Capítulo 39 Lembranças
Depois daquela noite de surpresas desagradáveis, passamos a nos reunir com frequência, e com isso, criamos um vínculo muito forte entre amigos. O Beto pediu desculpas a Suelen, e prometeu não mais a incomodar. É óbvio que não acreditamos naquela promessa, mas não tivemos muitas escolhas, já que a decisão de aceitar, ou não, aquele pedido, era única e exclusivamente dela.
— Obrigado pela carona — disse Suelen se ajeitando no banco de trás do carro do Eduardo, enquanto eu me ajeitava no da frente, já que foi o que me sobrou quando elas se adiantaram.
Era dia de ajuste no figurino da apresentação, e havíamos acabado de sair da costureira quando começou a chover. Nos escondemos embaixo de um toldo a frente de um comércio fechado enquanto Cibele tentava chamar um carro de aplicativo, porém, Eduardo passou por nós, e acabou nos dando uma carona.
— Se fosse outro, passava reto para não ter que molhar o banco do carro — comentou Luíza.
— Jamais ligaria para isso — Edu respondeu saindo com o veículo.
No rádio, tocava uma seleção de músicas rock pop nacional das antigas, ele dirigia pensativo, eu avulsa ao lado, e as meninas tagarelando entre elas...
— Eu amei o modelo da saia — comentou Cibele. — A do ano passado mal mostrava as pernas.
— Vocês ainda têm o que mostrar, eu pareço uma garça saltitando no banhado — protestou Luíza nos fazendo rir.
— Eu preciso de um regime — murmurei ao me lembrar de que o top ficou apertado.
— Regime para quê? — Eduardo espiou discretamente minhas pernas nuas naquela saia jeans curta, e balançou a cabeça.
Antes não ligava para a aparência, isso não fazia diferença, afinal, eu não tinha com o que comparar. Não conhecia padrões de beleza impostos pela sociedade, e vivia bem com isso, mas agora tudo mudou. Eu estava vaidosa, queria parecer bem aos olhos das pessoas, e receber o olhar do Edu daquela forma, me fez pensar em como as coisas eram diferentes agora, realmente o estímulo visual é tudo.
— Para caber nas roupas — justifiquei ganhando outra olhada indiscreta.
Ele era tão bonito, que até a maneira como dirigia relaxado naquele banco chamava a atenção. Como pode ser exatamente igual ao irmão, e ainda assim, ser diferente? Olhei de canto para suas pernas, que dentro daquela calça justa, ficaram ainda mais atraentes.
Sim, eu sei que não deveria fazer isso, mas foi inevitável, meus olhos pareciam ter vida própria. Mordi levemente os lábios, subindo mais um pouco, quando parou no sinal fechado. Ele ajeitou sua postura quando meus olhos, que agora estavam na algema presa em seu cinto, foram para seu tórax, que exibia uma camiseta preta com o símbolo da polícia civil e o distintivo de pescoço, que me causou um calor repentino.
— Pensei que preferisse os bombeiros — sorriu saindo com o carro, enquanto eu procurava um buraco para me esconder.
Lembranças confusas invadiram minha mente, não discernia se eram reais, nem se era ele de fato. O problema é que para mim, Caio e Eduardo pareciam ser um só.
— Tomara que meus pais estejam em casa — disse Luíza quando ele estacionou na frente do prédio.
— Não querem esperar parar a chuva? — Edu perguntou para ninguém em especial, porque as meninas já estavam do lado de fora correndo rumo a entrada do edifício.
— Obrigado Edu! — Suelen acenou correndo para junto das meninas, que não me esperaram.
— Só um pouquinho — disse ele segurando meu braço. — Almoça comigo amanhã?
— Eu? — perguntei sentindo o rosto esquentar.
— Eu queria falar contigo.
— Tudo bem, mas tenho aula.
— Eu te busco.
— Combinado — desci do carro apressada.
Quando cheguei na portaria, olhei para trás, mas só vi o vulto do carro indo embora. Será que é só comigo que vem aquela vontade de ficar junto só mais um pouquinho?
