Capítulo 36 Zerando as contas

Retornei ao apartamento bastante animada, liguei para o Michael avisando, e em seguida, vasculhei o guarda-roupa em busca de algo para vestir. Tomei um banho demorado, lavei e sequei o cabelo, optando por um rabo de cavalo. Em seguida, coloquei um short jeans, um palmo e meio acima do joelho, uma blusa de alças finas e tênis. 

Não fazia ideia de como me maquiar, então apenas passei um batom discreto e lápis de olho, melhor do que nada. O Caio chegou quarenta minutos depois e só me mandou uma mensagem para ir ao seu encontro. Não nego, fiquei frustrada por não querer subir, mas respeitei sua decisão.

— Está linda como sempre — disse ele me entregando o capacete.

— Você também — comentei ao subir na garupa de sua moto.

Era a primeira vez que ia em um Shopping depois da cirurgia, e confesso que foi uma experiência muito diferente. Lugar extremamente lotado, pessoas de diversas etnias misturadas em um complexo gigantesco. Famílias inteiras, casais de namorados, escada subindo e descendo, era como estar em uma realidade paralela que por um instante me deixou atordoada. Escolhemos um romance meloso, como Caio descreveu ainda na fila, mas confesso que me surpreendi com o enredo que acabou me fazendo chorar no final.

— Chorona — Caio sorriu caminhando ao meu lado quando deixamos o cinema.

— Eu sempre torço pelo cara errado. E não foi justo o amigo dele morrer, ele era bonzinho e merecia um final feliz — comentei.

— A vida nem sempre é justa, Ana — respondeu ao passarmos pela sala de jogos do shopping.

— Por que está me olhando desse jeito? — perguntei, quando parou a minha frente com um sorriso suspeito.

— Vem comigo! — Caio me arrastou pela mão.

— Ficou maluco? Os seguranças vão nos jogar para fora! — eu ri ao invadirmos a piscina de bolinhas, onde havia várias crianças brincando.

— Cuidado para não perder a bolsa — Caio avisou antes de se jogar comigo, fazendo com que as bolinhas nos encobrissem por completo.

— Isso foi muito sem noção — comentei iniciando uma guerra de bolinhas, que as crianças aderiram chamando mais atenção do que o necessário.

— Meninos contra meninas! — gritou um garotinho atirando uma bola em mim.

— Fogo no tio! — gritou a outra garotinha jogando bolinha no Caio, que revidou.

— Os seguranças! — apontei para o corredor adiante.

— Fogo nos homens de preto! — Caio incentivou as crianças, que prontamente atenderam.

— Corre tio! — um garoto nos deu cobertura enquanto o loiro me levava pela mão.

— Não quero ser presa por vandalismo — falei aos risos, enquanto corríamos de mãos dadas pelos corredores do shopping rumo ao estacionamento.

— Eu tinha em mente alugar um espaço para realizar essa sua vontade, mas com adrenalina é bem melhor — Caio balançou a cabeça ofegante, após descermos a escada rolante ao contrário, tentando fugir dos seguranças que acabaram desistindo.

— Você é mais maluco do que eu pensava — comentei ainda sem acreditar no que acabamos de fazer.

— Menos dois itens na lista — sorriu me entregando o capacete.

— Da próxima vez, nada de estripulias, quem gosta de desafiar o perigo é você, não eu.

— Negue o quanto quiser, fizemos um par perfeito, e a noite está apenas começando — acelerou eufórico, rampa acima.

~♥~

Rodamos alguns minutos por uma rua repleta de restaurantes e bares movimentados, até que, por fim, Caio entrou no estacionamento de um bar, onde havia mesas, tanto na área externa como na interna. Seguimos por um lance de escadas que nos levou a um ambiente bastante aconchegante, que apesar de cheio, não estava lotado como os outros que vi ali perto, o que particularmente achei ótimo, não estava com cabeça para muitas movimentações.

— Reservei uma mesa, quero que conheça uns amigos — disse ele me levando pela mão até o canto do palco. — Já devem estar chegando.

— Não estou muito sociável ultimamente — comentei me sentando ao seu lado.

— Chegaram — ele acenou para uma galera que se aproximava.

