Capítulo 44 O meu primeiro natal
Era véspera de natal e o coronel nos convidou para cear em sua casa. Aquela era a primeira vez que faziam algo do tipo desde que a matriarca da família se foi, e a minha primeira depois da cirurgia. Os gêmeos estavam muito animados, providenciaram enfeites diversos para decorar o ambiente, e confesso que foi uma experiência única.
Eu nunca havia ajudado a montar uma árvore, cheguei a tocar, mas a percepção que tinha, era muito diferente. Aqueles enfeites tão delicados, laços coloridos, papai Noel, renas e presentes de pelúcia, coisas que até então eram apenas enfeites para mim, agora já tinham um sentido diferente. O festão, as bolinhas, até mesmo a sensação de colocar a estrela no topo da árvore, tudo era muito novo, e me fez ficar realmente emocionada.
— Que carinha é essa? — perguntou Edu se sentando ao meu lado ao pé da escada.
— Eu estava pensando em tudo o que a vida me privou — meus olhos automaticamente lacrimejaram. — Meus natais foram especiais, mas não tinha cor. Você consegue imaginar um natal sem brilho? Esse clima, eu imagino como deve ser mágico para uma criança, e eu nunca tive isso. Essa sensação de nostalgia nunca foi tão intensa.
— Na verdade, eu pensei em tudo isso — Eduardo me entregou uma caixa. — Toda essa decoração, eu queria te proporcionar esse momento.
— O que é isso? — perguntei abrindo aquela caixa.
— É o presépio da minha avó, a mãe do meu pai. Essa é a mais profunda representação do passado em minha vida — os olhos de Eduardo brilharam intensamente quando um sorriso fofo botou em seu rosto. — Saudade de quando eu tinha uma família unida.
Quando retirei as folhas de seda que cobriam as peças, me deparei com imagens delicadas que me fizeram voltar ao passado, quando minha avó dizia que tinha que montar o presépio da igreja. Na época eu ia junto só para poder brincar com as crianças, aquilo nunca fez sentido para mim. Eu nem sabia o que de fato era um presépio, minha mente criou algo completamente diferente apesar das explicações que tive. Estranho não é mesmo? Mas essa era a minha realidade, eu tinha o meu próprio mundo, e agora sabia que ele era limitado demais em comparação ao que via agora.
— Me ajuda a montar? — perguntou-me enquanto eu acariciava aquelas peças tão delicadas com o pensamento longe.
— Claro — sorri me levantando.
Caio e Suelen colocavam uns bonecos de neve em um canto da casa com várias luzinhas quando o coronel chegou com o Frederico, que havia tomado banho para a ocasião. O filhote, que já não era mais tão pequeno, estava com uma bandana vermelha no pescoço e o pelo escovado, já chegou pegando as pelúcias que Suelen colocou em baixo da árvore e fazendo a maior bagunça.
— Frederico! — Suelen veio correndo. — Mas olha, que abusado!
— Não briga com meu bebê — Eduardo pegou o cachorro no colo.
— Educa teu filho — Suelen fez uma careta engraçada para o Edu que a entregou o enfeite de pelúcia todo babado.
— A não velho, vai chorar! — Caio abraçou o pai.
— É tão bom ver minha família se entendendo — disse o coronel limpando o rosto com a mão. — Ela poderia estar aqui agora. Ana amava essa época, que saudade.
— Estava pensando nela também — Edu se juntou àquele abraço.
Sorri com lágrimas nos olhos, sabia o quão significante estava sendo aquele momento, tão simples, mas carregado de amor, como o abraço entre pai e filhos, que até pouco tempo, mal se falavam.
— Ok, enquanto vocês se arrumam, eu vou cuidar das coisas na cozinha — disse o coronel se recompondo.
— Eu e a Ana, podemos ajudar com isso — Suelen se manifestou, e concordei.
— Nada disso, hoje os homens tomam conta de tudo, não é meninos? — perguntou o pai.
— Exatamente — concordou Eduardo usando um gorro de papai Noel.
— As princesas vão se arrumar, e os ogros aqui cuidam de tudo — Caio colocou um avental. — Já somos feios mesmo, não adiantaria ficar se enfeitando.
— Ok, eu vou olhar o peru — disse o coronel indo em direção à cozinha.