~♥~
Eu e o Edu, apesar de todos os contratempos, estávamos nos aproximando aos poucos, mas me sentia mal por não contar o quão íntimos, eu e o Caio nos tornamos no Colorado. Sabia que a verdade o machucaria, mas seria burrice tapar o sol com a peneira, era questão de tempo até que ele descobrisse. Por conta disso, decidi que aquele almoço seria a oportunidade perfeita para conversarmos com calma, e torci para que não terminasse em uma briga.
— Eu vou passar no pet shop entregar um notebook que formatei, e já vamos para casa — disse ele estacionando em uma rua movimentada.
— Posso ir contigo, eu adoro ver os peixinhos — falei animada.
— Claro — concordou com um sorriso. — Só não vai querer voltar para casa com um frango embaixo do braço, como fez no seu aniversário de doze anos.
— Misericórdia, o Michael te contou isso?
— Sim, e achei fofo — respondeu apertando meu queixo.
— Não era frango, era um pintinho. E nossa história de amor, durou apenas uma noite, eu rolei sobre ele enquanto dormia.
— Eu soube disso também, inclusive da sua crise de choro no funeral do bichinho — afirmou indo em direção à loja.
Enquanto Eduardo conversava com um rapaz ao lado do balcão, caminhei pela loja dividida entre olhar os aquários, os pássaros e as gaiolas do hamster, quando uma bola de pelos de cor acinzentada veio correndo em minha direção com uma bolinha azul na boca...
— Frederico, volta aqui! — disse a moça do pet correndo atrás de um filhote de Lhasa apso, que pulava batendo alegremente o brinquedo em minha perna.
— Oi, nenê, você me trouxe um presente? — perguntei já com o cachorrinho no colo.
— Ele é terrível, fugiu do banho, você acredita? — ela sorriu com as mãos na cintura.
— Frederico, gostei do seu nome — falei, recebendo um ataque de fofura em forma de lambidas que me causaram cócegas.
— Ele gostou de você — disse o rapaz se aproximando com o Edu.
— Eu também gostei dele — respondi acariciando seu pelo macio, enquanto ele tentava morder a minha mão.
— A dona dele se mudou para outra cidade, e acabou o deixando aqui para doação — disse o rapaz.
— Sério? Que pena, eu moro em apartamento, não teria espaço para ele brincar, senão levava comigo — comentei.
— Na minha casa tem espaço de sobra — Eduardo me olhou sugestivo.
— Está falando sério? — perguntei esperançosa.
— Topa adotar o Frederico comigo?
— Eu?
— Sim, mas vai ter que fazer visitas frequentes, e me ajudar a cuidar, porque ele precisa de muito carinho, e atenção.
— Ah, eu quero! — pulei em seus braços.
— Então combinado, vamos escolher a caminha, ração e acessórios enquanto ele toma banho.
— Seremos pais! — Sorri eufórica escolhendo brinquedos.
Eduardo me olhou por um instante, logo percebi que me animei demais, então tentei consertar.
— Tios?
— Vai querer que entrega tudo com o Frederico depois do banho? — perguntou o rapaz, me salvando daquela saia justa.
— Pode ser — concordou Eduardo.
— Ok, em mais ou menos uma hora, ele já estará em sua nova casa. Aqui está a carteirinha de vacina, está tudo certo.
— Ah, estou tão feliz! — abracei o Eduardo, que prontamente correspondeu.
— É bom te ver sorrindo — respondeu beijando o alto da minha cabeça.
— Meu namorado nunca me deu um cachorro — disse uma cliente idosa, que até então, nem havia percebido sua presença.
— Ah, não... não somos namorados — comentei atrapalhada.
— Não deixe de aproveitar essa oportunidade, porque o tempo passa. Eu tenho sessenta anos, e namoro até hoje — a senhora sorriu passando por nós. — Fica bobeando, que outra vem, e leva embora.
— Animada, ela — desviei o olhar desconcertada.
Saímos da loja cheios de planos para a criação do nosso filhote, que incluíam passeios no parque, banho toda semana e mais uma infinidade de coisas, quando uma freada brusca a uma quadra do meu prédio me fez até esquecer do assunto...