Ao olhar para a entrada, avistei um casal se aproximando de mãos dadas ao lado de um rapaz de cabelos grisalhos. A moça era clara, de cabelos lisos, compridos, sorriso tímido e andar delicado. O rapaz que a conduzia, era um jovem de pele escura e olhos claros que não passavam despercebidos, eu nunca tinha visto alguém com essas características, e fiquei encantada com tamanha beleza. Era alto, e forte, imaginei ser algum dos amigos policiais do Caio, mas depois descobri ser um mestre de capoeira.

— Boa noite — disse o jovem de cabelos grisalhos apertando a mão do Caio e repetindo o gesto comigo. — Muito prazer, Leone. Esse, sim, era policial.

— Ana Clara — ri com as bochechas coradas.

— Bianca — a moça se apresentou.

— Tudo bem, Ana? — perguntou o outro rapaz. — Meu nome é Rodrigo. Me desculpe o nervosismo, eu queria muito te encontrar.

— Eu? — perguntei, olhando para ele, que parecia verdadeiramente emocionado. Em seguida, voltei minha a tenção para o Caio, que piscou e inclinou levemente a cabeça, como se quisesse me tranquilizar, sinalizado que estava tudo certo.

— Sim, você.

— Não entendi — sorri confusa.

— Posso te dar um abraço?

Demorei alguns segundos para compreender o seu pedido. Ele me olhava com uma admiração que eu não sabia de onde vinha, mas, como ninguém reagiu negativamente, aceitei.

— Claro.

Percebemos que o abraço é sincero quando é dado com vontade, e assim aconteceu naquele momento. Ele me apertou em seu peito, sussurrando em meu ouvido um, "obrigado", que me deixou ainda mais confusa. O abraço demorou um tempo, e então, me soltou limpando o rosto com a mão. Eu não compreendi aquela atitude, mas confesso que fiquei igualmente emocionada.

— Quem é? — perguntei ao Caio enquanto nos sentávamos.

— Ele é irmão da Sheila — respondeu.

— Quem é Sheila? — sussurrei um pouco mais alto do que devia.

— Ela esteve no mesmo cativeiro que você — afirmou Caio apertando minha mão.

— Minha irmã era uma moça linda, cheia de planos, foi muito cruel o que fizeram com ela — disse o Rodrigo, com lágrimas nos olhos, e só então entendi o seu comportamento diante de mim.

— A moça que veio com a promessa de ser modelo — afirmei ao me lembrar de que Michael havia comentado comigo.

— Sim, e graças a você, descobrimos que ela também esteve naquele cativeiro. A luta chegou ao fim, finalmente pude levar seus restos mortais para minha cidade e dar uma despedida decente a ela. Você não tem ideia de como isso era importante para minha família... para mim. Foi como se um peso insustentável fosse tirado dos meus ombros. Hoje posso dormir em paz porque a justiça foi feita. Gratidão.

— Eu nem sei o que dizer — murmurei emocionada.

— Muito obrigado, Ana, por ter sido forte. Você foi guerreira, te garanto que muitas famílias desejariam dar o abraço que lhe dei agora.

— Eu só fui forte porque meu anjo da guarda estava comigo — apertei a mão do Caio, que retribuiu. — Ele sempre está lá para mim, e...

Não consegui terminar minha frase, a visão de um loiro alto, de olhos azuis se aproximando, me fez engolir minhas próprias palavras. Ele vestia uma calça preta e camisa de botão da mesma cor, dobrada na altura do cotovelo. Seu semblante era sério, mas o olhar profundo que me lançou, fez estranhamente meu coração disparar.

— Boa noite — disse ele, em um cumprimento geral.

— Voltou a tocar na noite, brother? — Leone cumprimentou o amigo, que trazia consigo algo que parecia ser um violão em uma capa preta.

— Tinha que ocupar a cabeça com alguma coisa — respondeu em um tom sério, porém suave.

— O gatinho me dá um autógrafo? — Rodrigo brincou cumprimentando o loiro, que fez uma careta.

— Boa noite, Bianca — Eduardo apertou a mão da moça, em seguida, acenou com a cabeça para mim e o Caio.

— Capricha no repertório que hoje encho a cara e ligo para aquela ingrata — disse Leone apontando para o amigo que já se afastava em direção ao palco.

— Você sabia? — perguntei discretamente ao Caio, que balançou a cabeça negando.

