Capítulo 35 A minha nova versão
Acordar confusa em um leito de hospital parece que virou a minha rotina. Só que dessa vez, eu entendia o idioma, o Michael estava comigo, e para minha infelicidade; o que eu queria ter apagado da memória ainda estava lá.
— Oi — disse ele, se sentando à beira do meu leito. Não me contive, comecei a chorar.
— Me fala que tudo isso foi mais um daqueles pesadelos indesejáveis, Michael. Estou cansada de levar pancada da vida.
— Queria muito que fosse, mas infelizmente, não é.
— Eles brigaram por minha causa, eu não queria que isso acontecesse — murmurei limpando o rosto com o lenço de papel que ele me deu.
— Desculpa, Ana, mas estava na cara que isso ia acontecer. Qualquer um no lugar do Edu teria explodido.
— Talvez fosse por isso que o coronel pediu para não dizer nada até que estivesse aqui. Ele conhece o temperamento dos filhos.
— O Eduardo está no quartel, vão segurá-lo até amanhã, e o Caio saiu daqui ainda há pouco, mas não está bem. O estrago físico nem se compara ao emocional.
— Eu não lembrava que eram gêmeos, estraguei tudo — lamentei, frustrada.
— Já começou errado quando te levaram para longe e impediram que eles acompanhassem sua evolução. Mais errado ainda, o Eduardo ser privado da verdade. E ele nem sabe que você e o Caio...
— Ele seguiu a vida, por que eu não podia?
— Quem disse que seguiu? O Edu é a sombra de tudo que já foi.
— Ele está com aquela garota, Michael.
— Não vai acreditando em tudo o que dizem, Ana.
— O tio dele confirmou, eu mesma ouvi o Caio falando com ele ao telefone.
— Eu não confio naquele cara, ficou o tempo todo em cima dos rapazes, muita influência, sei não — Michael balançou a cabeça negativamente. — Espero estar errado.
— Você chegou a conhecer?
— Conheci no hospital, ele estava sempre por lá. Até onde sei, o tio tem mais influência sobre eles do que o próprio pai.
— Não o conheço, mas também não confio.
— Vai ficar tudo bem. — Michael me aconchegou em seu abraço. — Os irmãos vão ter que sentar e conversar com calma, para que tudo seja devidamente esclarecido. Mas essa conversa, só vai acontecer na presença do coronel, que só vem daqui a duas semanas.
— Como assim, duas semanas, já não basta toda essa confusão?
— Ele não pode vir, está na Ucrânia, foi mandado para lá. Está acompanhando uma pessoa influente do governo.
— E agora?
— Bem, enquanto não retorna, um não pode se aproximar do outro. O próprio pai emitiu a ordem, e agora é esperar para ver como isso se resolve.
— Sinceramente, não entendo os métodos do coronel — balancei a cabeça em negação.
— Falei com ele hoje mais cedo, está muito preocupado, mas não conseguiu a liberação para vir. Pelo visto, é uma missão importante, não sei, não entendo o trabalho que eles fazem, mas, também, não nos cabe julgar. O problema agora é familiar, e só eles podem resolver.
— Esse problema familiar envolve a minha pessoa. Me sinto culpada e, ao mesmo tempo, com raiva dessa situação, que poderia ter tido um desfecho diferente se tivéssemos sentado e conversado como pessoas normais.
— Concordo contigo, essa história é muito bizarra.
— Bizarra é minha vida — murmurei desanimada.
— E como vai ser agora que se lembrou do Edu?
— Mas eu não me lembrei do Edu.
— Ana, não minta pra mim, você chegou aqui chamando por ele.
— Mas não é mentira — gesticulei nervosa a sua frente.
— Você me disse que se lembrasse não contaria a ninguém.
— Eu não sei se foi um sonho. Me veio a mente uma lembrança de estar em um lugar barulhento, com medo, e... eu acho que o Edu estava comigo. Tiros, tinha muitos tiros, gente gritando, ele estava desesperado, e... eu disse que o amava e que aceitava ser sua namorada.
— Isso aconteceu na madrugada em que a polícia invadiu o cativeiro.
— Não faço questão de lembrar dessas coisas.
— Mas, é importante.
— É como eu disse, pensei que fosse um sonho. E toda essa confusão aconteceu por confundir os dois. Nem me lembro de alguém dizer que eram gêmeos.
— E não sentiu nada quando viu o Eduardo?
