a ele. — Não podemos sair por essa porta fazendo acusações tão sérias assim. Calma, temos que pensar direito, e...
— Pensar direito? Ele é...
— Eu acredito em você, mas se agirmos no calor da emoção, podemos botar tudo a perder. O caso do seu sequestro foi dado como solucionado, os responsáveis foram mortos, não podemos simplesmente chegar agora, baseado no reconhecimento de voz, e uma lembrança de algo que aconteceu a meses, e dizer que a polícia falhou. Vou precisar falar com as pessoas certas, e para isso, será preciso sigilo.
— Eu não acredito que vai me fazer sentar na mesa com essa gente, passar a noite na casa deles, e ainda fingir que somos uma família — falei em lágrimas. — Eu estou grávida, Eduardo, nem deveria estar aqui passando por isso.
— Eu sei, não era para ser assim, mas confia em mim.
Por mais que o Edu tentasse me convencer de que, naquele momento, me calar era a opção mais segura, eu me recusava a aceitar. Minha vontade era de gritar aos quatro cantos que eles eram criminosos, e vê-los saindo dali algemados rumo a uma cela bem trancada, e de preferência, no fundo do oceano, se é que isso é possível.
— Não gosto de te ver chorando — afirmou me apertando em seu abraço.
Não tínhamos muito tempo, eu precisava contar tudo o que me lembrei, tinha medo de que alguém viesse, ou que minha mente me pregasse uma peça e voltasse a se apagar. Então, respirei fundo e relatei com riqueza de detalhes enquanto ele me olhava com uma expressão, que a início foi de raiva, mas depois foi se transformando em tristeza, dor, sei lá, talvez frustração.
— Eu realmente sinto muito, se pudesse arrancar essa dor de dentro de você e transferir para mim, com certeza o faria. — murmurou, agora me abraçando ainda mais apertado. — Você não é mais minha amorada, mas é minha família, e tudo o que mais quero é que fique bem, e segura.
— Você não acredita em mim, droga!
— Eu acredito, é claro que acredito, não sabe como é difícil ouvir tudo isso, e saber que não pude te defender — afirmou com a voz embargada. — Ele me tirou o que eu tinha de mais precioso, isso não vai ficar assim.
— Não deixe ele machucar o Caio, por favor — murmurei com a voz embargada. — Não vou suportar se um de vocês sair machucado.
— Eu vou vingar cada lágrima derramada, cada trauma que ele te causou, nem que para isso o tenha que arrastar pessoalmente para o inferno.
— Por que tanta maldade? Me dói saber que você e o Caio confiavam tanto nele, eu vi as fotos, ouvi relatos, sei o quanto foi especial em suas vidas. Me sinto como se estivesse tirando uma parte muito importante de sua história com essas lembranças.
Fechei os olhos e respirei fundo, ao me lembrar da maneira carinhosa como ele tratou o Nil aquela noite. Eu mesma teria caído de amores, se não fosse a situação caótica em que me encontrava. O homem era um lunático que não dava para saber quando estava sendo sincero, ou encenando um personagem digno de um Oscar.
— Ele roubou boa parte da minha história. — Edu ajeitou sua postura, e baixou a cabeça olhando para o chão. — Desde que me conheço por gente, meu padrinho é presente em nossas vidas. Sempre foi carinhoso, divertido, compreensivo, nos entendia como ninguém. O que ele disse é verdade, nós crescemos brincando por esse quintal, vínhamos muito aqui. Eu o respeitava como um pai, é uma decepção sem tamanho saber que foi capaz de tanta maldade. Dói saber que aquele carinho todo era parte de uma encenação, um desejo mórbido de vingança por, sabe-se lá o que. Meu pai não merecia isso, nós não merecíamos.
"Ele vai se arrepender por cada noite mal dormida que passei, por todos aqueles anos que assisti a sua felicidade, enquanto aquele animal vivia a vida que era para ser minha. O amor da minha vida, meus amigos, a casa dos meus sonhos, tudo o que me esforcei tanto para conseguir, ele simplesmente levou de mim."
