Capítulo 20 Anjo ou demônio
A noite já iniciou tumultuada, estava cada vez mais difícil pregar os olhos naquele lugar. Imaginei uma série de pensamentos, e a cada ruído vindo do outro lado da porta, o medo tomava conta, pois não tinha consciência do tipo de maldade que estava reservado para mim. Mais lágrimas desceram pelo meu rosto ao pensar que poderia ser entregue a um desconhecido que me comprou sabe-se lá com que tipo de intenções, e qual seria meu destino quando não lhe fosse mais útil. Eu precisava tentar fugir dali, não me importava de ser caçada por um bando de capangas, ou um animal selvagem, afinal, a morte, por mais dolorosa que fosse, ainda era melhor do que a vida naquele inferno.
— Está ficando tarde, você não vai dormir, filho?
Aquela voz grave vinda do outro lado da porta me despertou de meus delírios...
— Estou cuidando dela, meu pai.
— Ninguém vai mexer com a moça — disse o homem em um tom autoritário, porém cuidadoso. — Vá para seu quarto, Nilson.
— Vão sumir com ela como fizeram com a Sheila, e não vou deixar. Eu cuidava dela pai, era boa comigo, machucaram minha princesa e depois levaram de mim.
— Eu te arrumo outra moça, Nil, essa aí é...
— A moça que você amava também era cega — afirmou o rapaz como uma afronta.
— Não foi isso que quis dizer, filho, eu...
— O homem mau roubou a sua princesa, eu não vou deixar que roube a minha!
O garoto se descontrolou com aquela insistência...
— Tudo bem, não precisa ficar assim — disse o pai.
— Eu vou casar com ela e morar no castelo.
— Sim, meu filho, você vai — afirmou o pai. — Se o verme do Arlindo não tivesse cruzado meu caminho, eu também estaria no meu castelo com minha princesa agora.
— Ainda nesse assunto, já te falei que vamos acabar com essa gente — disse o Cobra se juntado a eles.
— Ele vai se arrepender por cada noite mal dormida que passei, por todos aqueles anos que assisti a sua felicidade enquanto aquele animal vivia a vida que era para ser minha. O amor da minha vida, meus amigos, a casa dos meus sonhos, tudo o que me esforcei tanto para conseguir, ele simplesmente levou de mim.
— Tantos anos vivendo em prol dessa vingança, esse ódio ainda te leva para a ruína — afirmou o Cobra como um conselho.
— Como esquecer? Eu estive com ela e abri meu coração, ofereci o mundo e preferiu o marido de merda que tinha. Não vou sossegar enquanto não ver aquele derrotado na ruína — o homem dizia com rancor. — Estava tão perto de tê-la em meus braços, vocês só tinham que sequestrá-la e trazer para mim, mas nem isso foram capazes de fazer.
— O velho, até quando vai me cobrar por isso? Fizemos tudo como o combinado, a Débora até fez uma cena para afastar o pirralho que estava com a mulher, mas quem ia imaginar que mesmo cega ia perceber que estava sendo seguida? Já te expliquei mil vezes, foi um acidente, ela correu e acabou entrando na frente do outro carro.
— Eu mesmo deveria ter ido atrás dela, mas confiei em vocês.
— Me dê carta-branca e eu mesmo mato pai e filhos e acabo com essa merda toda — pediu o Cobra, determinado.
— Se fosse para matar, eu mesmo já teria feito isso. Não tenho pressa, quero que ele sofra por cada raiva que me fez passar, ainda vai se ajoelhar aos meus pés e pedir clemência.
O desabafo daquele ser humano saiu com tanto rancor que me causou calafrios.
— Vou fazer a ronda, bota esse garoto na cama, ele fica aí montando guarda, não há necessidade disso.
— Estamos indo agora, não é filho? Eu te conto uma história.
— Eu te amo pai. Um dia quero ser igual a você, meu herói.
— Eu também te amo, meu filho.
Não consegui segurar as lágrimas ao ouvir aquela conversa. Até o monstro mandante do meu sequestro conseguia dizer ao filho especial que o ama, e meu pai nunca sequer quis me visitar. Meu irmão sempre tentou me convencer do contrário, mas se meu pai me amasse, teria vindo me ver ao menos uma vez.