— Suelen! — um uníssono ecoou pelo carro ao avistarmos a loira encostada na parede de um prédio, cabisbaixa.
Tirei o cinto, e desci do carro apressada, sendo seguida pelo Eduardo, que se mostrou tão preocupado quanto eu.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei ao me aproximar.
— Não, eu estou bem — respondeu estática abraçando o próprio corpo.
— Somos seus amigos, pode falar — insisti ao notar um hematoma em seu braço direito, que lembrava marcas de dedos.
— Eu estou bem, só tive uma queda de pressão — disse ela desviando o olhar.
— Eu não sabia que queda de pressão fazia isso! — apontei para seu braço.
— Ana... — Eduardo colocou a mão em meu ombro, e fez um sinal de negativo com a cabeça. — Suelen, estamos indo para minha casa, você aceita almoçar conosco?
— Eu não sei se...
— Olha, não vou insistir, mas penso que às vezes, respirar um ar diferente e sair da rotina é uma ótima opção para aliviar a tensão — disse ele com um olhar preocupado.
— Você está com uma carinha muito triste — comentei. — Vem conosco, vai ser bom distrair a cabeça.
— Tudo bem — murmurou ela, com um olhar perdido.
O clima eufórico de antes, deu lugar a um silêncio que durou o caminho todo que, aliás, era a primeira vez que eu percorria depois da cirurgia, assim como era a primeira vez que passava por aquele portão. Era uma casa grande e impecavelmente arrumada. Na entrada havia um jardim de rosas de cores variadas, e um gramado bem cuidado, separado por uma calçada de pedras que levava, tanto para o corredor lateral, quanto para a porta da frente.
Assim que adentramos ao primeiro cômodo, avistei um jogo de sofá modelo colonial com mesa de centro sobre um tapete de cor neutra em tom de bege claro, que muito me lembrou a casa do Colorado. Principalmente pelas cortinas de renda que enfeitavam a janela, e o aparador com espelho de moldura entalhada, assim como os demais móveis ali presentes.
— Fiquem à vontade — disse Eduardo depositando o molho de chaves sobre o balcão.
— Já deu para perceber que gostam de espaço — comentei ao passarmos pela sala de estar que era grande o suficiente para dar uma festa.
— O sonho dos meus pais era ter essa casa cheia de netos — respondeu com um sorriso tímido.
— Então deveriam ter tido mais filhos — dei de ombros. — Só vocês dois, não dão conta de encher essa casa.
— Minha mãe perdeu o outro bebê, era uma menina — disse Eduardo. — Na ocasião teve uma forte hemorragia e precisou retirar o útero. Por isso não tiveram mais filhos.
— Eu sinto muito — Suelen quebrou finalmente o silêncio. — Já perdi um bebê, e sei como dói.
Eu e o Eduardo trocamos olhares, e tenho certeza de que pensamos a mesma coisa.
— Existem momentos na vida em que nos sentimos perdidos, com medo. Eu mesmo já me senti assim várias vezes, e foi horrível — Eduardo a acolheu em um abraço. — Só que quando aceitamos ajuda, quando nos permitimos dividir as angústias com pessoas de confiança, o fardo se torna mais leve.
— Obrigado — respondeu ela correspondendo o seu abraço.
— Nem tudo está ao meu alcance resolver, mas te dou a minha palavra, que farei o que puder para te ajudar no que for preciso.
Ao ver aquele gesto me surpreendi, o Eduardo que eu tinha em mente depois de tudo o que ouvi, era reservado e não curtia muito contato físico com pessoas ao qual não tivesse intimidade. Suelen, que estava mal, recebeu aquele abraço e se acomodou em seu peito como uma criança desprotegida.
— Vocês são pessoas muito boas — murmurou a garota me puxando para aquele abraço. — Obrigado por estarem em minha vida.
Depois daquele momento fofo, fomos até a cozinha que como o restante dos cômodos por onde passamos, estava impecavelmente limpa, e organizada.
— Está exatamente como da última vez que vi — comentei.