As palavras frias daquele homem ecoavam em minha mente, me deixando completamente desestabilizada.
— Ele quer destruir o coronel, não vai desistir até conseguir, você tem que alertar o seu pai.
— Farei isso, mas não agora, nem aqui. Precisamos agir com cautela, amanhã quando chegarmos a cidade, conversaremos com privacidade e segurança.
— Não sei se tenho esse sangue-frio de me juntar a eles na mesma mesa, e fingir que não sei de nada.
— Me dói te pedir isso, mas não vejo outra saída. Ele precisa acreditar que nada mudou, só te peço que aconteça o que acontecer, confie em mim.
— Como isso vai ser Eduardo? Se ele se livrar de mais essa como tem feito, e cismar com o bebê?
— Primeiro ele vai ter que me matar.
— Olha o que está dizendo!
— É sério, Ana, eu sei que falhei contigo, mas entenda que não fazia ideia dessa situação caótica, e muitas coisas aconteceram ao mesmo tempo, me distraindo. Já paguei um preço alto demais por conta disso e te garanto que essa pendência cobrarei com juros, e no seu bebê ele não toca, eu o mato primeiro. Na pior das hipóteses, queimaremos juntos no inferno.
Eu não conseguia entender como um ser humano conseguia ser tão cruel. O cara destruiu a família que ele chamava de sua, por pura inveja, ambição, e agora estava ali, bancando o bonzinho, como se nada tivesse acontecido. Como fingir que não me lembrava, se só o fato de ouvir aquelas vozes, já me dava uma crise nervosa?
— E se ele me ouviu dizer que lembrei, já passou pela sua cabeça? Como isso vai terminar, Eduardo? — perguntei aflita.
— Eu não sei, mas tenho tantos motivos para meter uma bala naquela cabeça, que posso repensar se realmente me importo com meu réu primário. Ai dele se mexer contigo outra vez.
Não tive tempo de assimilar o que ouvi, fomos interrompidos por batidas na porta do quarto...
— Ana, o Caio está vindo.
Suelen entrou rapidamente no quarto e iniciou um assunto aleatório...
— O tio é muito legal, mandei fotos daqui para as meninas e elas estão encantadas, ele disse que é só avisar a data que ele se programa, vai ser muito divertido.
Não consegui responder, minha boca até secou, só de imaginar um criminoso perigoso feito ele, tendo acesso a minhas amigas.
— Eu trago vocês — afirmou Eduardo. — Tenho certeza de que o Caio vai querer vir também.
— Eu? — Caio se aproximou.
— O tio nos convidou para passar um fim de semana com as meninas aqui — Suelen explicou empolgada.
Tentei demonstrar empolgação, mas o que sentia, era um misto de medo, raiva e ansiedade.
— Ah, sim, e você melhorou?
— Sim, estou melhor — menti.
— O jantar vai ser servido, e o tio quer fazer uma oração com a família reunida.
— Tudo bem, eu vou passar uma água no rosto — falei indo em direção ao banheiro. — É sério que vai trazer as meninas para o ninho do abutre? — resmunguei quando me vi sozinha não cômodo.
~♥~
O clima era de descontração, qualquer pessoa que chegasse ali, encontraria uma família feliz, comemorando a entrada do novo ano em harmonia. Qualquer pessoa que não soubesse da podridão que se escondia por trás daqueles homens, que fingiam ser boas pessoas, mas, no fundo, eram assassinos cruéis e desalmados. Seres detestáveis que tentavam a todo custo destruir aquela família, e agora os abraçavam e faziam oração, pedindo, paz, saúde e proteção. Bem que todos precisávamos de um reforço divino mesmo, bando de abutres.
— Estávamos servindo ao exército, e o uniforme fazia sucesso — dizia o tio, ao Caio durante o jantar. — Seu pai era o mais disputado.
— Ele é exagerado — o coronel sorriu ficando vermelho.
— Exagerado? — Geraldo gargalhou. — Se contasse a vocês tudo o que aprontamos aquela noite.