— Nem tive tempo de assimilar as coisas, a garota avançou em mim e virou essa confusão toda.
— Você chegou aqui bastante confusa e agitada, trocou o nome dos irmãos várias vezes, e com isso, o Caio saiu daqui bastante chateado.
— Ele vai desistir de mim, Michael! — tentei me levantar, mas ele não permitiu.
— Calma, depois vocês conversam.
— Depois, não, eu conheço o Caio, ele vai desistir de mim!
— Ele precisa desse tempo, Ana, e você não está em condições de conversar. Não quero ser o carrasco da sua vida, mas agora não, você vai ficar quietinha nessa cama e se cuidar.
Discutir com meu irmão não resolveria a situação, e eu sabia que as coisas não seriam fáceis. Me encolhi e chorei temendo o futuro, agora era a única coisa que podia fazer. Michael revezou entre atender ao plantão, e me fazer companhia, enquanto realizava alguns exames a fim de descobrir, se o desmaio foi causado apenas por uma crise emocional, ou algo relacionado ao meu estado de saúde anterior, o que seria motivo de preocupação.
— A caneta do destino está contra mim — refleti quando Marcela entrava no quarto.
— O resultado da tomografia saiu, e o doutor está no posto se quiser falar com ele — avisou ao se aproximar de meu irmão.
— Obrigado por avisar — Michael saiu apressado.
— E você, como se sente?
— Com uma imensa vontade de sumir do mapa — respondi pensativa.
— Às vezes, cometer alguns deslizes faz parte do amadurecimento — disse ela, verificando meus sinais vitais.
— Apagar o namorado da memória e depois se apaixonar pelo irmão não me parece um amadurecimento — respirei profundamente.
— Paixão e amor são dois sentimentos distintos, eu já me vi na situação em que se encontra, e é mais comum do que pensa.
— Duvido que alguém seja tão azarada assim — respondi desanimada.
— É sério, quando tinha a sua idade, estive apaixonada por dois irmãos, mas não eram gêmeos, aliás, eles eram muito diferentes, e cada um me completava de um jeito — disse ela, ajeitando meu travesseiro. — Um era o amor da minha vida, e o outro... enfim. Tínhamos uma química surreal, foi uma fase complicada e, ao mesmo tempo, marcante. Então, eu sei como se sente, e acredite, passará.
— Bom saber que não sou a única, mas, onde estão agora, digo, os irmãos? Porque, se está com o Michael, é sinal de que não ficou com nenhum dos dois.
— Desistiram de mim e, algum tempo depois, faleceram em um acidente de carro.
— Ótimo, agora me sinto bem melhor! — eu ri, de nervosismo.
— O que quero dizer é que o tempo passa, independente de querermos ou não. Mas as lembranças ficam para mostrar o quanto valeu a pena.
— É mesmo? — cruzei os braços à sua frente. — As minhas se apagaram e é exatamente por isso que estou aqui, lascada e sem rumo.
— Se benze! — disse ela aos risos.
— Preciso — rimos juntas.
— É tão bom ver as duas assim — Michael se aproximou com um sorriso espontâneo.
— Olha, eu só estou há uns dez minutos com ela, e já tenho uma recomendação muito importante a fazer — comentei.
— Devo me preocupar? — sorriu curioso.
— Não sei, mas se uma pessoa estiver prestes a pular de uma ponte, e a Marcela estiver por perto, em hipótese alguma deixe que se aproxime. Vai por mim, é mais seguro.
— Alguém me explica isso direito — Michael estranhou nossa crise de risos.
— Ela acabou de descobrir, que sou péssima tentando animar as pessoas, mas e aí, o que o médico disse sobre os exames?
— Nenhuma alteração significativa, parece foi uma crise emocional, mas vai ficar em observação essa noite por precaução.
— Ótimo, eu adoro hospitais — fiz sinal de positivo com a mão.
— Quando menos esperar, estará em casa com um bico gigante, reclamando da rotina — Michael sorriu.
— Ou fugindo de assombrações na madrugada — dei de ombros.
— Misericórdia! — Marcela sorriu com o rosto corado.
— Oremos pelas almas peladas pegas no flagra — disse o Michael, causando uma crise coletiva de risos.
Brincadeiras à parte, Marcela e Michael encerraram seu turno e me fizeram companhia. Na ocasião, eles aproveitaram para me contar como se conheceram há quatro meses durante um treinamento de primeiros socorros. Um clima acabou rolando entre o casal e evoluiu para um romance que precisaram esconder, já que ela havia sido contratada recentemente, e o Michael seria seu chefe no setor.