— Boba — Eduardo sorriu. — Mas é verdade, não costumamos mudar as coisas de lugar.
Caminhei até a ilha no centro do cômodo, e observei o capricho com que tudo era organizado. Não me recordava de ter estado ali, mas confesso que o sentimento era bom, saudade de algo que não sabia o que era, mas que adoraria me lembrar.
— Boas recordações, não é? — ele se encostou ao meu lado.
— Eu acho que sim — murmurei ganhando um sorriso fofo como resposta.
— Vou apressar as coisas, senão nosso almoço vira jantar — disse ele, colocando um avental, antes de separar alguns temperos sobre a bancada.
— O Beto foi até a academia — disse Suelen esfregando a marca escura em seu braço.
— Ele te ameaçou? — perguntei.
— Ele é um homem bom, só se excede às vezes — respondeu apática.
— Sobre o que conversaram? — perguntou Eduardo.
— Ele quer que eu volte para casa. Disse que vai me deixar continuar dançando e competindo nos festivais.
— E o que você pretende fazer? — perguntei inquieta.
— Eu disse que não queria mais.
— Entregaram essa bola de pelo aqui no portão — avisou Caio se juntando a nós. — Já peguei para mim.
— Pegou coisa nenhuma, o Frederico é meu filho — falei tentando pegar o filhote de sua mão, que estava estendida para cima, de modo que não conseguia alcançar.
— Precisa de um banquinho? — Caio sorriu divertido.
— Não, só de unhas afiadas — falei ao beliscar sua cintura.
— Golpe baixo — se encolheu entregando o filhote para o Eduardo que fez o mesmo gesto.
— Ah, não, Edu, devolve meu filho! — corri atrás dele, que deu a volta na ilha aos risos.
— Se quiser vai ter que vir pegar!
— Não é justo, Caio, me ajuda! — reclamei aos pulos tentando alcançar o filhote.
— Chuta a canela dele — Caio sorriu cruzando os braços a minha frente.
— Abusado! — fiz um gesto obsceno.
— Cadê seus modos, moça? — perguntou aos risos.
Era bom poder presenciar aquele clima de harmonia, seria melhor ainda se fosse sempre assim, mas a cada minuto eu olhava para os irmãos e me sentia culpada. Não entendo o destino brincar assim com a vida das pessoas.
— Que fofinho — Suelen pegou o filhote no colo.
— Vai ficar mal-acostumado — comentei quando o Caio se aproximou com um biscoito canino em sua mão.
— Gostei da tatuagem — disse ele apontando para o braço de Suelen, antes de entregar o biscoito ao filhote. — Tem como passar o contato do profissional que fez? Eu gostaria de marcar um horário com ele.
— Ele disse...
— Ele disse que foi a última vez — completou Caio. — Sempre falam.
— Eu não sei o que fazer — disse ela, com os olhos marejados.
— Você vai comigo até a delegacia mais tarde, e nem pense em negar — Caio cruzou os braços a sua frente. — Ou é isso, ou meu punho encontrará o queixo dele, assim que surgir no meu campo de visão.
— Eu vou! — disse ela, o olhando assustada.
Eu e Eduardo nos entreolhamos, e ele balançou a cabeça de maneira discreta para que não me envolvesse.
— Um metro e oitenta e nove de pura agressividade — Eduardo deu tapinhas no ombro do irmão.
— Em dose dupla, só que eu sou mais gostoso — Caio piscou para o irmão, que respondeu com um gesto obsceno que nos fez rir.
— Olha o respeito! — Caio jogou uma rodela de tomate no Eduardo.
— Seu pai não te ensinou que não se deve brincar com a comida? — perguntou Eduardo, devolvendo o gesto com uma rodela de cebola.
— Tenho memória seletiva — Caio sorriu jogando a farinha de rosca que estava sobre o balcão em minha cabeça.
— Caio! — me limpei aos risos, mas não sem antes devolver o gesto.
— Menina malvada! — Caio gargalhou usando uma colher para fazer lançamento de manteiga, que ao tentar desviar, acabei acertando o Eduardo com a água, que estava prestes a jogar no irmão que correu para o outro lado.
