Capítulo 33 Situação embaraçosa

A notícia que deveria ser motivo de comemoração acabou se tornando motivo de insegurança, pois desde que acordei naquele hospital a vida que eu conhecia era aquela. A família com quem convivia era aquela, e saber que aquele ciclo chegou ao fim me deixou muito mal. E não foi só eu que me senti assim...

— Esse cantinho tem história — comentei me sentando ao lado do Caio ao pé daquela árvore, onde sempre ficávamos ao fim da tarde.

— Promete que nunca vai me esquecer?

— Como te esquecer, Caio?

— Tudo o que vivi aqui ao seu lado foi muito especial. Mas se a posição de amigo, é o que o destino me reservou em sua vida, então prometo ser o melhor de todos.

— Que conversa é essa agora?

— Eu queria te fazer um pedido. Na verdade, dois.

— Então faça — falei encostado a cabeça em seu ombro, observando o movimento da água no lago.

— Vamos voltar ao Brasil, e, pode ser que as coisas mudem entre nós, então te peço que jamais se esqueça que tudo o que vivemos aqui foi verdadeiro. E..., que nunca fique comigo por pena.

— Por que eu ficaria contigo por pena?

— Me prometa que se ao chegar lá, você se lembrar dele, se o amor que sente reacender. Você vai viver o seu amor e ser feliz.

— Está me dispensando?

— Não, Ana, eu só não quero ser um empecilho para sua felicidade. Prometemos viver o momento aqui, e vivemos, mas as coisas podem mudar, e...

— Não se atreva a se despedir de mim.

— Não estou me despedindo, só fazendo um trato que gostaria que fosse cumprido.

— Eu não sei, Caio.

— Ana, eu nunca vou me afastar definitivamente de você, ao menos que me peça. Mas preciso fazer esse trato pelo seu próprio bem — disse ele, me olhando com um semblante que exibia firmeza, mas, ao mesmo tempo, preocupação. — Eu já cometi muitos erros na vida, feri pessoas e sei que ainda continuarei ferindo porque não sou perfeito. Mas quero que seja feliz de verdade, mesmo que não seja comigo, entendeu?

— Não imagino minha vida sem você — murmurei com a voz trêmula.

Ele levou a mão até meu cabelo, e acariciou levemente antes de dizer em um tom sereno:

— Não importa onde eu esteja, como esteja. Se precisar de mim, me chame e virei ao seu encontro.

~♥~

Minha vida mais uma vez deu uma virada drástica, e agora eu olhava para aquelas malas com profunda tristeza. O desejo de voltar para meu país, rever meu irmão e poder ter uma vida normal, era grande, mas, ao mesmo tempo, o medo de que o Caio se afastasse de mim me consumia. Eu sabia que o caso teve muita repercussão e fui orientada a evitar aparecer em público por um tempo, o que não seria má ideia. E sobre o Eduardo? O pai dele iria pessoalmente resolver aquela situação, até lá, não podíamos nos encontrar. Se bem que... eu não tinha a menor pressa. 

Ainda me lembro de caminhar pela casa tentando memorizar cada cantinho, e guardar no coração as lembranças vividas. Não sabia se teria a oportunidade de voltar ali, e foi difícil desapegar daquele pedacinho do paraíso, que mesmo por um curto espaço de tempo, ainda assim, foi o meu lar, e aquelas pessoas a minha família.

Muita coisa havia mudado dentro de mim, eu não era mais aquela garota assustada que acordou no hospital com medo da vida. Era uma mulher que aprendeu ao lado de dois homens incríveis, a se defender, e com toda a certeza do mundo, tudo o que passei, serviu de combustível para me impulsionar, e agora... ah, agora era oficial, eu estava voltando para casa. E que as garotas que me humilharam no passado, não cruzassem o meu caminho, porque estava mais do que preparada, e não aceitaria ser tapete de ninguém.

— Vou sentir falta do seu pai — comentei ao olhar pela janela enquanto o avião taxiava na pista.

— Estava pensando sobre isso, passamos tanto tempo dentro daquela tempestade sombria, que não me dei por conta do tempo que perdi — disse o Caio, se ajeitando ao meu lado.

— Vocês dois brincando na chuva, essa imagem foi inesquecível — murmurei apertando sua mão.