Era estranho ter os dois no mesmo ambiente, apesar de não me recordar de toda a nossa história, no meu íntimo, havia uma certeza de que tanto um como o outro era muito importante em minha vida. Caio olhava para o irmão com tristeza, eu sabia que dentro de si um turbilhão de sentimentos o atormentava. 

Eduardo mantinha uma postura fria, rígida, não sei explicar, talvez a decepção o consumisse, assim como o sentimento de culpa fazia o mesmo comigo naquele momento. Na mesa, os amigos conversavam, contavam histórias do passado, riam, eu até tentei disfarçar meu nervosismo, mas aquela situação, que já estava ruim, ficou ainda mais desconfortável quando Patrícia chegou após alguns minutos e se sentou em uma mesa próxima à nossa...

"Bela maneira de terminar a noite", pensei, ao ouvir o dedilhado do violão, que até o som era melancólico. Aquela situação toda, de modo geral, mexia muito comigo.

— Está tão desconfortável para mim, quanto para você — Caio sussurrou em meu ouvido, ao perceber minha agitação.

— Eles reataram o namoro? — perguntou Rodrigo.

— Na cabeça dela, nunca terminaram — Caio respondeu acenando para o garçom. — Essa garota o persegue em todos os lugares, não sei como ele aguenta.

— Ex-namoradas, não sei para que elas existem — Bianca revirou os olhos.

— Pelo visto, você também não tem boas experiências com isso — comentei.

— A dele quase nos separou, inclusive chegou a me ameaçar com uma arma — respondeu Bianca.

— Misericórdia! — falei espantada.

— Ela surtou, está em uma clínica psiquiátrica — completou Rodrigo. — Perdeu completamente a sanidade.

— Nossa, que horror — murmurei olhando na direção da Patrícia, me questionando se não estaria perto de algo assim.

— Ela não distingue mais realidade de fantasia. É tão fissurada nele, que passa a maioria do tempo conversando com um namorado imaginário — acrescentou Bianca. — Não reconhece ninguém, seu mundo se resume a isso, dá pena de ver.

— Eu pensei que ela tivesse melhorado — comentou Caio.

— O médico não deu muitas esperanças, disse que sua mente entrou em colapso — explicou Rodrigo, com um olhar preocupado. — Foi interditada e praticamente mora na clínica psiquiátrica, sempre sob efeito de medicamentos. É triste ver uma moça tão jovem, com uma vida inteira pela frente, terminar assim.

— Aquela ali não está longe disso — Caio apontou com o queixo para Patrícia, que olhava fixamente para o Eduardo.

— A história desses dois daria um livro — comentou Leone.

— Não acho que alguém se interessaria — Bianca sorriu tímida.

Aquela conversa me deixou mal, e a trilha sonora também não ajudou, pois, veio repleta de sentimentos. Eduardo cantava como se estivesse exteriorizando todas as suas emoções, não resisti, fugi para o banheiro.

"Eu não queria que fosse assim", repeti em minha mente ao fugir daquele ambiente.

Aquele foi o momento em que mais me senti culpada, perdida. Já imaginava que meu retorno seria difícil, mas não esperava que isso fosse causar tanto sofrimento. Eles até tentavam disfarçar, mas eu sabia, sentia, via em seus olhos o mal que estava causando, e isso também não estava me fazendo bem.

— Pai, afasta de mim esse cálice — murmurei abanando o rosto para impedir que aquela lágrima caísse.

— O cara que disse isso, também ensinou a não cobiçar o homem alheio — Patrícia se encostou ao meu lado, destilando seu veneno.

— Ele também pregou o amor ao próximo. Pena que nem todo mundo pratica — comentei secando o rosto com a ponta dos dedos enquanto aquela música triste ecoava ao nosso redor.

— Deveria ficar longe dessa família, você só trouxe coisas ruins.

— E você só trouxe coisas boas, não é?

— O Eduardo nunca bateu no irmão por minha causa, se realmente se importasse enxergaria o mal que faz a eles.

— Obrigada pelo conselho, prometo que vou anotar — respondi ríspida, esbarrando em seu corpo, que se chocou contra a parede quando deixei o cômodo.