— Sairei pela manhã, mas volto em um dia. Se comporte, vou trazer a bicicleta que você queria.
— Com garupa para eu carregar minha princesa.
— Está bem filho, agora venha que vou te colocar na cama.
Anjo ou demônio. O que pensar de uma pessoa que convive em meio a tanta gente ruim e não se torna um deles? Nil não merecia estar naquele lugar, era um garoto extremamente inocente que merecia uma chance de ser feliz em um lar de verdade, e aquele ambiente pesado, nem de longe poderia ser considerado um lar de família.
E pensar que por um instante admirei aquele pai ao tratar seu filho com tanto amor. Mas esse surto durou pouco, só até me dar por conta de que muitos pais choravam a falta de suas filhas, que foram levadas assim como eu, sem ter ideia do tipo de atrocidades a que estavam sendo submetidas.
Como o Caio poderia se juntar a alguém tão ruim? Será que ele sabia que aquele homem era o verdadeiro responsável pela morte de sua mãe? O homem cego de raiva não admitiria nunca, mas se não estivessem perseguindo a mulher, ela não teria atravessado na frente do carro e quem sabe ainda estivesse viva. Será que ele tinha consciência de que sua família foi perseguida covardemente por inveja, ambição, e que agora mais do que nunca corriam perigo? Eu já não tinha certeza se ele se importaria com isso.
As lembranças de todos os momentos que passei ao seu lado me torturavam. O Caio era sincero e impulsivo, mas daí a ser uma pessoa ruim capaz de machucar um inocente não combinava. Talvez eu fosse boba demais e ficasse tentando encontrar bondade nas pessoas ruins, mas caramba, ele parecia tão verdadeiro, não esperava por esse tombo. Minha mente estava confusa, a dor era real, decepção, sentimento de impotência, frustração, raiva, tudo ao mesmo tempo, por saber que fui privada de minha liberdade e jogada naquele inferno com a ajuda de uma pessoa que deixei entrar, não só em minha casa, como em minha vida. Ele prometeu me cuidar, e agora era um dos meus carrascos.
— Será que é o fim da linha? — refleti ao ouvir um barulho do lado de fora, que terminou com a porta se abrindo. — Por favor, não me machuque!
Me encolhi apavorada no meu leito de tortura.
— Ana, sou eu.
Ao ouvir aquela voz, um surto de raiva e medo tomou conta de mim. Eu esperava qualquer visita indesejada, menos a dele, o cara em quem confiei e agora me jogou naquele inferno.
— Traidor, eu te odeio, Caio, sai daqui!
Meu protesto saiu mais alto do que realmente devia, mas sinceramente, não me importava.
— Não grita, vão nos ouvir — disse ele me segurando pelos ombros.
— Não encosta em mim seu mostro! Você é muito idiota se pensa que vai se dar bem com essa maldade toda.
Ouvir sua voz, sentir seu toque em mim me causou um surto de mágoa e decepção que não pude controlar, acabei o atacando com tapas e empurrões, eu só queria extrapolar aquele sentimento ruim.
— Ana, pare, por favor, me escuta! — ele pedia entre sussurros inquietos. — Você precisa me ouvir, não tenho muito tempo.
— Te ouvir? Estou trancafiada em um cativeiro cercada de monstros que...
— Que droga, será que é tão difícil fazer silêncio!
Caio me puxou bruscamente não dando tempo de reagir. Não, minha gente, não me agrediu, ao contrário disso, ele me beijou de uma maneira muito intensa. Sei que é estranho, mas foi exatamente isso que fez. Se eu correspondi? A princípio não, mas fui traída por meus próprios estímulos, ao reconhecer aquela boca, e agora tudo fazia sentido.
— Era você — afirmei o afastando. — Não acredito que fez isso comigo, salvou a minha vida e agora me jogou nesse inferno. Por que não me deixou morrer naquela piscina?
Foi um breve instante, mas revivi o pavor daquele trauma e a descoberta que um dia me deixaria feliz, agora só serviu para me deixar ainda mais irritada.
— Eu não sou esse monstro que está pensando, será que pode me deixar falar?