~♥~
Eu fui criada praticamente na igreja, então sabia o significado religioso do natal, mas até aquela noite, eu não entendia o motivo de me dizerem que tem gosto de nostalgia. É óbvio que sentia saudade dos tempos de criança, minha avó preparava comidas gostosas e me dava presentes, mas era diferente, eu não sabia que tudo ficava mais colorido, que as casas se enchiam de vida, e que pessoas ficavam mais sensíveis. Agora eu presenciava tudo isso colecionando memórias visuais que levaria para toda a vida. A palavra nostalgia nunca mais seria a mesma depois daquele natal.
— Será que estamos prontos para esse novo desafio, Caio? — murmurei observando o terceiro teste de farmácia com resultado positivo. Eu vinha tendo sintomas, mas não contei a ninguém, então recorri à Suelen que me ajudou a comprar os testes, e agora, era hora de dar a notícia ao futuro papai, só não sabia como fazer isso.
Tomei um banho rápido, lavei o cabelo, e me enrolei na toalha pensativa. Eu não sabia se daria conta de ser uma boa mãe, e o sentimento era de medo e insegurança diante da responsabilidade que viria. Sei que foi um descuido, eu estava começando a viver de verdade, estudar, e agora qualquer que fossem as consequências, teria que enfrentar.
— Ana, isso é... — Caio mal entrou no quarto, e se deparou com os testes sobre a cama, e ao lado, uma Ana aérea olhando para o nada. — Amor, é verdade?
Seus olhos brilharam quando confirmei com a cabeça, mas ainda estava assimilando aquela informação, sequer consegui retribuir o seu sorriso.
— Por que não me disse que estava desconfiada?
— Já bastava, um, surtando aqui — respondi me ajeitando na cabeceira da cama.
— Ana, eu vou ser pai? Nós vamos... isso é... caramba!
Ele não sabia se me abraçava, beijava, ou chorava. E eu não sabia se tentava segurar o choro, ou surtava de uma vez...
— Estou com medo — murmurei diante de sua animação.
— Tem um nenezinho aqui — ele abriu a toalha, e beijou minha barriga. — Não precisa ficar preocupada, estarei do seu lado para tudo. Eu vou cuidar de vocês, estou aqui, meu amor, não precisa ficar com essa carinha.
— Disso eu não duvido, mas e se nascer com problema como foi comigo?
— Faremos todo o acompanhamento necessário, e...
— E se vier, Caio?
— Uma coisa de cada vez, agora temos que iniciar o pré-natal e seguir as orientações médicas — disse ele me acolhendo em seu abraço. — Não quero te ver assim, meu amor, estarei ao seu lado para tudo, como sempre fiz.
— Eu aqui surtando com a responsabilidade que vem pela frente, e você nessa calma?
— Casa comigo?
— Estou falando sério, você parece que... o que disse?
— Estou te pedindo para ser minha esposa, já que a mulher da minha vida, você já é.
— Eu? — Engoli em seco sentindo uma revoada de borboletas em meu estômago. — Casar? Assim de vestido de noiva igual aquelas noivas que vi na revista? Ou...
— Com tudo o que tiver direito, minha princesa. Basta dizer que sim e serei o homem mais feliz do mundo. Eu quero formalizar essa família, te dar todo o apoio que precisa, me deixa construir uma história contigo.
— Eu e você, casados?
— Sim, casados — ele beijou meu rosto. — Construindo um sonho — beijou minha testa. — Com uma casa, um bebê, e um cachorro — beijou a minha boca.
— E uma cama reforçada — completei com um sorriso.
— E isolamento acústico no quarto — agora foi sua vez de rir. — Não espero menos do que isso.
— Então corre se arrumar, temos uma ceia de natal pela frente, e dois anúncios importantes a fazer.
— Eu te amo tanto! — Caio chorou abraçado a mim, e dessa vez, não seguirei as lágrimas.
— Obrigado por tudo o que representa em minha vida — falei quando limpou meu rosto com a mão.
— Eu é que tenho que te agradecer. Você me devolveu a vontade de viver, me fez querer ser um homem diferente, me fez abrir meu coração para o amor e sair daquela escuridão. Estava me perdendo, já não ligava para mais nada, eu... Ana, foi você quem salvou minha vida.
— Eu não fiz nada — afirmei com a voz trêmula.