Falamos sobre alguns assuntos aleatórios e também sobre minha estadia na América e sobre como foi importante para minha evolução como pessoa. Porque embora eu não me lembrasse de muita coisa sobre minha vida, era inegável que havia mudado.
~♥~
No dia seguinte, tive alta bem cedo. Passamos em uma cafeteria e depois fomos para casa, mas minha vontade era de entrar em uma máquina do tempo e retornar ao útero de minha mãe. Só que essa não era uma opção, então passei a manhã inteira na cama, pensando na vida e olhando para a tela do celular, que para minha tristeza não acendeu uma única vez.
— Caio, eu sei que está magoado, queria muito poder reverter essa situação, mas não faço ideia de como fazer isso. Você sumiu e nem sei se ainda quer falar comigo, eu... droga, nem sei o que dizer. Sinto muito a sua falta, me perdoa por tudo, e, não se afaste de mim, por favor, é só isso que te peço — falei em um áudio que também não foi visualizado.
O Michael passou boa parte da manhã na varanda corrigindo uns trabalhos da faculdade e, após almoçarmos, foi para seus compromissos, de onde só voltaria depois da meia-noite, como era de costume. Antes de sair, me deu vários conselhos e orientou que ficasse em casa, mas a ansiedade misturada com a solidão me fez querer respirar um ar diferente que acabou me levando até a praça. Onde me sentei em um banco aleatório e permaneci pensando na vida...
— Saudades do tempo em que esse lugar era melhor frequentado, agora somos obrigadas a dividir espaço com a ralé!
Ao levantar meu rosto, avistei Patrícia e mais duas garotas se aproximando com roupas de caminhada.
— Se veio me provocar, já vou avisando que não escolheu uma boa hora — avisei, me colocando em pé a sua frente.
— Algum estagiário deve ter deixado as portas do purgatório abertas — comentou uma das amigas.
— Foi por lá que você saiu — perguntei a garota branca de sardas no rosto e olhos verdes carregados de maldade.
— Ui, ela tomou chá de valentia — zombou a outra amiga.
— E você quem é? — franzi o cenho, a fim de não dar moral para a baixinha de cabelos platinados.
— Dizem que está desmemoriada, mas tenho minhas dúvidas — Patrícia me olhou com desprezo.
— Se acha valente, mas continua parecendo um gatinho acuado — a garota de sardas caminhou a minha volta, tentando intimidar.
— Se fizer cara feia, a boneca desmaia — zombou Patrícia, rindo com as amigas.
— Olha, eu já disse que não estou em um bom dia, então, com licença!
Desejei muito aquele encontro, mas agora não era uma boa hora para me meter em mais confusão, então, optei por dar-lhes as costas. O problema é que quando me virei, senti uma mão atrevida tocar em meu ombro, quando em um reflexo rápido, segurei seu braço e torci, finalizando com uma rasteira que a fez cair violentamente de costas no chão.
— Não, toca, em mim! — exigi apontando o dedo em sua direção.
— Idiota! — esbravejou enquanto tentava se levantar.
— Foi-se o tempo em que você e suas amigas pisavam em mim, entendeu! — a empurrei de volta, enquanto as outras olhavam boquiabertas a loira espatifada. — Posso estar desmemoriada como disseram, mas sei que me perseguiam bando de covardes. Só que as coisas mudaram, e a primeira que se meter a besta comigo vai levar porrada!
— Está tudo bem, Priscila — Patrícia acenou para a amiga que se aproximava para ajudá-la. — Aprendeu certinho com o Caio — um sorriso regado a cinismo brotou em seu rosto.
— Não, eu aprendi foi com o pai dele, mesmo. Algum problema?
— Ah, garota, conta outra! — Patrícia se mostrou incomodada. — O pai dele não dá moral para ninguém, é um homem ocupado. Nunca perderia seu tempo com uma inútil feito você, coisinha insignificante!
— Tão insignificante, que precisa me perseguir e tentar me humilhar para manter seu ego elevado.
— Eu tenho pena de você, garota! — disse ela, revirando os olhos.
— Então é recíproco, porque deve ser horrível correr atrás de um homem que dorme contigo pensando em outra, não é mesmo?
— Repete o que você disse! — Patrícia se aproximou parando com seu rosto a centímetros do meu.