Parei por um instante ao ouvir o dedilhado da música, Hero. O coração acelerou ao fixar o meu olhar naquele palco, eu sequer sabia a razão de me sentir tão balançada. E quando nossos olhares se encontraram, percebi que aquela música deveria ter um significado especial. Seu olhar, que antes era frio, agora exibia um brilho triste, e esse mesmo olhar me acompanhou até a mesa, onde outro par de olhos, cheios de preocupação, também me aguardavam.

— Está tudo bem? — perguntou Caio, quando me sentei.

— Tudo sob controle — respondi tentando disfarçar meu nervosismo.

— Quer ir embora?

— Está tudo bem — menti.

A companhia era agradável, a galera animada, até combinamos de visitá-los no Rio de Janeiro no próximo feriado. O problema é que sorria por fora, enquanto sofria por dentro com aquela situação complicada. Eu olhava para o Edu sentindo uma imensa vontade de abraçá-lo, mas, ao mesmo tempo, era a mão do Caio segurando a minha que me confortava. 

Foram duas horas de tortura emocional e olhares de provocação até que sua apresentação terminasse. E quando ele ajeitava suas coisas, uma voz indesejada ecoou pelo ambiente falando ao microfone, pegando, não somente o público de surpresa, mas o próprio músico em questão...

— Quero pedir a atenção de todos para um momento muito especial — disse ela com um sorriso. — Hoje faz quatro anos que conheci esse homem, que mudou a minha vida. Foram altos e baixos, mas nosso amor superou todos os obstáculos, então fugindo à regra; hoje sou eu quem se ajoelha à sua frente e te pede... Casa comigo?

Um frio terrível percorreu meu corpo, congelando meus pulmões enquanto apertava firme a mão de Caio, lutando para manter o controle de minhas emoções. O Eduardo olhava fixo para ela, como se buscasse uma resposta que talvez eu não gostaria de ouvir.

— Ele está emocionado, esse homem me ama — disse ela voltando sua atenção para nós. — Quero aproveitar para fazer um convite em primeira mão. Nada mais justo, que meu cunhado e sua namorada, sejam nosso primeiro casal de padrinhos, já que seremos todos uma família. Poderiam se aproximar, por favor?

— Para mim, já chega — me levantei e saí sem olhar para trás.

— Ana, espere! — Caio me alcançou, já do lado de fora.

— Nem pense em me chamar para voltar, porque se ela continuar me provocado não vou me segurar!

— Ao menos se despeça da galera, eles...

— Não pedi para montar esse circo, Patrícia. Queria chamar atenção, então aproveite! — Edu ergueu os braços para o alto parecendo perdido.

— Planejei uma noite incrível e você está estragando tudo por causa daquela imbecil! — gritou ela agarrando sua camisa.

— Quantas vezes vou ter que te dizer, que não existe nada entre nós, inferno! — Eduardo gritou a fastando.

— Essa piranha é um encosto em minha vida. Por que não morreu, essa praga!

— Dobre sua língua para falar dela, quem estragou tudo foi você com essa fixação doentia. A garota não te fez nada! Eu tento não falar dela, tento não pensar nela, e você não faz outra coisa a não ser me perseguir, e cobrar um sentimento que se pudesse teria... — ao notar nossa presença, Eduardo se calou, balançou a cabeça negativamente e saiu em direção ao estacionamento.

— Vamos embora — disse o Caio, caminhando ao meu lado.

— Tudo por sua culpa! — me virei rapidamente, mas não tão rápido a tempo de desviar do tapa que recebi, seguido de um empurrão que me mandou direto de costas ao chão.

— Parou! — Caio se colocou entre nós, enquanto o irmão também vinha apressado.

— Parou coisa nenhuma! — me levantei, e acertei um soco de direita, fazendo com que ela cambaleasse, e caísse sobre um arbusto que enfeitava a calçada.

— Vai perder a razão, Ana! — avisou Caio, enquanto tentava me segurar perante olhares curiosos da multidão que já se acumulava por ali, inclusive seus próprios amigos.

— Vagabunda! — gritou ela. — Acabo com sua raça!

— Me solta! — gritei para o loiro que me apertava decidido.

— Não!

Eu explodi de uma maneira que nunca havia acontecido antes, lhe dei uma joelhada certeira que o fez se encolher, e parti para cima da garota outra vez. Foi uma baixaria danada, era soco, chute, bofetada, gente incentivando. Os irmãos entraram no meio e nos separaram, sendo vaiados pela torcida organizada que se formou à nossa volta. Eu sequer consegui chorar, apenas respirava no mesmo ritmo que meu coração acelerado...