— Quando te dei aquela carona e te vi chorando por ele, pela primeira vez senti inveja do meu irmão. Quando te abracei naquele carro, minha vontade era de te beijar, de pedir que ficasse comigo, mas me segurei, eu tinha que me segurar. E quando te tirei daquela piscina não consegui me conter, eu me lembro daquela sensação, a felicidade que senti quando beijei a sua boca. Você tentava tocar meu rosto, mas não podia deixar que soubesse quem eu era. Tive tanto medo de que descobrisse e não quisesse mais se aproximar de mim. Eu só queria ficar ao seu lado, mesmo que como amigo, mesmo que nunca pudesse te tocar como desejava. Eu só queria que fosse feliz.
— Você é um cara incrível, Caio.
— Você foi a melhor coisa que me aconteceu — continuou a dizer quando seu olhar encontrou o meu, cheio de admiração. — Eu nunca desejei tanto uma mulher, nunca amei tanto ao ponto de arriscar minha própria vida por ela, ao ponto de ficar feliz somente por ver o sorriso em seu rosto, de colocar minha profissão em risco. Eu tentei te procurar em outra garota e simplesmente não consegui sequer beijá-la, eu... eu não existo sem você, Ana, sou um homem pela metade.
— Você me salvou de todas as maneiras possíveis, Caio, me protegeu, me fez forte. E quando me jogaram no fundo do abismo, quando pensei que tudo estava perdido, você foi ao meu encontro e segurou a minha mão, você... — declarei com a voz trêmula. — Você me abraçou e disse que ficaria tudo bem, era só isso que eu queria ouvir naquele momento. Eu sei que duvidei de você, sei que... poxa, como me arrependo, como eu queria voltar no tempo e não ter te machucado tanto. Sim, eu quero dividir a vida contigo, quero ser sua pelo resto dos meus dias, porque sem você do meu lado, nada mais tem sentido. Eu te amo, Caio Felipe de Pontes de Oliveira, minha metade absoluta.
— O que será que o futuro nos reserva? — refleti acariciando minha barriga, antes de me arrumar.
Coloquei um vestido longo, de alças finas com fundo branco, estampado com pequenas flores em tom de rosa, e uma fenda que ia até a coxa. O cabelo ainda estava úmido, então, coloquei uma presilha prendendo parcialmente a franja e um salto que não duraria muito tempo no pé, não era costume usar, mas queria estar bonita aquela noite. Por fim, passei uma maquiagem leve, e me recostei na cama para esperar o loiro vaidoso que sempre demorava no banheiro.
— O que foi? — ele sorriu ao perceber o meu olhar indiscreto.
Não me cansava de admirar a sua beleza, mas aquela cena dele saindo do banho, enrolado na toalha, com o cabelo bagunçado, e gotas d'água escorrendo pelo corpo, mexeu consideravelmente com meu psicológico.
— Você é lindo demais — corri meu olhar mais uma vez por cada centímetro daquele ser perfeito a minha frente.
— Você sabe que não resisto quando me olha assim, não é? — disse ele coçando a nuca com um sorriso fofo.
— Você teria um tempinho para mim?
Me aproximei levando a mão na sua toalha que caiu no chão.
— Eu tenho a vida inteira para você, amor da minha vida.
Ele segurou meu queixo, e depositou um beijo casto em minha boca.
— Nossa, que comportado — mordisquei seu queixo trilhando um rastro de unhas pelo seu tórax lentamente. — Aquela cama está arrumada demais, não acha?
— Então vamos resolver isso agora mesmo!
A química que existia entre nós era incrível, e aquela noite em especial, fui contemplada com uma sessão de carícias, que me fizeram perder a noção do tempo e espaço. Meu vício era olhar em seu rosto quando estava dentro de mim, aqueles olhos de um azul tão intenso fitavam os meus, enquanto ele se movia com firmeza antes de abafar com seus beijos, os sons que escapavam de minha boca. Eu conseguia fazer tudo quando ele me amava, menos ser discreta.
— Agora a cama está desarrumada o suficiente, futura senhora Pontes? — sussurrou em meu ouvido enquanto ainda tentava me recompor. — Ou quer que capriche um pouco mais?
— Eu acho que aquele cantinho ali, ainda está um pouquinho arrumado.