— Para quê, já não basta ser humilhada uma vez, você ainda quer mais? — dei de dedo em seu peito, fazendo com que recuasse. — Se são tão mulheres para enfrentar uma "pessoa normal", como são para infernizar a vida de pessoas indefesas, façam uma fila!
— Voltou valente — Patrícia gargalhou.
— Três contra uma é muita desvantagem, vamos igualar essa situação? — disse a professora de dança, se aproximando com mais uma menina do prédio.
— Olha só, ela tem uma gangue agora — a platinada sorriu.
— Pois é, Luana — Patrícia concordou estreitando os olhos.
— Chamem como quiser, e a primeira que se atrever a fazer gracinha vai esquecer até o caminho de casa — disse a outra menina, que eu sequer conhecia, se posicionando ao meu lado.
— Nem pense em chegar perto do meu homem! — Patrícia apontou o dedo em minha direção.
— Ou? — dei um passo a frente, parando com o rosto a milímetros do seu.
— Vou ter o Eduardo de volta, custe o que custar! — disse ela, saindo apressada com uma marca gigantesca de sujeira estampada no traseiro.
— Vai pela sombra! — acenei com um sorriso debochado, enquanto retornava par ao prédio com as meninas.
Voltei mais encrencada do que quando saí, porém, de alma lavada, e fui agraciada com uma aula particular de dança do ventre, que me deixou muito animada. Principalmente porque agora eu já não era mais sozinha, havia feito duas amizades, que se tratavam de Suelen, a professora de dança, e Cibele, vizinha do primeiro andar.
— O meu parceiro furou comigo, e só falta um mês para a apresentação. Onde vou arrumar outro dançarino? — disse Suelen, se aproximando enquanto alongávamos depois da aula.
— Mas Suelen, na academia não tem ninguém? — perguntou Cibele se alongando ao meu lado.
— Já foi difícil conseguir o Henrique, mas a namorada está dificultado as coisas por ciúmes — respondeu preocupada.
— Que tipo de apresentação seria? — perguntei curiosa.
— É um festival com temas de filmes, estávamos decidindo entre Ritmo quente e Grease.
— Ritmo quente seria o Dirty dance? — perguntei ao me lembrar daquela tarde chuvosa, onde o Caio foi tentar reproduzir comigo a coreografia do filme, e me derrubou na grama molhada.
— Sim, estávamos indecisos sobre qual coreografia usar, então ensaiamos as duas, mas agora vou ter que cancelar a inscrição.
— Que pena, são duas ótimas opções — comentei.
— Você poderia dançar a fusão de Fata Morgana, conosco. Estamos em cinco no grupo, a Lorraine não vai mais dançar, poderia ficar no lugar dela — sugeriu Suelen.
— É doida, fiz uma única aula e quer me colocar em uma apresentação oficial — eu ri.
— Nada que alguns ensaios não resolvam — Suelen respondeu fazendo uns movimentos típicos, quando ouvi o toque do meu celular.
— Ana, sou eu, Caio. Estou aqui na praça, podemos conversar?
— Você sumiu, achei que não queria papo comigo — respondi acenando para as meninas enquanto me afastava.
— Troquei de celular, o outro se perdeu em meio aquela confusão.
— Por que não vem em casa, então?
— Melhor conversar aqui na praça, só quero te ver um pouquinho.
— Ok, já estou indo — desliguei o celular, com um sentimento estranho.
Caminhei apreensiva, tentando imaginar o que me aguardava naquele encontro. Infelizmente, não tinha motivos para acreditar que viria algo bom, e logo que saí, o avistei encostado no carro, com um semblante sério, de braços cruzados e óculos escuros. Agora eu tinha certeza de que não ia curtir aquela conversa.
— Vocês dois deveriam usar plaquinha de identificação, sabia?
— Nunca precisou disso — disse ele me abraçando. — Topa uma caminhada comigo?
— Claro — consenti, ainda preocupada.
— Eu falei com o Michael. Ainda bem que seus exames deram bons, estava preocupado — disse ele, caminhando ao meu lado com as mãos no bolso.
— Eu não tive culpa, Caio — parei a sua frente, notando vários hematomas em seu rosto, e um corte no canto da boca.
— Eu sei, Ana — ele desviou o olhar.
— Então por que se afastou? Está estranho comigo, eu sequer me lembro de como cheguei no hospital. Se falei algo que te chateou, eu... me perdoa.
— Você se lembra do nosso trato, não se lembra?
— Por favor, não — murmurei aflita.