— Vagabunda! — gritou Patrícia.

— Faça alguma coisa! — gritou Caio para o irmão quando tentei partir para cima dela outra vez.

— Sossega! — Eduardo a chacoalhou pelos ombros. — Está querendo levar outra surra?

Os amigos fizeram uma barreira para que a briga não recomeçasse, durou apenas alguns minutos, mas foi o suficiente para fazer um estrago.

— Por que deixou as duas se atracarem? — Caio perguntou ao irmão, usando o próprio corpo para bloquear minha passagem.

— Cansei dessa merda, vou chamar a polícia! — disse Edu tirando a camiseta, e colocando sobre o rosto dela que sangrava demasiadamente.

— Somos a polícia, seu animal! — Caio me apertou em seu abraço ainda me imobilizando.

— Dane-se — Eduardo respondeu com frieza. — E você, fecha essa matraca, senão o próximo a te dar um esfrega, sou eu! — apontou para a loira enquanto se distanciava para falar ao telefone.

— Isso mesmo, chame a polícia, essa aborígene quebrou meu nariz! — choramingou tapando o rosto com a camiseta.

— Na próxima te quebro todinha para deixar de ser abusada. E pode chamar a polícia, quero mais é que se...

— Opa, se acalme, não precisamos baixar o nível! — Caio me segurou pela cintura, quando dei um passo à frente.

— Eu tenho nojo de você, sua estúpida!

— Você tem nojo de todo mundo que não se iguala ao seu perfil, garota! Quando era vulnerável fez da minha vida um inferno, mas mesmo sendo uma, "cega inútil", como me chamava, eu ainda era mil vezes melhor do que você. Me enfrente agora, sua covarde! É fácil chutar cachorro caído, fala aqui na minha cara que sou inútil, destila seu veneno para ver se não te faço engolir sua arrogância com pelo menos metade dos seus dentes!

— Surtada! — disse ela cuspindo sangue em mim.

— Surtada é a sua...

— Opa, sem ofender a família — disse o Caio me arrastando para um canto isolado.

— Ouço a voz dessa imbecil, e sinto vontade de socar a fuça dela! — resmunguei inquieta.

— Já fez isso, agora deixe para o próximo da fila — falou bloqueando minha passagem até que me acalmasse, enquanto os demais socorriam a infeliz ensanguentada. — Você me acertou uma joelhada, sua maluca.

— Quem mandou me segurar — falei entredentes.

Em questão de minutos a viatura encostou sobre a calçada, e ao me dar por conta daquela confusão, meu coração imediatamente acelerou...

— Meu irmão me mata dessa vez — mal conseguia falar devido à tremedeira que me dominou.

— Para uma garota que tinha pavor de policiais, olha aonde você chegou — Caio debochou, ganhando um gesto obsceno.

— Já te acertei uma vez, continua abusando.

— Qual a ocorrência? — perguntou o policial.

— Eu, chamei — Eduardo mostrou seu distintivo. — Temos aqui uma agressão por legítima defesa, e uma violação de medida protetiva.

— É o quê? — perguntei confusa.

— É sério isso, Eduardo? Olhe para mim, idiota! Ela quebrou meu nariz! — Patrícia avançou aos tapas para cima do loiro, sendo contida e algemada pelos militares.

— Agora temos, desacato a autoridade. Já sabem o que fazer — disse Eduardo indo em direção ao estacionamento. Corri até ele, e o segurei pelo braço.

— Vai mesmo levar isso adiante?

— Esse é meu trabalho — respondeu ríspido. — Te vejo na delegacia.

Não consegui responder, apenas o observei entrar no carro, e sair cantando pneu.

— E agora? — perguntei ao Caio, enquanto a viatura saía com o giroflex ligado. Nem deixaram a garota ir no banco de trás, foi no porta malas, com nariz quebrado e tudo.

— Atitudes e consequências — Caio deu de ombros.

— E eu que achei que minha namorada era brava — disse Rodrigo, me olhando com espanto.

— Eu que o diga — Caio se encolheu com uma careta.

— Você se machucou? — perguntei ao Caio que caminhava estranho ao meu lado.