— Olha só, ela me acertou, será que deixo isso barato? — perguntou Eduardo, passando a manteiga pelo meu cabelo.
— Ah, não, Edu, até você! — protestei pegando um ovo antes de um silêncio misterioso invadir a cozinha.
— Mas o que significa isso!
Aquela voz potente eu conhecia muito bem, e ao me virar, só precisei olhar para cima para visualizar o rosto de um coronel de quase dois metros de altura, carrancudo de braços cruzados, me observando.
— Oi, coronel, quanto tempo! — sorri escondendo as mãos para trás.
— Que bagunça é essa em minha cozinha? — perguntou ele.
— A casa caiu — murmurou Caio do outro lado do cômodo.
— Pois é — concordou Eduardo, enquanto eu era observada por olhos atentos.
— O que a mocinha tem aí atrás? — perguntou o coronel.
— Era só... um ovo — estendi a mão envergonhada, e ele confiscou prontamente a minha arma.
— Por que tem um ser vivo embaixo daquela mesa? — o coronel inclinou o corpo para o lado, com um semblante confuso.
— Estavam doando no pet shop, e eu adotei — disse Eduardo.
— Não sabia que pet shop doava mulheres, filho — respondeu, fazendo com que nossa atenção se voltasse para a tal mesa.
— Suelen! — um uníssono ecoou pela cozinha, quando avistamos a loira encolhida embaixo da mesa, com o filhote no colo.
— Oi — disse ela ficando corada. — Eu só estava fugindo da guerra de alimentos.
— Por falar em guerra de alimentos, estou vendo farinha, tomate, e outras coisas espalhadas, e sabe o que eu penso?
Um silêncio constrangedor invadiu o local...
— Você, Ana, sabe o que eu penso?
— Me desculpe pela bagunça, coronel, nós vamos limpar — respondi sentindo o sangue esquentar em meu rosto.
— Ah, com certeza! — disse ele quebrando o ovo em minha cabeça, causando risos nos demais.
— Que bom te ter de volta, meu velho — Caio abraçou o pai, enquanto eu tentava me limpar.
— Me desculpe, Ana, eu não resisti — disse o coronel me estendendo um guardanapo.
— Tudo bem, eu pensei que estava encrencada, quase tive uma crise de choro — respondi aliviada.
— E a moça, quem é?
— Essa é a Suelen, a professora de dança que te falei — explicou Caio.
— Seja bem-vinda, Suelen — o sorriso no rosto do coronel me deixou confusa. O que exatamente o Caio teria para falar com o pai sobre ela?
— Obrigado — respondeu tímida.
— Já percebi que se não botar ordem, esse almoço hoje não vai sair. Então, a Ana vai lá para cima tomar um banho, alguém lhe providenciará roupas limpas, deve ter alguma coisa que sirva. Os rapazes limpam a bagunça e a Suelen vai comigo até a cantina buscar o almoço.
— Banho? — um frio estranho percorreu minha espinha automaticamente quando me veio a certeza de que já havia feito isso naquela casa ao menos uma vez. Só não sabia se era apenas uma sensação ou lembrança.
— Eu? — Suelen nos olhou como se pedisse socorro.
— Sim, eu quero conhecer melhor a minha possível futura nora.
— Nora, eu? — os olhos azuis de Suelen se estalaram.
— Não é namorada de um dos rapazes?
— Não — Suelen respondeu ainda mais vermelha.
— Vai assustar a menina, velho — Eduardo balançou a cabeça aos risos.
— Me desculpe pela brincadeira, se quiser pode ficar aqui, eu busco o almoço — disse o coronel.
— Tudo bem, eu posso ir contigo — assentiu já com o rosto corado.
— Então o totó vem conosco — o coronel sorriu pegando o Frederico no colo.
— Vamos? — Edu caminhou ao meu lado. — Eu te arrumo algo para vestir.