— Ana, eu estava lá. Você me abraçava chamando por ele, dizia que me amava, sendo que mesmo quando ficamos juntos, nunca me disse isso. Não estou te cobrando, mas doeu.
— Me desculpa, eu...
— Não, você não vai fazer nada por pena, eu te disse que não queria isso.
— Mas Caio, não é nada disso — insisti, segurando em seu braço.
— Talvez você não recorde com clareza, mas o sentimento está vivo aí dentro. Eu quero te dar o espaço necessário para poder lidar com essa situação de forma justa. E não se preocupe comigo, estou ciente de que poderia acontecer.
— Eu não me lembrei dele.
— O seu subconsciente lembrou, e isso é um sinal. Não posso bagunçar ainda mais sua cabeça. Se alguém tiver que sofrer por conta disso; que esse alguém seja eu.
— Não — o olhei aflita.
— Eu saí do apartamento do tio, estou em um hotel. Daqui a pouco vou buscar alguns pertences pessoais, e... vida que segue.
— Não é justo que tenha que sair de casa, assim como não é justo ficarem brigados dessa maneira. Seu pai tinha que estar aqui ajudando a resolver essa situação.
— Mas ele não está — Caio respirou profundamente buscando o meu olhar. — Era mais fácil quando nossas brigas eram por conta daquela garota insuportável.
— Ela veio me importunar hoje mais cedo, aqui mesmo na pista de caminhada, mas se deu mal.
— Não deixe que elas tirem a sua paz, agora você consegue se defender. Se for o caso acione a polícia, ainda existe a medida protetiva contra elas.
— Vou acionar a minha mão na fuça dela. Você acredita que eu disse que ia dar umas porradas, e tive que ouvir que aprendi contigo?
— Na boa, essa sua nova versão está maravilhosa, mas eu já te encontrei assim lá na América, então não é mérito meu.
— Você é responsável por parte da minha mudança, sim — afirmei segurando sua mão. — E seu pai me ensinou grandes lições, com nossas conversas noturnas e os treinos a beira do lago.
— Eu falei com meu tio, ele achou melhor pedir afastamento e me inscreveu como voluntário em uma missão na África. Era sobre isso que queria falar contigo — disse ele, voltando seu olhar para nossas mãos unidas.
— Me chamou para dizer que está indo embora, é isso? — meus olhos lacrimejaram automaticamente.
— Foi a minha aproximação que te jogou nesse buraco, Ana, e se ficar aqui, só vai piorar. O Eduardo te colocou na mira de uma namorada ciumenta, mas eu... eu te coloquei na mira de uma facção perigosa. Não é seguro ficar comigo, entenda isso.
— O seu tio te incentivou a me abandonar? — perguntei com a voz embargada.
— Não, ele jamais faria isso — disse ele acariciando meu rosto com uma das mãos, enquanto a outra ainda apertava a minha. — Tudo o que eu mais queria era protegê-la, mas o tio tem razão, se ficarmos próximos você se torna um alvo. Não vou me perdoar se te pegarem outra vez.
— Me pegarem? Mas os meus sequestradores foram mortos, não foram?
— Ao que indica, sim. Mas não acabou, são organizações ramificadas no mudo todo, não estará segura ao meu lado. É uma vítima, mas, eu, um agente que se infiltrou lá dentro e agora pode estar sendo caçado por conta disso.
— Como vou ficar longe de você, Caio?
— Assim você me desmonta, Ana — murmurou antes de soltar um suspiro profundo.
Me segurei para não chorar a sua frente, eu realmente não queria ficar longe. Caio se tornou a minha melhor companhia nos últimos tempos e não achei justo ter que me afastar. Eu estava com a memória prejudicada, mas não o raciocínio, então por que eu não podia escolher quem queria ao meu lado?
— Ele te bateu e sequer reagiu, por quê?
— Sou lutador, nunca deixei de treinar — murmurou olhando para os carros que passavam por nós. — Dificilmente perderia se topasse um embate com ele, mas mereci aquela surra. Por isso não reagi.
— Até quando vai se punir?
— Eu nunca fui um cara legal, Ana, você despertou o melhor de mim, mas nada justifica o que fiz. Não quero viver com esse peso na consciência, o Eduardo é meu irmão e, apesar do meu jeito desapegado, eu me importo com ele.
— Isso já ficou bem claro para mim, mas e eu? Não tenho o direito de escolha?