— Eu não posso te ver, mas você pode. Olhe para mim, estou trancada nesse lugar há dias, me bateram, me tocaram, ouço coisas horríveis, temendo ser a próxima. A cada vez que abrem essa porta, fico imaginando que tipo de atrocidade farão comigo por que não passo de uma mercadoria sem valor nas mãos deles! — protestei inconformada.
— Eu sei, Ana, mas estou tentando...
— Tentando o quê, idiota, você é cúmplice! — mais uma vez o estapeei sem que ele reagisse. — Não duvido que esses caras sejam os mesmos que invadiram a minha casa, sabia de tudo, por isso estava lá dentro. Eu tenho nojo de você!
— Nossa, essa doeu — murmurou, baixando consideravelmente o tom de sua voz.
Depois do meu surto de raiva acabei desabando em um choro desesperado. A dor da decepção é inexplicável, parece que a vida resolveu me testar de todas as formas desde que me tirou da minha zona de conforto e agora nem sabia mais o que esperar.
— Vá embora, Caio, já conseguiu o que queria, me afastou do seu irmão, acabou com minha vida por uma inveja insana que sequer tenho culpa — falei entre soluços. — Lamento muito por ter te conhecido.
Como é difícil aceitar que alguém que um dia nos fez tão bem, possa nos machucar tão profundamente. Eu me apeguei a ele, confiei, admirei, tínhamos uma ligação muito forte, e agora não conseguia sequer ouvir sua voz. Meu coração ferido não queria aceitar tamanha traição, e nada do que ele dissesse me faria confiar novamente. Não naquele momento.
— Ana, não chora, por favor!
— Eu nunca te fiz nada, por que me odeia tanto? Acaba logo com esse sofrimento, eu não suporto mais isso.
— Eu não te odeio — sua voz saiu entrecortada diante do meu choro sentido. — Nem se quisesse, conseguiria, porque sou apaixonado por você.
As três últimas palavras saíram abafadas o suficiente para me convencer... se não soubesse que ele me enfiou naquele lugar.
— Chega de mentiras, eu não acredito em uma única palavra que saia de sua boca.
— Eu te amo droga! Jamais te machucaria, será que é tão difícil entender?
— Você não ama nem a si mesmo, idiota!
— Dane-se o seu rancor, eu já estou condenado — murmurou, baixando consideravelmente seu tom de voz.
— Você é digno de pena, traidor.
— Esse traidor, aqui, se encantou por você desde quando desceu daquele carro assim que pisou em São Paulo. Eu não escolhi me apaixonar, não escolhi sentir essa coisa que me destrói toda vez que me lembro de que não pude sequer me dar ao luxo de sonhar. Droga, eu tentei me manter longe, mas a vida te botava em meu caminho, quanto mais fugia, mais próximo estava.
— Não adianta continuar com suas mentiras, eu não quero ouvir!
— Meu maior castigo foi te ver com meu irmão, porque ele, sim, era digno de você. Me sabotei, e agora me afogo no mar de lama que eu mesmo cavei.
— Por que está fazendo isso Caio? — perguntei em lágrimas.
— Eu precisava fazer alguma coisa certa em minha vida — disse ele, depois de um suspiro profundo. — Posso ter muitos defeitos, mas traidor, Ana, isso eu nunca fui.
— Eu não sei quem é você — murmurei mais para mim mesma do que para ele.
— Sou o cara que encontrou a mulher que ama afogada numa piscina; que sofreu a cada movimento daquela manobra em que ela não reagia. Sou o cara que implorou aos céus para que sobrevivesse, e que a beijou em segredo quando ela voltou a respirar. Eu sou o cara que lascou com a própria vida, e que teve que ver a mulher amada nos braços do próprio irmão. O cara que se aliou a uma facção criminosa no desespero de encontrá-la. Eu... eu sou uma tempestade radioativa que destrói tudo por onde passa. Foi assim com minha família e agora com você. Eu te disse que não era boa companhia, droga!
— O que você quer de mim?
Minha pergunta saiu como um sussurro abafado.
— Que você sobreviva e seja feliz, mesmo que isso custe a minha própria vida.