— Foram dias incríveis, eu não tinha ideia do quanto precisava disso — Caio sorriu. — Não sei como vai ser quando o Edu souber de tudo, mas o fato de ter me aproximado, será de suma importância, porque posso intervir de maneira positiva em defesa do meu pai.

— Eu não havia pensado nisso — retribuí o seu sorriso. — Seria bem mais difícil se tivesse os dois filhos contra ele.

— Veremos o que a vida nos reserva.

~♥~

O voo até que foi tranquilo, e assim que chegamos ao Brasil, pegamos um táxi que nos levou direto para meu novo lar, onde Michael me esperava com uma festa discreta de boas-vindas. O prédio era bem localizado, morávamos no quarto andar em frente a uma praça com área de exercícios físicos, e pista de caminhada, que fazia fundos com um condomínio de luxo. Michael já havia me falado sobre o local, só não imaginava que fosse tão sofisticado. Se bem que, eu não tinha memória visual de minhas outras moradias.

— É muito bom tê-la de volta — meu irmão me abraçou apertado. — Ainda estou anestesiado.

— Eu gostei daqui — sorri, correndo o olhar pelo cômodo.

O apartamento era pequeno, mas muito aconchegante. Na sala, havia um sofá marrom de três lugares ao lado de uma poltrona de frente a um painel de televisão. No chão, um tapete felpudo também na cor marrom que contrastava com o piso branco, assim como a parede. Eu ri com lágrimas nos olhos ao ver o pote de bombom sobre uma mesinha no canto, o Michael nunca deixou faltar. Nossa cozinha era bem apertada, mal cabiam duas pessoas na bancada para realizar suas refeições, e a lavanderia ficava anexa a esse cômodo. Na varanda da sala, havia uma mesa pequena com cadeiras confortáveis e um vaso de zamioculcas; um ambiente muito acolhedor. 

A sala dava acesso ao corredor, onde avistei quatro portas, sendo que uma delas era o banheiro, e as outras três, os nossos quartos. Sim, havia um terceiro quarto que me causou uma grande surpresa quando soube que seria do meu pai, ele agora passaria a nos visitar com frequência. Ao abrir a porta do meu quarto meus olhos se encheram de lágrimas, a primeira coisa que avistei foi o porta retrato sobre a cômoda, com a foto que tiramos no hospital momentos antes de eu fazer cirurgia. Ao lado uma montagem com algumas fotos dos momentos que vivi quando comecei a enxergar. Que saudade da Kiese!

— Gostou do quarto? — Michael perguntou. — Infelizmente não é a mobília antiga, o apartamento veio mobiliado, mas tentei decorar como era antes.

Coloquei a mala ao lado da cama e observei o roupeiro na cor branca com uma porta inteira espelhada. Sobre a mesinha de cabeceira havia alguns livros novos de romances que viraram filmes, e uma caixinha de música. Um quarto simples, mas muito aconchegante.

— Eu amei — falei com um sorriso.

Caio trouxe o restante das malas que estavam na sala, e depois de contar ao Michael sobre as orientações da polícia, ele se foi, deixando um rastro de insegurança que me abalou de uma forma que já imaginava, porém, não estava preparada. Eu temia que nossos caminhos tomassem rumos diferentes, e vê-lo sair por aquela porta, me deixou uma sensação de vazio. Optamos por não contar a ninguém sobre nosso envolvimento, ao menos até que tudo fosse esclarecido, era uma forma de manter o controle da situação, eu só não sabia que seria tão difícil.

Michael pegou folga para me fazer companhia, mas uma emergência acabou atrapalhando seus planos, e agora eu estava sozinha naquele apartamento estranho com saudade de casa. E nem era minha casa...

— Oi, minha linda, pode falar — disse o loiro ao atender minha ligação.

— É ruim ficar sozinha, não me sinto em casa.

— O Michael chega que horas hoje?

— Entre uma e duas da manhã, como sempre.

— Eu deveria ter ficado mais tempo contigo, mas precisava ir até a delegacia, tenho muita coisa a resolver — explicou ele, com a voz sonolenta.

— Eu sei, e, como foi com o Edu?

— Não foi, eu estou no apartamento do tio Gera.

— Esse homem outra vez?

— Nossa, vou ter que apresentá-los para acabar com essa cisma — respondeu aos risos.

— Desculpa, eu...