— Adoro esse tipo de bagunça — ele sorriu me puxando para seu colo.
Aquela brincadeira começou na cama, e terminou com nosso primeiro banho a dois. Ele disse que só sairíamos dali quando estivesse completamente satisfeita e cumpriu com muita honra a sua promessa. Nem eu sabia que tinha tanto fogo dentro de mim, e se ele me dava o que queria, por que não aproveitar?
~♥~
Quando finalmente descemos as escadas, avistamos Suelen sentada no sofá brincado com o Frederico. Na poltrona ao lado, Michael e Marcela conversavam distraídos, e na outra, uma grande surpresa me aguardava...
— Pai? — fiz uma parada brusca ao vê-lo de mãos dadas com uma mulher. — Kiese?
— Não vai me dar um abraço? — ela perguntou quando o coronel vinha da cozinha com uma bandeja de taças, e vinho.
— Vocês dois... — me aproximei. — Como assim?
— Não gostou? — Kiese soltou a mão de meu pai.
— Não, eu só estou... — dei um passo a frente. — Que saudade de você, Kiese!
Não preciso dizer, que ali eu já estava chorando.
— Que saudade de você, minha pequena — Kiese segurou meu rosto com as mãos, antes de limpar minhas lágrimas. — Está tão linda.
— Você e meu pai? — sorri confusa. — Desde quando?
— Nós nos aproximamos quando eu ainda cuidava de você, mas nunca chegamos a tocar no assunto. Quando fui embora, ele me ligou, começamos a conversar e... bem, estamos juntos.
— Meus parabéns, meu pai não poderia ter escolhido pessoa melhor — falei sincera. — Já quero irmãos.
— Acho que posso pensar no assunto — meu pai sorriu olhando para Kiese com admiração.
— Me desculpem a demora — disse o tio Geraldo se aproximando. — Tive um contratempo na ONG, depois fiquei um pouco com Marina, mas estava agitada, o médico não aconselha sair de casa quando está assim.
— Quem é Marina? — perguntei ao Caio.
— Esposa dele, ela tem esquizofrenia.
— Nossa, eu sinto muito — voltei meu olhar para o homem, que agora era apresentado ao meu pai. — Ele trabalha em uma ONG?
— Ele tem uma que resgata animais silvestres, dá todo o suporte necessário, e devolve a natureza.
— Sério? — minhas sobrancelhas se elevaram, jamais imaginei que aquele homem estranho seria capaz de tal coisa.
— Resgatamos dois filhotes de uma onça-pintada, a mãe estava morta — disse o tio para o coronel que lhe servia uma taça de vinho. — Já comuniquei o IBAMA para reforçar a fiscalização naquela área.
A noite estava apenas começando, e por vários momentos me peguei segurando o choro ao presenciar aquela interação. Agora eu também sentia que o natal tinha gosto de saudade, e com certeza jamais me esqueceria daqueles momentos tão especiais.
Durante o jantar, uma sessão de nostalgia tomou conta da mesa, enquanto o tio e o coronel recordaram momentos de sua infância. O homem foi praticamente adotado pela família, quando seu pai morreu depois de cair do andaime na construção em que trabalhava. Na época, o avô dos rapazes levou o adolescente de quinze anos para casa, e o acolheu no seio de sua família. O que fez com que criassem um laço muito forte.
— Desde que Marina adoeceu, eu não abri mais a casa para receber amigos — disse o tio. — Me dói vê-la daquela forma, era uma mulher tão ativa.
— Realmente foi um trauma muito grande — afirmou o coronel.
— Seria muito indelicado, se perguntasse o que aconteceu? — perguntei ao Caio, mas acabei ganhando a atenção do tio.
— Ela surtou quando a mãe faleceu — disse ele, me fazendo arrepender de ter perguntado. — Eu tenho dois tigres, e um leão lá na fazenda. Foram resgatados do circo já tem alguns anos, e consegui a licença para criá-los. O rapaz que cuida, acabou esquecendo o portão aberto e eles escaparam, minha sogra se assustou e caiu na piscina. Foi uma fatalidade.
— Que perigo — levei a mão até a boca.
— São mansos — disse o Caio. — Eu tinha medo, mas acabei acostumando.
— O Eduardo esteve lá recentemente — afirmou o tio. — Estavam soltos, ele até brincou com eles no gramado.