Eduardo se manteve mudo naquela mesa, Suelen alimentava discretamente com um pedaço de carne um cachorrinho, que sei lá de onde apareceu, e eu, me segurava para não ter um surto imediato. Minha vontade era de ligar para a polícia, mas eles eram a polícia, a quem recorreria agora?
— Você matou a minha mãe.
Uma voz cheia de rancor, chamou a atenção de todos para uma figura desnorteada que se aproximava...
— Marina!
O tio ameaçou se levantar, mas ela apontou uma arma em sua direção, fazendo com que se sentasse novamente. Seu olhar já não era mais vazio como antes, agora carregava um ódio, tão grande, que me causava arrepios.
— Marina, por favor, se acalme — pediu Evandro indo em sua direção, mas ela atirou em seu peito fazendo com que caísse no chão.
Ele não morreu de imediato, ficou agonizando, mas nada podíamos fazer, ou poderíamos ser os próximos...
— Marina, o que você fez! — o tio se levantou, e mais um disparo ecoou, só que dessa vez, acertou de raspão o braço do coronel que estava ao lado de seu alvo.
— Esse homem, ele é um monstro — disse ela apontando a pistola para o marido, enquanto assistíamos horrorizados aquela cena. — Esse traste me seduziu, me prometeu o mundo e caí na sua conversa. Por sua causa deixei uma carreira de sucesso na polícia porque não permite que alguém se destaque mais do que ele. Eu me anulei, vivi somente para ele, para essa casa, e depois, descobri que me traía da forma mais covarde. Você me fez cuidar de suas amantes, Geraldo, suas escravas que trazia da rua, dos filhos delas. Eu não podia ter filhos, mas você me fez cuidar dos frutos de sua traição!
— Marina, vamos conversar — pedia Geraldo com as mãos estendidas.
— Conversar sobre o quê? — ela esboçou um sorrio estranho. — Sobre as pessoas que você matou, e enterrou no meio da mata? Sobre, as meninas que você vende como mercadorias para estrangeiros depravados? Ou sobre como você é invejoso ao ponto de destruir a vida de todos a sua volta. Ninguém levanta dessa mesa!
Eu sequer consegui chorar, estava assustada demais, o Eduardo segurava minha mão. Suelen estava pálida, e os demais observavam atentos.
— Esse homem que se faz de bonzinho, abriu a jaula dos animais que assustaram minha mãe. Ela caiu na piscina e tive que assistir enquanto se afogava, porque ele me obrigou. Ainda ouço os gritos dela, vejo seu rosto, o desespero antes de se afundar. Eu a vejo todo dia pedindo por justiça, em cada canto dessa casa ela sempre está, aqui em minha cabeça, em tudo.
— Tia — Edu se levantou. — Eu também perdi a minha mãe, e sei como isso dói — ele deu um passo a frente com as mãos estendidas.
— A sua mãe, ele a assediava, esse verme a perseguia porque tinha uma obsessão por ela. Ana nunca disse nada porque ele a ameaçava.
— Mas o que... — o coronel olhou para o "irmão" com um semblante confuso.
— Ela tem doença mental, vai acreditar? — Geraldo balançou a cabeça negativamente.
— A doente mental aqui, viu esse encosto sugar a sua família coronel — disse ela ainda com aquela arma apontada para a nossa direção. — Ele me dopava, consegui laudos falsos para me interditar. Eu não conseguia me defender de seus abusos físicos, nem psicológicos por que vivia drogada.
— Onde estão os remédios dela, Solange? — perguntou Geraldo. — Não está falando coisa com coisa.
— O médico novo pediu para suspender alguns, e...
— Que médico novo, eu não estou sabendo de nada!
— Ele veio aqui há três dias, e disse...
— Você tinha a obrigação de me avisar, eu não mandei ninguém aqui, olha o resultado. Ela está em surto!
— Eu estava quando me casei com você, seu assassino!
Ela tremia apontando aquela arma para o marido que a olhava com ódio. Não tinha como fazer qualquer coisa, estávamos na mesa, a uma distância que qualquer um que se levantasse poderia levar um tiro. O coronel pressionava o braço com um guardanapo embebido em sangue, e Caio se mantinha em posição de alerta ao lado de uma Suelen com os olhos arregalados e um cachorro no colo. Se era um surto, eu não sabia, mas que aquilo não era normal, com certeza não era.