— Tudo bem, você não o conhece ainda, mas irá mudar de ideia.

— Tem razão, ando muito desconfiada ultimamente.

— Relaxa, é normal ficar desconfiada, passou por muita coisa.

— E você vai ficar aí? Digo, não vai voltar para casa?

— Ainda não sei o que fazer. O tio disse que posso ficar o quanto precisar, mas estou pensando seriamente em alugar um flat até descobrir o que faço da vida. Não vou conseguir mentir para ele, Ana, o que eu faço?

— Eu não sei, só não se afaste de mim, tá?

— Nem se eu quisesse.

— Estou com saudade, já.

— Eu também.

— Amanhã você vem me ver?

— Vou, sim. É estranho, não tem muito tempo que saí daí, mas parece uma eternidade — Caio suspirou do outro lado da linha. — Está fazendo falta..., se cuida minha linda.

— Você também — falei ao desligar o telefone.

~♥~

Minha primeira noite no apartamento tinha tudo para ser tranquila, se não fosse agraciada por sonhos intrigantes que me fizeram perder completamente o sono, e a linha de raciocínio. Eram duas e meia da madrugada, quando cansada de me virar na cama, eu levantei e fui em direção à cozinha tomar um copo de água. Ao passar pela sala, me deparei com a mochila, e algumas peças de roupa do Michael jogadas sobre o sofá, o que me surpreendeu por ele ser extremamente organizado.

— Quem diria, hein, senhor organização, estava tão cansado que chegou despejando tudo aqui mesmo — comentei com um sorriso quando o barulho de alguma coisa caindo me chamou a atenção...

Aquela situação me causou uma sensação estranha, e essa sensação se intensificou, quando um lampejo de memória me trouxe uma lembrança confusa de minha casa sendo invadida, e aquilo me fez criar mil e uma teorias. O local estava intacto, e a porta trancada, o que invalidava a hipótese de um assalto. Não consegui identificar de onde vinha o barulho, mas quando se repetiu somado ao eco de um grunhido fino, meu coração acelerou.

"Puta que pariu, puta que pariu, puta que pariu", repeti em pensamento pensando ser assombração.

Outro gemido estranho me fez correr sem olhar para trás, invadi o quarto de Michael, que como era de costume, estava com a porta destrancada, e sem cerimônia, entrei tropeçando em algo pelo chão, caindo de joelhos, ofegante, ao pé da cama.

— Michael, eu ouvi um barulho! — falei toda atrapalhada tentando me levantar.

— Não acredito que esqueci de trancar a porta!

— Nunca trancamos a porta do quarto para dormir, você sabe que tenho pesadelos! — protestei, retirando a peça enroscada em meu pé, que foi o motivo de minha queda. E pela penumbra da janela pude ver que havia outras pelo chão.

— Muita coisa mudou nesses quatro meses, Ana, e...

— Isso é... — franzi o cenho com uma careta. — Isso é um sutiã? Por que tem um sutiã no chão do seu quarto Michael? — perguntei segurando duas peças minúsculas de cor preta que me deixaram bastante enciumada.

— Ana, eu...

— Michael, eu espero de coração, que tenha resolvido virar transformista e se apresentar na noite, porque se isso aqui tiver uma dona e você não me contou vou ficar muito chateada! — bati a mão no interruptor acendendo a luz, mas confesso que desejei continuar no escuro.

— Eu realmente não sei o que dizer — murmurou constrangido, e não pude deixar de notar o relevo ao seu lado com o rosto coberto que foi baixando o lençol lentamente.

— Oi — disse uma moça branca de olhos negros.

— Ah-meu-pai! — foi só o que consegui dizer antes de apagar a luz novamente.

— Você pode nos dar uns minutos, é só o tempo de nos vestir e te encontro na sala — pediu Michael.

— Sim... quero dizer, tudo bem... ah, caramba, que saia justa, eu vou... me desculpe! — saí imediatamente fechando a porta.

Aquela situação constrangedora me deixou extremamente desconfortável, então, ao invés de ir para a sala como recomendado, corri para meu quarto pedindo aos céus para que ele terminasse o que estava fazendo e dormisse em seguida, mas para meu total desespero, isso não aconteceu.

— Ana, você pode vir aqui um minuto? — disse meu irmão abrindo a porta do meu quarto.