— Costumo ir ao menos uma vez ao mês ver a madrinha, mas na ocasião, fui trocar o sistema de segurança que deu problema — afirmou Edu. — Brinco com eles, mas não confio muito.
— Eles são muito dóceis, o que assusta é o tamanho — explicou o tio. — Inclusive eu queria convidar a todos os presentes, para passar a virada do ano conosco. Quem sabe Marina não reage com a presença de vocês.
— Nós estaremos de plantão — Michael se manifestou.
— Eu prometi passar o ano novo com a família de Kiese — avisou meu pai.
— Os meninos? — perguntou o tio.
— Topa? — Caio me perguntou, diante do meu olhar vacilante.
— Você vai? — perguntei a Suelen.
— Se você for, eu vou — a loira confirmou.
— Então, acho que vou — respondi.
— Eu vou — confirmou o coronel. — Já tem um tempo que não vejo Marina.
— Eu também vou — Eduardo confirmou.
— Perfeito — o homem sorriu levando uma taça de vinho branco até a boca.
O tio não economizou esforços para me agradar, então, apesar de ainda não ter totalmente a minha confiança, decidi dar o benefício da dúvida.
— Ainda tem aquela árvore que fizemos balanço tio? — perguntou Caio.
— Não acha que está grandinho para isso? — Suelen sorriu balançando a cabeça.
— Era uma corda que usávamos para balançar antes de pular no rio — ele explicou.
— Tem a piscina, mas esses dois se juntavam e tocavam o terror com meu filho Evandro. Era cada susto, essa molecada sumia no meio daquela mata.
— Fui brincar de Tarzan e quebrei o braço — Caio balançou a cabeça aos risos. — Sei lá como aquele cipó arrebentou comigo.
— Caramba, eu tinha me esquecido disso — afirmou Eduardo.
O olhar tristonho do coronel me levou até o Colorado, quando desabafou comigo sobre não ter brincado com seus filhos. O tio fez literalmente o papel de pai.
A meia-noite, cantamos parabéns para o aniversariante em um clima de alegria, nos reunimos em frente à árvore de natal para as fotos e então iniciamos a troca de presentes, regada a muitos risos e brincadeiras. Um clima que, com toda a certeza do mundo, marcou a minha vida para sempre.
— O maior presente que ganhei, foi poder passar essa data com a família reunida — disse o coronel com lágrimas nos olhos. — Que orgulho saber que estão encaminhados.
— Daqui a pouco ele chora — Caio sorriu abraçando o pai.
— Em dez anos, esse foi nosso primeiro natal reunidos — disse Eduardo, também emocionado.
— Ele queria dar esse presente a vocês — falei com a voz embargada. — Mas eu fiz questão de fazer isso.
Me aproximei do coronel e lhe entreguei o teste de gravidez, em seguida repeti o gesto com meu pai.
— Filha? — meu pai me olhou surpreso.
— Isso é sério? — o coronel não sabia se olhava para o objeto em sua mão, ou para nós.
— Sim, vovô — Caio confirmou.
— Nem pense em pedir para ser padrinho! — Michael apontou para Eduardo, que nos olhava inexpressivo. — Essa vaga é minha.
— Pai, fala alguma coisa — pedi aflita.
— Muito obrigado por me permitir fazer parte de sua vida, filha amada — disse ele me abraçando com a voz embargada. — Eu te amo muito, Ana, sinto muito orgulho da mulher que se tornou.
— Que bom ouvir isso, pai — falei emocionada.
— Eu abençoo essa família que está formando, e desejo que esse bebezinho venha com muita saúde — disse ele depositando um beijo em minha testa. — A tempestade passou, é hora de ser feliz.
— Poxa, velho — Michael se aproximou. — Desse jeito até eu vou chorar.
— Tenho muito orgulho de você, filho. Assumiu o papel de homem da casa muito cedo, também te devo um pedido de perdão. Você foi honrado e não fugiu as suas responsabilidades, olha a moça que criou, foi mais pai do que eu.
— Faria tudo outra vez, se fosse necessário — Michael colocou a mão em minha barriga. — Eu deixo esse chorão ser teu padrinho, mas serei seu tio preferido.