Olhei para o Caio, que passava um pano molhado sobre a bancada da cozinha, e procurei decifrar a expressão em seu rosto, mas ele se manteve cabisbaixo, então acompanhei seu irmão torcendo para que aquilo não causasse um clima ruim entre nós.
— Quebrando regras? — perguntei ao me aproximar do lance de escadas.
— As regras nunca se aplicaram a você — disse ele fazendo um sinal para que eu prosseguisse.
Ao chegar no andar de cima, me deparei com um corredor comprido, tendo duas portas de cada lado, e uma sacada que de longe me pareceu uma área de descanso. Caminhamos até uma das portas que ele abriu, revelando um quarto amplo, com uma cama de casal de tamanho especial, um roupeiro espelhado que ocupava uma boa parte da parede ao lado de uma porta fechada, que depois descobri ser o banheiro. E na outra parede, uma coleção de instrumentos posicionados que me trouxeram a mesma sensação familiar que já vinha sentido, só que essa era mais intensa.
— O seu quarto — afirmei.
— Só vou pegar uma toalha limpa, você vai se banhar no quarto de hóspedes, acho que se sentirá mais a vontade — murmurou abrindo a porta do armário.
— Obrigado — falei tímida, observando seus movimentos.
Saímos daquele quarto e entramos em um menor, ali havia uma cama de solteiro, um roupeiro também espelhado e uma cômoda. Ele tinha razão, me senti mais a vontade, e de certa forma aliviada por ser um local neutro.
— Você pode se banhar aqui — afirmou abrindo a porta do banheiro. — Tem xampu e condicionador, e... pente, isso, tem pente, e sabonete novo na gaveta. Você usa barra, ou líquido?
— Edu, está tudo bem, é só um banho — eu ri ao perceber seu nervosismo.
— Me desculpe, é que eu... — ele coçou a nuca atrapalhado. — Vou providenciar algo para vestir.
Era estranho estar ali com pai e filhos no mesmo ambiente, o clima estava descontraído, mas eu sabia que não duraria muito, já que o coronel estava em casa e a tão temida conversa aconteceria, mais cedo, ou mais tarde. Não escolhi estar em meio àquela crise familiar, eu sequer me lembrava de como me meti naquela confusão e agora muito apegada aos três, temia ter que me afastar porque isso seria muito doloroso. Eu só queria que as coisas se resolvessem e todos convivêssemos em paz, só não sabia se isso era possível.
Logo após o banho, já livre do cheiro de ovo no cabelo que agora tinha um cheiro muito bom. Eu me vesti com a camiseta e bermuda que Eduardo me arrumou e organizei o banheiro antes de caminhar pelo corredor, na intenção de me juntar a eles no andar de baixo.
Passei em frente a porta do Eduardo, e fiz uma parada brusca quando o avistei de costas mexendo em seu armário. Ele havia tomado banho, estava de calça jeans escura e sem camisa. Seu cabelo bagunçado estava molhado, algumas gotas de água marcavam suas costas, não consegui desviar o olhar.
Como pode ser tão lindo, tão idêntico ao irmão e, ao mesmo tempo, ter sua individualidade? Eu o olhava confusa, meu coração batia mais forte sempre que havia uma aproximação, mas, ao mesmo tempo, não me recordava do nosso passado, juntos. Era estranho me sentir assim, um vazio como se faltasse uma parte importante de mim.
O Caio disse que eu tinha que descobrir quem era o dono do meu coração, mas eu simplesmente não sabia se realmente havia um dono, só sabia o que sentia quando estava com cada um. A imagem do Edu me representava um amor tranquilo, calmo como aqueles de romances clichê do tipo que o final era previsível, mas ainda assim, satisfatório. Com o Caio era diferente, era um turbilhão de coisas ao mesmo tempo, pele, emoção, ele era o furacão da minha vida e isso ninguém mudaria, ou seja, eu estava perdida.
— Ana? — Edu sorriu ao me ver.
— Vai trabalhar? — perguntei ao perceber que a camiseta com o distintivo estava sobre a cama ao lado de uma algema e sua arma.
— Me ligaram, mas vai ser rápido, talvez até de tempo de almoçar antes de ir.