— Tia, por favor — pediu Eduardo dando mais um passo a frente. Ele parecia ser o único ali a ter a sua confiança.
— Ninguém levanta dessa mesa, eu juro que atiro!
— Eles não vão — ele fez sinal para que não nos movêssemos, mas falando por mim, eu não iria a lugar algum, não teria pernas para isso. — Tia, se existe um culpado aqui, ele pagará, mas olha para a mesa, tem pessoas inocentes. Eu sei que a senhora é uma boa pessoa, por favor, abaixe essa arma, e vamos conversar.
— Você tem um coração muito bom, Edu, é uma pena que se deixe influenciar por ele. Esse monstro que você chama de padrinho, sempre quis o lugar do seu pai.
A mulher estalava os olhos, sorria e movimentava a cabeça freneticamente, parecia cena de filme de terror. Eu tinha muito medo de que aquela arma disparasse por acidente, não queria que ele se ferisse, e vê-lo chegando cada vez mais perto dela, me trazia um desespero sem tamanho...
— Marina, por favor — ia dizendo Solange, mas foi interrompida.
— Não me dirija a palavra, você é tão monstruosa quanto eles.
— Do que ela está falando? — meu questionamento foi mais para mim do que para qualquer pessoa.
— Essa mulher, é mais uma das amantes que ele colocou aqui dentro. Essa cobra ficou escondida aqui todo esse tempo, porque estava sendo procurada pela polícia por envolvimento no caso da Sheila. Foi ela quem aliciou a menina, e muitas outras, é cúmplice de todos os seus crimes, vivia me drogando para que todos pensassem que eu estava doente. Se ousar me dirigir a palavra, Solange, eu juro que te mato primeiro!
A cada declaração, os olhares de espanto aumentavam, o homem não tinha limites em suas maldades. Se Lúcifer, era o pai da mentira, Geraldo, era o avô.
— Tia, me dê essa arma, por favor.
Eduardo se aproximou lentamente, não sei como se manteve tão calmo. Suas palavras saíam tão serenas, que nem parecia que tinha uma arma carregada nas mãos de uma mulher descontrolada a sua frente.
— Você tem o coração puro, Eduardo, não merecia sofrer tanto na mão dele.
— Tia, eu te considero como uma mãe, te amo muito — falou ao alcançar a sua mão livre. — Me deixa cuidar de você.
Ela o abraçou, beijou seu rosto e disse algo em seu ouvido antes de lhe entregar a arma carregada.
— Eu prometo — foi a única coisa que consegui ouvir da resposta do Eduardo para a mulher que o abraçava de olhos fechados.
— O que ela disse a ele? — sussurrou Suelen.
— Eu não sei — respondeu Caio. — Não consegui fazer a leitura labial.
Respirei aliviada, mas quando pensamos que a situação estava controlada, Geraldo se aproximou, e em um movimento rápido, tomou a pistola da mão de Edu e atirou contra a própria esposa, que caiu sem chance de lutar, levando Eduardo consigo.
— Puta que pariu! — Caio levou as mãos até a cabeça.
Todos se levantaram assustados, menos eu, porque as pernas falharam. Suelen chorava sem parar, nem sei aonde foi parar o cachorro, e o coronel correu para verificar as vítimas no chão.
— Ficou maluco, Geraldo! — ele gritou examinando um corpo sem vida. E para nosso alívio, o Edu só havia se desequilibrado.
— Eu só queria ter um fim de semana tranquilo com a família — Geraldo coçou a cabeça com a própria arma. — Mas ela estragou tudo, atirou no meu filho.
— Que tragédia — disse o coronel, ao ver que Evandro ainda respirava. — Temos que chamar a ambulância.
— Vou chamar a polícia — Caio pegou o celular.
— Não! — o grito de Geraldo me assustou, mas ao olhar em sua direção, a cena que vi, me levou o restante das forças. Agora mesmo é que não conseguiria me manter de pé.