— É sério que vamos ter essa conversa agora? — perguntei, tapando o rosto com o travesseiro.

— Vamos — disse ele se afastando.

— Ah, que ótimo, bela maneira de retornar. Virei empata sexo e agora vou levar uma bronca por isso! — resmunguei indo em direção à sala, onde me deparei com os dois sentados lado-a-lado.

— Ana, essa aqui é a Marcela, nossa vizinha, e também minha namorada — Michael nos apresentou.

— Ok, vizinha, namorada. Hum, é... então, seja bem-vinda! — abri um sorriso forçado, lhe estendendo a mão. — Adorei o seu... cabelo?

Minhas sobrancelhas se elevaram ao notar que me perdi nas palavras, a moça estava com o cabelo loiro de cachos pequenos, volumosos, bastante bagunçados.

— Eu não achei o elástico de amarrar, e... — ela tentou organizar o cabelo com a mão.

— Não é isso, eu... é... está lindo. Ah, que situação!

— Bem, acho que sou eu quem tem que te dar as boas-vindas — ela apertou minha mão esboçando um sorriso tímido. — Estava ansiosa para te conhecer.

— Ah, que bom, eu... caramba, me desculpa, não é costume... e... é isso. Não sei o que dizer, então podemos partir para a parte da bronca que isso está um pouco; constrangedor — fiz uma careta antes de desviar o olhar.

— Eu deveria ter lhe contado, queria fazer isso com calma, exatamente por não ser algo ao qual esteja acostumada, mas isso não significa que esteja contente por entrar em meu quarto sem bater, e ainda por cima, acendendo a luz daquela maneira — justificou Michael visivelmente desapontado.

— Essa cerimônia nunca existiu entre nós, e está me olhando como se tivesse cometido um crime — respondi irritada. — Eu estava com medo, Michael, e fui procurar a única pessoa que poderia me fazer sentir segura. Se soubesse que estava acompanhado, teria ignorado certos sons, e cortado volta daquele quarto, então me julgue! — cruzei os braços dramática.

— Na verdade, a culpa foi minha, eu acabei... — a moça ia dizendo, mas ele a interrompeu.

— Não, a culpa foi minha. Eu não tranquei a porta, mas bater é uma regra básica de convivência, não é mocinha?

— Ok, está nítido que a rotina da casa mudou, e não vou questionar, afinal, eu perdi muita coisa enquanto estive fora. Podem continuar o que interrompi com minha falta de educação, prometo não atrapalhar. E da próxima vez que ficar assombrada chamo os caça fantasmas, já que a única pessoa que eu tinha para chamar, eu não posso mais!

— Ana, não é isso, eu esqueci as chaves em casa, e minha prima foi viajar, só chega pela manhã, então estou trancada para fora — explicou a moça enquanto Michael me olhava como se procurasse as palavras certas para me dizer.

— Ok, vamos acabar com essa situação desconfortável. Peço desculpas por atrapalhar o momento íntimo de vocês, a irritação do Michael é legítima. Prometo não incomodar mais, agora, posso ir para meu quarto? — desviei o olhar, sentindo uma pontinha de ciúme misturada com insegurança.

— Não fale assim, você jamais incomoda, sempre fomos parceiros, e quero que chame todas às vezes que precisar — Michael veio até mim, e me abraçou.

— Me desculpa, eu não queria chegar dando trabalho.

— Eu é que te devo desculpas, acabou de chegar, nem deu tempo de se situar direito e presencia uma cena dessas. Não era bem assim que planejava apresentar as duas, e estou mais bravo comigo do que com você.

— Eu também te peço desculpas, e se puder me dar uma chance, prometo me esforçar para tirar essa má impressão — disse a moça visivelmente sem graça.

— Ok, estou com ciúmes, e realmente quero fugir dessa conversa embaraçosa, então... Marcela, fique à vontade, eu vou me deitar. Só tranquem a porta dessa vez, eu ainda ando dormindo — fugi apressada sem olhar para trás.

Ao entrar em meu quarto, desejei que um buraco se abrisse embaixo de meus pés. Mas aí me lembrei que morava em cima de outro apartamento, e do jeito que sou sortuda, poderia cair, linda e plena, bem no meio de algum casal praticando o ritual do acasalamento. 

Que os céus me defendam de outra situação embaraçosa daquelas.

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