— Mas olha, corrompendo a criança. Eu sou o tio mais bonito, viu bebê — Eduardo finalmente se manifestou.
Agora os tios se provocavam nos causando risos.
— Eu queria dar os parabéns a vocês dois, e dizer que... — o coronel respirou profundamente voltando seu olhar para cima, na tentativa de abafar o choro, que visivelmente estava preso na garganta. — Desculpa, gente, eu ando muito emotivo. Só quem presenciou sua família se afundando, sabe a importância de um momento assim. Seja bem-vinda, minha nora, esse bebezinho será recebido com muito amor.
— As tempestades passaram, meu irmão — tio Geraldo passou a mão pelo seu ombro. — Me lembro de nós dois sentados ao pé daquela escada, e você todo animado me contando que seria pai de gêmeos. Olha que família linda, isso é um presente dos céus.
— Pois eu proponho um brinde — Caio saiu apressado em direção à cozinha. — A mamãe brinda com água — gritou de longe, nos fazendo rir de sua afobação.
Observei aquela cena com um sorriso bobo no rosto. Acolhimento, carinho, proteção, eu penso que todas as pessoas deveriam experimentar desse sentimento ao menos uma vez na vida. Poder olhar ao seu redor, e se sentir amado, ter um momento especial a ser lembrado, e esse brinde, com certeza foi um dos que guardei com muito carinho.
O clima harmônico era contagiante, mas ainda tinha um sentimento guardado, que volta e meia vinha a tona, me fazendo ficar pensativa. Eu tentei não pensar nisso por muito tempo, mas nem tudo a gente consegue passar por cima, e agora a angústia falou mais alto.
— Está tudo bem? — perguntou o coronel ao se deparar comigo, encostada ao balcão da cozinha, olhando para o nada.
— Sim, eu só estava pensado um pouco — sorri ao observar seu semblante preocupado. Era bom se sentir querida.
— Se essa ruguinha de preocupação, for pela gravidez, fique tranquila, terá todo apoio necessário para que tudo ocorra bem.
— Quanto a isso, não tenho dúvidas.
— Me esqueci o que vim fazer aqui dentro — ele sorriu. — Estou ficando velho mesmo.
— Coronel — o chamei quando ia rumo a porta.
— Oi — ele fez uma parada brusca, e voltou sua atenção para mim.
— Posso te dar um abraço?
Ele me olhou confuso, sorriu, e veio em minha direção de braços abertos.
— Você não está legal, estou sentindo isso — murmurou quando me aconcheguei em seu peito.
— Eu queria te agradecer por tudo o que fez por mim. Se soubesse como cada gesto foi importante — comentei ao me afastar.
— Eu nunca fui bom em demonstrar afeto, mas com você aprendi que abraços não dói, que dizer eu te amo, não arranca pedaço.
Seus olhos azuis brilharam ao encontrar os meus.
— Eu queria fazer um desabafo de um sentimento, que venho carregando há um tempo — comentei.
— Foi algo que eu fiz?
— Na verdade, sim.
— Se te fiz qualquer coisa que possar ter...
— Não — segurei em seu braço. — Não foi nada de ruim. Eu estava refletindo sobre tudo o que se passa aqui dentro do meu coração, não sei se é a data festiva, mas muita coisa está acontecendo aqui dentro.
— Não estou entendendo, Ana.
— Quando criança, eu brincava com meus amigos, e toda vez que surgia a palavra pai, mencionava o Michael.
— É natural, ele desempenhava esse papel em sua vida.
— Sim, mas meus amigos sempre diziam que ele não era meu pai, e sim meu irmão, e eu ficava triste. Cresci com a ilusão de que um dia meu pai viria me ver, de que sentiria orgulho de mim, e que aquele vazio seria preenchido. Criei expectativas demais.
— Mas seu pai está aqui, ele demorou para quebrar essa barreira, mas quebrou.
— Sabe coronel, eu estava muito abalada naquele hospital, qualquer pessoa que me visitasse e desse atenção, seria a melhor pessoa do mundo para mim. Eu amo meu pai, e desejo do fundo do coração que seja feliz.
— Então o que está te deixando assim?
— Meu pai formou meu irmão, ajudou financeiramente para que não passássemos dificuldades, e isso foi muito importante, mas ser pai, é bem mais do que isso.
— Não posso discordar — ele me olhou compassivo.