— Tio? — Caio questionou quando o homem encostou a arma na cabeça do Eduardo que ainda se levantava do chão. — Por que está agindo assim?
— Geraldo, eu não sei o que está acontecendo contigo — disse o coronel dando um passo a frente. — Seja o que for que te aflige, podemos ajudar, somos uma família.
— Família? — o homem gargalhou. — Que família, eu não tenho mais nada!
— Não, por favor — pedi em lágrimas. Minha voz quase não saía enquanto meu queixo tremia descompassadamente, assim como minhas mãos.
— Eu não tenho nada, nunca consegui ter porque você me levou tudo. A mulher que amava, os filhos que eu queria, o prestígio. Você nunca foi tão bom quanto eu, não merecia a posição que tem.
— Geraldo, olhe o que está dizendo, você tem uma carreira incrível, uma reputação invejável, e...
— Cale-se, seu coronelzinho de merda! Eu só te deixei viver, porque queria te ver afundando, perdendo tudo aos poucos, de uma maneira bem dolorosa. "Eu" fui o pai dos teus filhos, "eu" os criei, fui presente, fui a proteção que precisavam. Eu estive com ela enquanto você só pensava em trabalho e não tinha tempo.
— Gel, libera meu filho, o seu problema é comigo — disse o coronel. — Mate-me se quiser, mas deixe-o fora disso. Eu troco de lugar com ele.
— Implora, é isso mesmo que eu quero. Fica de joelhos e implora, seu verme rastejante.
— Imploro.
A cena do coronel de joelhos a sua frente, era de partir o coração. Se pudesse, eu mesma lhe daria um tiro no meio da testa naquele momento.
— Que satisfação te ver assim — o homem gargalhou. — Acabado, humilhado, derrotado, olha que rima perfeita!
O homem ria como se estivesse possuído.
— Filho da puta — murmurou Caio de punho cerrado.
— Solta meu filho, Geraldo — implorou o coronel.
— Cansei dessa brincadeira, todos para a jaula! — gritou com uma expressão sinistra, antes de soltar o Eduardo.
— Mas Geraldo — Solange o questionou. — E eu?
— Você é uma imprestável, já não me serve para nada a muito tempo.
— Mas, meu amor, eu me dediquei a você todos esses anos, por que está fazendo isso comigo?
Ela tentou se aproximar do homem carrancudo e ele lhe apontou a arma, fazendo com que parasse bruscamente.
— Entra naquela jaula, Solange!
O homem nos apontava aquela arma não dando chance de reação. Um a um, fomos entrando naquela jaula feito animais indo para o abate, e mais uma vez, eu tinha a sensação de estar indo de encontro a morte,. Só que agora, as pessoas que poderiam tentar me salvar, se tornaram reféns ao meu lado.
A jaula era espaçosa para um animal de médio porte, mas nunca para cinco pessoas adultas. Não tinha como ficar em pé, então fomos nos sentando, praticamente colados um ao outro, e quando restou apenas o Eduardo do lado de fora... ele nem se deu ao trabalho de me encarar quando bateu aquele cadeado.
— Edu? — meus olhos lacrimejaram ao vê-lo me dar as costas. — Eduardo, ao menos tenha a decência de olhar para mim.
Ele se virou, correu seu olhar para a jaula até me encarar novamente. Não havia uma expressão decifrável em seu rosto, mas no meu, com certeza a de decepção tomava conta.
— Eduardo, filho, o que está acontecendo contigo? Olhe como as meninas estão assustadas, você não é assim!
— Bobagem — ele respondeu. — Um homem forte, não deixa os sentimentos o dominarem.
Era decepção demais acreditar que o Eduardo me traiu daquela forma, ele prometeu me proteger, e agora estava lá, ao lado do homem que mantinha a mim, e sua família enjaulada feito animais, prestes a serem executados. Quando bateu aquele cadeado, ele cravou um punhal direto em meu coração.
— Bom garoto — disse Geraldo com um sorriso satisfeito. — Eu sabia que não me decepcionaria.
— Tive um bom professor — Eduardo deu de ombros.
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