— Que homem ocupado — murmurei alcançando a arma.
O olhar tranquilo do Eduardo acompanhou meu gesto enquanto analisava atentamente aquele objeto, não me lembrava de já ter pegado uma.
— Está carregada — avisou.
— Não pretendo entrar para as estatísticas de disparo acidental — devolvi o objetivo no lugar. — O que foi? — perguntei ao perceber o brilho das lágrimas brotando em seus olhos.
— Da última vez que esteve aqui, você se sentou exatamente ali, toquei algumas músicas, ainda me lembro de como sorria — Eduardo respirou profundamente. — Eu te olhava tentando controlar a vontade que sentia de te beijar.
— Mas você não era comprometido?
— Era, e foi por isso que não me aproximei como queria — afirmou, fechando a porta do armário, antes de me encarar novamente. — Eu te admirei desde o momento em que te vi, você era uma mistura de fragilidade e inocência que me encantava. Sinto muito por não ter te protegido mais. Se pudesse voltar no tempo.
— Tudo bem, Edu — falei apertando sua mão. — As coisas acontecem independentemente de nossas escolhas. Eu não me lembro de muita coisa, na verdade, não me lembro de quase nada do que vivi nos últimos tempos, mas sei que muito de minha mudança aconteceu devido a isso. A vida me deu uma segunda chance e ainda me permitiu voltar em uma nova versão, acho que sai no lucro — sorri, me encostando na parede.
— Não se lembra de nada do que vivemos? — ele se aproximou.
— Não preciso me lembrar para saber que foi especial — murmurei quando parou a minha frente.
— Eu sei que ficou próxima do Caio na América, conviveram juntos, é natural que se apeguem assim. Também percebi que ele nutre algum sentimento por você, e...
— Sim, nós nos aproximamos, mas não foi planejado.
— Tudo bem, já passou. Somos todos adultos e podemos lidar com isso.
— Está falando sério?
— Já passamos por muita coisa, Ana, eu só quero ficar bem contigo.
— Não sei se estou entendendo.
— Não sei porque a vida me castigou dessa forma fazendo com que me esquecesse — ele se aproximou um pouco mais. — Eu preciso, Ana, não me negue a chance de lutar pelo amor, que eu sei, que ainda está aqui dentro em algum lugar — pediu colocando sua mão em meu peito na altura do coração e encostou sua testa na minha.
— Eu não quero ter que me afastar de nenhum de vocês — falei com lágrimas nos olhos.
— Então não se afaste.
A distância pequena que nos separava, deixou de existir quando fui puxada pela cintura e beijada de uma maneira tão intensa, que me perdi quando uma corrente elétrica percorreu cada centímetro do meu corpo. Uma de suas mãos quentes subiu pelas minhas costas até a nuca, aonde seus dedos se entrelaçaram em meu cabelo em um aperto firme que me fez engolir em seco minha própria respiração.
— O pai... desculpa — disse o Caio, nos olhando surpreso. — O almoço está na mesa.
— Droga — levei às mãos até a cabeça.
— Tudo bem, vá lá falar com ele.
Não pensei duas vezes e corri o mais rápido que pude o alcançando no meio da escada.
— Caio, espera!
— Eu não quero falar agora — ele sequer conseguiu me olhar.
— Me desculpa, não é nada disso que está...
— Pensando? — agora ele se virou com uma expressão de tristeza. — Eu sabia que isso poderia acontecer, só preciso organizar meus pensamentos.
— Caio... — murmurei tentando segurar o choro.
— Eu sabia que poderiam se aproximar, sabia que poderiam se entender e paguei o preço. Não se desculpe, nessa história não há culpados, a vida nem sempre é do jeito que queremos.
— Mas foi só...
— Um beijo? Eu vi como olha para ele, não quero forçar a barra, Ana. É sério, se perceber que o ama, não deixe de viver esse amor. Não por minha causa.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou o coronel se aproximando com Suelen.
— Acho melhor almoçarmos, a comida vai esfriar — Caio seguiu rumo a sala de jantar, deixando um rastro de incerteza no ar.
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