— Se quiser conferir.

— Ah, Caio, vá se lascar!

— Abusa da sorte — Rodrigo deu tapinhas no ombro do amigo.

Depois de pagar a conta do bar, nos despedimos da galera e fomos para a delegacia. Não preciso dizer que a cada cinco segundos um frio intenso percorria meu corpo tremendo o resultado daquela explosão.

~♥~

Ao chegar na delegacia, passamos pela recepção onde uns policiais conversavam distraídos no balcão, e ao avistarem o Caio, se colocaram em posição, chamaram de senhor, e bateram continência, o que achei curioso, porque ao menos dois ali eram bem mais velhos do que ele.

— Eu era tenente da polícia militar, entrei para a federal a pouco tempo, então, alguns ex-colegas de trabalho ainda batem continência — explicou, diante do meu olhar surpreso.

Sua postura naquele ambiente foi muito profissional, e confesso que me surpreendi, porque aquela versão era bem diferente da debochada e atrevida que eu conhecia.

— Que coisa fofa, todo cheio de pose — sussurrei. — Nem parece que andava igual a uma puérpera ainda a pouco.

— Carinho para aliviar a dor, ela não faz — respondeu com um sorriso discreto enquanto caminhávamos pelo corredor.

Eu estava rindo e brincando, mas dentro de mim existia uma confusão muito grande de sentimentos. O local já não me incomodava mais, um trauma a menos para me preocupar, mas a ideia de estar ali depois de ter agredido uma pessoa, mesmo que a situação me fosse favorável, ainda era assustadora.

— Aqui — Caio parou a frente de uma porta e deu três batidas anunciando nossa chegada.

Fomos recepcionados pelo delegado de plantão em uma sala pequena com três mesas de trabalho, que naquele horário estavam vazias. O homem era alto, forte, cabelos e barba escuros e semblante muito sério. Sua presença só não me intimidou mais porque o Caio estava comigo.

— Falei com seu pai hoje à tarde — comentou o delegado, apontando para duas cadeiras à sua frente. — Ele disse que está de viagem marcada para o Brasil, até combinamos uma pescaria.

— Diz que vem, mas só acredito quando desembarcar em solo brasileiro — afirmou Caio, movimentando um peso de papel sobre a mesa, visivelmente calmo, ao contrário de mim, que estava quase surtando ao seu lado.

— Será que vão demorar? — perguntei inquieta.

— Acredito que não — Caio respondeu, tranquilo, o que me causou uma certa irritação, uma vez que não sabia o que viria a seguir.

— Delegado — a voz do policial ao lado da porta me chamou a atenção. Ele não se referia ao Dr. Renato, e sim, ao Eduardo que se aproximava ao lado de Patrícia.

— Boa noite — Eduardo apertou a mão do delegado, e se posicionou ao lado da mesa de braços cruzados.

Caio cedeu a cadeira ao meu lado para Patrícia, e não pude deixar de notar os arranhões, e o hematoma embaixo de seus olhos verdes, que agora estavam vermelhos de chorar.

— A situação aqui é bem séria — o delegado balançou a cabeça negativamente ao ler o papel que o policial o entregou. — Tem advogado?

— A agressora aqui é ela, nariz, não sou eu que preciso de um advogado — Patrícia revirou os olhos, falando abafado com aquele curativo tapando uma boa parte de seu rosto.

— Já está encrencada demais, eu não brincaria com a sorte — Eduardo respondeu, mantendo uma postura rígida.

— Eu quero prestar queixa contra ela, por ter me agredido e quebrado meu nariz, isso é uma delegacia, ou o quê?

— As testemunhas no local, relataram que foi legítima defesa — disse o policial que atendeu a ocorrência.

— As câmeras de segurança podem comprovar isso — Caio se manifestou.

— O artigo 24-A da lei Maria da Penha, prevê uma pena de três meses, a dois anos de detenção, para o ofensor que desrespeita a medida a ele imposta, ou seja, sua situação não é nada boa — explicou o delegado.

— Estou sendo presa, é isso?

— Em flagrante — respondeu ele.

— Eu ainda estou pensado se levo adiante o desacato — afirmou Eduardo.

— Ela deu uma joelhada no policial ali, vai ficar por isso mesmo?