— Por que me jogou aqui? — meus olhos lacrimejaram. — Esse lugar é assustador, essas pessoas me dão medo, eu não sei o que vão fazer comigo.
— Eu não te joguei. Sei que não acredita em nada que digo, está nervosa, e...
— Tive tanto medo da polícia e acabei admirando um bandido da pior espécie. Que decepção.
— Eu nunca fui bandido, Ana — murmurou limpando a lágrima que escorria em meu rosto com a mão tremula. — Sou policial.
— Policial?
— Sim, agente federal. Você sabe coisas sobre mim que se contasse aqui eu estaria morto, e realmente não me importo, só não me compare a eles, por favor.
— Por isso chamaram o Edu de delegado, vocês...
— Ele acabou de ser nomeado. Não contamos a você porque já estava passando por muita coisa, tínhamos medo de que não se sentisse confortável com nossa presença, não se sinta traída, não é...
— Você está infiltrado, é isso que está me dizendo?
— Estava, mas quando você virou um alvo fui afastado. Confesso que agi por conta própria e agora estou aqui.
— Bem a sua cara, perdeu juízo? — protestei.
— Isso aconteceu quando botei os olhos em você.
Juro que tentei odiá-lo, mas quem consegue odiar o Caio? Ele simplesmente me quebrou com aquelas palavras e agora eu não sabia nem mais o que sentir.
— Tem mais uma coisa — disse ele. — Eu sou o turco que te comprou. A polícia tem protocolos, e se fosse esperar as ordens, seria tarde, então dei o meu jeito, tenho um plano para te tirar daqui, mas com policiais envolvidos no esquema, precisamos ser cautelosos.
— Estou com medo — murmurei insegura.
— Deixei pistas de todos os meus passos até o último contato que me trouxe aqui, tenho um apoio lá fora e se não voltar em no máximo um dia, tudo o que colhi de informações vai direto para as mãos dos federais.
— Mas você disse que têm policiais envolvidos, e se...
— Uma cópia de tudo vai para meu irmão e outra para meu pai — afirmou sereno. — Duvido que não movam céus e terras para encontrar, nem que seja meus restos mortais.
— Credo, Caio, não fale assim.
— Eu te peço que fique atenta a tudo o que ouvir, qualquer informação será de grande ajuda. Agora eu realmente preciso ir, não posso ser pego aqui.
— Nil me falou de uma Sheila, mas ela está morta, tenho medo que façam o mesmo comigo.
— Sheila, você tem certeza? Ele disse quanto tempo faz isso?
— Não, mas pelo visto já tem um tempo, ele fala muito nela, dá para sentir que era importante. Desconfio que seja por isso que criou essa fixação por mim, ele tem me cuidado desde que cheguei.
— Se isso for realmente verdade, e for a mesma pessoa, solucionaremos um caso de dez anos atrás.
— Como assim?
— Sheila era irmã de um amigo, saiu da Bahia para trabalhar de modelo e caiu no tráfico de mulheres. Ele luta há anos por justiça — explicou antes de segurar meu rosto com as mãos. — Ana, você precisa prestar muita atenção em tudo por aqui, arranque dele toda a informação que puder.
— Me promete que vamos sair logo daqui?
— Posso morrer aqui, mas você terá uma chance, ainda vai ser muito feliz — Caio beijou o alto de minha cabeça — Eu preciso ir, já extrapolei demais.
— Espera, eu preciso saber...
— Eu realmente tenho que rir.
— A Patrícia, como está o bebê?
— Não tem mais bebê, Ana.
— Caio, o pai do Nil...
— Vem gente aí — avisou o cara que cuidava da porta.
— Eu volto! — disse ele deixando o quarto.
Aprendi desde criança que devemos ter empatia pelas pessoas, e mesmo não querendo ser assim, nunca consegui ser fria diante de algumas situações. Eu sabia que diante de tudo o que aconteceu desde a descoberta daquela gravidez, não existir mais um bebê seria livramento para o Edu, mas não consegui não me sentir mal por aquilo. Era como se de alguma forma tivesse uma parcela de culpa. Fiquei tão mal com essa informação, que nem consegui assimilar as outras que caíram mais tarde feito uma bomba me fazendo ter outra crise de choro.
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