— Quando acordei naquele hospital, o coronel entrou em minha vida. Todos os dias me visitava, me dava forças para melhorar e me acompanhou em cada batalha vencida. Quando fiz a cirurgia esteve comigo, me acolheu em sua casa onde me cuidou com muito carinho.
— Fiz de coração, e não me arrependo.
— Eu me lembro das noites em que acordava depois de um pesadelo, e o senhor me acolhia fazendo com que acalmasse. Quando me sentia perdida, foi paciente e me deu valiosos conselhos, que sem dúvida levarei para a vida. Me treinou para que soubesse me defender e não ser mais tão vulnerável como antes. Minhas primeiras palavras escritas a mão, foi o senhor que me ensinou, e quando me senti sozinha, me acolheu em seu abraço.
— Eu não fazia ideia de que isso era tão importante, Ana, apenas fiz porque senti que era o certo. Foi de coração.
— Eu sei, e foram essas atitudes que me fizeram ver que meu pai, ainda é um estranho para mim. Ele nunca tomou banho de chuva comigo, nem ficou horas me contando sua história, eu sequer sei o que fez durante o tempo em que foi ausente em minha vida.
— Se ele te ouvir, ficará magoado.
— Eu nunca direi isso a ele — respirei profundamente ao dizer aquilo. — Não preciso desprezar ninguém, eu acredito que a vida cobra todas as pendências. Eu o amo como amo meus amigos, pessoas que são próximas a mim, mas se sumisse outra vez, não faria diferença.
— Não fale assim, Ana.
— Infelizmente, ele me ensinou a conviver com sua ausência. Só que você, coronel, você, sim, me mostrou o amor de um pai, me fez enxergar que tive isso a vida toda. Meu irmão fez tudo isso por mim, ele me amou do jeito que eu era, e me fez ser quem eu sou.
— Ana — ele disse me puxando para um abraço. — Você é uma pessoa iluminada. — Não cultive mágoas, seu pai está tentando.
— Eu sei, e reconheço sua importância em minha vida, mas nada que ele possa fazer, apagará anos de ausência, e sentimento de abandono. Eu o perdoei, não sei guardar raiva de ninguém, mas, na escala de importância em minha vida, ele não é uma prioridade, assim como eu nunca fui na dele.
Mal terminei meu o desabafo e percebi que meu pai nos ouvia parado naquela porta com lágrimas nos olhos.
— Não posso sequer me ofender por ouvir isso — ele disse se aproximando.
— Você me fez muita falta pai, foram dezenove anos sem um único telefonema, uma vida inteira de ausência me cobrando por ter sido a responsável pelo Michael não ter um pai presente. Estas pessoas me amaram pelo simples fato de eu existir, e para você, eu precisei correr risco de morte para...
— Me perdoa — ele se ajoelhou a minha frente. — Eu sei que nada que faça agora, apagará o que passou. Só te peço que me dê a oportunidade de participar de sua vida e me redimir de verdade. Fui um monstro desalmado que se revoltou com o mundo e me punia por não conseguir ser para a minha família o alicerce que deveria ter sido. Esse fardo eu carrego com muita dor, e apesar de não poder consertar o passado, eu quero muito fazer um futuro diferente. Se me permitir, é claro.
— Se existe algo a ser perdoado, não é para mim que precisa pedir. Eu te conheci agora, e serão suas ações de hoje em diante que importarão em minha vida. O que passou, infelizmente não tem volta, e eu não tenho o poder de cobrar os erros de ninguém.
Não planejei aquele desabafo, mas poder botar para fora aquelas palavras em voz alta foi como tirar um peso enorme de meus ombros. Escolhi perdoar meu pai, mas não significa que esqueci todos os anos de ausência e culpa que vivi. Agora a pendência dele não era mais comigo.
Foi uma noite incrível, rimos bastante, tiramos fotos, dançamos no meio da sala em um clima de harmonia que encerrou o meu natal com chave de ouro. Os avôs babões não paravam de falar no bebê, os tios disputavam para ver quem ia mimar mais, as tias para ver se a princesinha seria bailarina, ou enfermeira. Até o tio Geraldo, que tanto julguei, já fazia planos de levar o garoto para uma pescaria.
E nem sabíamos se seria, menino, ou menina.
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