— Em mim? — Caio perguntou. — Se deu, eu não senti.

Olhei imediatamente para o Caio, que estreitou os olhos, e precisei de muita força para segurar o riso involuntário, afinal, ele estava andando estranho até minutos atrás.

— Isso é um absurdo! — protestou a loira. — Me soa abuso de autoridade, e que eu saiba, é crime!

— Filha! — meu coração disparou quando a mãe dela invadiu a sala. — Eu te disse para não sair de casa, o que você aprontou?

— Briga de rua — disse o delegado.

— Ela não está bem, olhe, é o laudo médico — a mãe tremia segurando alguns papéis. — O psiquiatra me fez assinar o termo de responsabilidade, está aqui. Eu sou responsável por seus remédios, mas o pai dela sofreu um infarto, precisei ir com ele até o hospital, e...

— Senhora, ela foi presa em flagrante, esses papéis não vão resolver agora — o delegado a interrompeu.

A mulher chorava e tremia ao mesmo tempo, mostrando papéis e receitas, na tentativa de justificar a atitude da filha, mas o delegado a observava inexpressivo. Eduardo parecia uma estátua de braços cruzados, e o Caio ainda mexia aquele peso de papel em formato de viatura de um lado para o outro.

— Falta de caráter tem até CID agora — murmurou ganhando um chute na canela, ainda bem que ninguém percebeu aquela manifestação de carinho.

— Você só me dá desgosto! — a mãe deu um tapa no rosto da filha que já estava machucado.

— Sem agressão — Eduardo segurou seu braço quando estava prestes a bater de novo.

Patrícia apenas se encolheu colocando as mãos na frente, confesso que aquela situação me deixou desconfortável.

— Existe uma maneira de resolver isso sem maiores complicações? — perguntou a mãe. — Uma fiança talvez?

— Ela foi pega em flagrante, só o juiz pode definir uma fiança — Ia explicando o delegado.

— O que eu faço? — a mulher segurou no braço do Eduardo ameaçando chorar.

— Hoje não tem nada que possa ser feito — ele respondeu. — Ligue para o advogado da família, e ele tomará as medidas necessárias.

— Você viu o que fez, Patrícia, entendeu o que está acontecendo aqui? — perguntou para a filha, que parecia alheia a gravidade da situação.

— Eu vou passar a noite aqui? — Patrícia se levantou balançando a cabeça negativamente. — Não, mãe, liga para ele!

— Eu não vou ligar para ninguém agora — a mulher respondeu. — Será uma noite longa, espero que pense nos seus atos.

— Mãe!

— A Ana está dispensada — disse o delegado verificando os papéis, enquanto mãe e filha ainda discutiam. — Se precisar falar com ela, entraremos em contato.

— Vou levá-la para casa — Caio levantou apertando a mão do policial.

— Ela vai embora? Não é justo, a garota sai com alguns arranhões, e eu é que durmo na cadeia? Eduardo faz alguma coisa!

— A senhora precisa de uma carona? — perguntou Eduardo ignorando os apelos da garota.

— Eu vim de carro — ela respondeu.

— Edu, você vai me dar as costas assim? Eduardo, em nome de tudo o que a gente viveu...

— Se for pensar em tudo o que a gente viveu, tenho mais motivos para te querer aqui dentro, do que lá fora — ele respondeu de forma ríspida, antes de voltar sua atenção para o delegado. — Caso precise falar comigo, estarei de plantão amanhã.

Dito isso, ele saiu da sala, e fizemos o mesmo.

— Eduardo — Caio seguiu o irmão. — Por que não impediu a briga, você estava...

— Ela merecia essa revanche.

Ele respondeu voltando seu olhar para mim, antes de nos dar as costas e entrar em seu carro.

— Foi exatamente o que pensei — Caio me entregou o capacete.

— Traduza — pedi confusa.

— Ele não interveio de imediato, deixou você bater nela, e isso não é algo que normalmente faria.

— E o que isso significa?

— Que ele finalmente se libertou dela.

Quando cheguei em casa já era madrugada, mas isso não me impediu de levar um baita de um sermão do meu irmão que sempre foi contra violência. Eu sei que ele tinha razão, mas não vou dizer que me arrependi, ela mereceu aquela surra, e também mereceu passar aqueles dias na cadeia para aprender a ser gente.

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