— É claro que tem, mas para isso precisa estar consciente delas.
— Não, você não está, e logo verá que sou o cara errado.
— O que quer dizer com isso? — perguntei não obtendo resposta.
Caio nem de longe era aquele homem debochado que conheci, agora ele estava vulnerável, perdido e as lágrimas que escorreram pelo seu rosto, me diziam que estava sendo muito sincero.
— Eu pensei que se importasse com meus sentimentos — lamentei buscando o seu olhar.
— Eu errei com você, com ele, comigo. Não respeitei seu relacionamento, traí a confiança do meu irmão e me afundei nesse abismo. Se é a minha presença que os impede de ficar juntos e serem felizes, eu...
— Quem te convenceu disso, Caio? O seu tio? Qual é são homens não crianças que precisam de um tio decidido suas vidas, droga!
— Não sou o cara foda que pensa, Ana. Sou fraco, confuso, impulsivo, eu...
— Não quero que vá, fique aqui, fique... por mim. Não me importo com os meios que usou no passado, isso não muda o que sinto aqui dentro.
— Eu fiz tudo errado — disse ele com a voz embargada.
— Já perdi pessoas demais, não faz isso comigo — insisti o abraçando.
Como dói ver seu mundo desabando a sua frente sem poder fazer nada. Me sentia perdida, sem rumo, mal pisei no país e já queria sumir do mapa.
— Eu preciso te entregar uma coisa.
— O que é isso? — o olhei confusa quando me entregou um papel que acabara de tirar do bolso.
— Fiz uma lista com as coisas que você disse que queria fazer quando voltasse ao Brasil. Só me promete que não vai deixar de cumprir.
— Leia para mim, por favor — pedi emocionada.
Caio me olhou por um instante, soltou um suspiro profundo e então começou a ler...
— Aprender a andar de bicicleta; jogar boliche; ir ao parque de diversões; fazer uma tatuagem; assistir a um filme clichê no cinema e uma peça de teatro; pular em uma piscina de bolinhas, e...
— Ok, a piscina de bolinhas você risca, acho que as crianças vão estranhar essa cena — interrompi aos risos a sua leitura. — Não acredito que anotou todas essas coisas infantis.
— Que tipo de companheiro eu seria, se não me importasse com suas vontades, mesmo sendo infantis? — ele esboçou um sorriso fofo. — Ainda tem mais quatro itens.
— É mesmo, então você se importa? — semicerrei os olhos, com um sorriso.
— Por que eu sinto que vou me arrepender de perguntar o motivo desse sorriso?
— Eu quero acrescentar dois itens nessa lista — comentei.
— E quais seriam?
— Você vai assistir a uma apresentação minha de dança do ventre.
— Ah, eu faço esse sacrifício — riu nasalado. — E o outro item?
— Quero que participe de uma apresentação de dança com minha amiga.
— Não está falando sério — Caio balançou a cabeça com um semblante confuso. — Sou lutador, não existe a menor possibilidade de dançar a dança do ventre. Nem tenho mobilidade para isso.
— Não é dança do ventre — gargalhei. — Se bem, que...
— Se bem que, nada, pode me deixar fora disso. Já estou até imaginando a galera na delegacia me zoando, pode esquecer!
— Poxa, Caio, pensei que...
— Subir no ringue comigo ninguém quer.
— Por que me entregou a lista, se não tem a intenção de fazer nada disso comigo?
— Em sessenta dias estarei indo para a África, Ana. Mesmo que topasse, não daria tempo, e...
— Podemos discutir isso no cinema hoje à noite, o que acha?
— Cinema?
— Sim, está na lista — dei de ombros. — Se o tempo é curto, temos que começar quanto antes.
— Mas, olha como ela é maquiavélica — Caio soltou uma risada espontânea.
— Ou você me ajuda com a lista, ou...
— Tudo bem — ele disse quando ameacei rasgar o papel. — Vou me organizar para fazer os itens da lista, mas esse negócio de dançar com amiga ainda está em análise.
— Não é dança do ventre, já te disse isso — eu ri votando a caminhar ao seu lado.
— Te pego as oito, então — afirmou quando paramos a frente do meu prédio. — Depois do cinema, vou te levar a um barzinho, quero te apresentar a uns amigos. Avise o Michael para não ficar preocupado.
— Ok, combinado! — falei enquanto ele se afastava.
— Isso porque não era para ficar aparecendo em público — sorriu entrando no carro, e saindo logo em seguida.
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