Capítulo 02 Aproximação perigosa
Depois daquela cena deprimente no refeitório, o Eduardo decidiu evitar a sala de aula, então me levou até a sala especial onde me ajudou a fazer o trabalho que o professor havia passado. Se quando cheguei já estava nervosa, agora estava mais ainda porque sabia que poderia ter mais episódios como aquele, e não fazia a menor ideia de como lidar com isso.
— Ficou bom — disse ele analisando meu texto. — Mas podemos melhorar alguns tópicos quando não estiver tão distraída.
— Me desculpe, eu prometo que vou me esforçar.
— Quer conversar?
— Eu sei que é cedo, talvez nem faça sentido, mas você foi meu primeiro amigo aqui nessa cidade, e eu... — respirei fundo, tentando encontrar as palavras certas para dizer. Se bem que eu não fazia ideia de quais eram. — Eu não quero te causar problemas com sua namorada, mas também não queria que se afastasse de mim.
— Não vou fazer isso, e quanto a Paty, não se preocupe, eu já conversei com ela.
— Será que ela vai aceitar nossa amizade, Edu?
— Ela não tem que aceitar ou não, esse comportamento é muito infantil, não somos crianças — respondeu. — Não entendi esse surto, ela é ciumenta, mas dessa vez se comportou muito mal.
— Quem ama cuida, não é isso que dizem?
— Sufocar não é cuidar — murmurou mais para si, do que para mim.
— Você se importa se eu for ao banheiro?
— Não, é até bom fazer uma pausa, você está muito distraída.
— Meus neurônios se cansaram, mas logo voltam a funcionar — falei com um sorriso.
— Se for necessário, faremos um esforço adicional, respondeu com leveza. — Então, você segue por esse corrimão, e quando ele quebrar a direita, continue reto que vai estar de frente ao banheiro feminino.
— Não é difícil, eu já volto — comentei me afastando.
— Ana, se acaso tiver dúvida, assim que sair do banheiro, atravesse o corredor e siga reto que vai encontrar a sala de apoio e eles te ajudarão — explicou atencioso.
— Eu me viro Edu — comentei retomando a caminhada.
Meu ciclo de amizades sempre foi limitado. Não era muito de me socializar, e por conta disso, sempre tive os mesmos amigos, seja do grupo da igreja, ou os adolescentes da rua de casa, que me conheciam desde sempre. Era um círculo vicioso, não me sentia à vontade na presença de pessoas diferentes, mas ali com o Eduardo, consegui me sentir a vontade e confesso que, apesar de toda aquela confusão, eu gostei de nossa aproximação.
— Não olha por onde anda? — perguntou um garoto que trombou comigo pelo caminho, quando me afastei do corrimão.
— Ah, que ótimo, me perdi! — murmurei indecisa sobre o que era frente, fundo, direita, indo, ou vindo. Se para você que enxerga ficou confuso de entender, imagine para mim. — E agora Ana, você faz o que, grita feito uma maluca mostrando que aqui não é o seu lugar?
Eu cresci envolta a uma redoma de vidro que não me preparou para situações como aquela. Estava assustada, me senti indefesa, desprotegida, e com medo, mas não queria preocupar o Michael com meus problemas; que perto dos que ele tinha, não eram nada. Talvez as coisas se acertassem com o tempo... ou não?
— Mais fácil do que eu pensava — disse uma voz feminina, desconhecida, me puxando pelo braço.
— Quem é? — perguntei preocupada. — Para onde está me levando?
— Você acabou de cair no trote. Meus parabéns, se gritar será pior.
— Que trote, isso não tem graça — respondi aborrecida.
— Aqui você não fala, só escuta.
— Moça, é sério, para onde está me levando?
— Estou com a garota — sussurrou para outra pessoa. — Sei lá, dá um jeito, e vê se não me complica!
Aquele ser humano me puxou apressadamente e é lógico que não consegui acompanhar, não era meu ritmo e sem enxergar, era humanamente impossível. Tropecei nos meus próprios pés e acabei caindo de joelhos, mas nem isso foi o suficiente para que desistisse, ela me puxou novamente me arrastando de uma maneira bruta que me deixou ainda mais apavorada.
— Você está machucando meu braço — falei quando finalmente diminuiu o ritmo.
— Se ficasse de boca fechada, seria bem melhor — respondeu ríspida.
Ela me empurrou para dentro de um cômodo sem a menor cerimônia, e mais uma vez caí de joelhos.
— Onde estamos? — perguntei com o coração acelerado.
— Aqui é um laboratório onde pesquisam sobre veneno de animais peçonhentos — disse a garota.
— E, por que me trouxe aqui?
— Já te disse que é o trote — respondeu vacilante.
— Eu só quero ir para a sala de aula, moça. Por favor, me ajuda a sair daqui?
— Pode deixar, eu assumo daqui.
— Ah, não, você outra vez!
— Quem você esperava, o meu namorado?
Ah, que irritante aquele dedo batendo em meu ombro!
— Me deixa em paz, caramba, mas que coisa chata! — protestei tentando me levantar, mas ela me empurrou novamente ao chão.
— Te deixar em paz, sua folgada, você mexeu com homem comprometido, não está em posição de escolher!
— Isso não é trote, é uma perseguição injusta, se não parar vou ter que tomar providências — afirmei tentando me levantar novamente.
— Não me ameace, se abrir a boca vou te mostrar pessoalmente o caminho do inferno — me empurrou outra vez, então desisti.
— Está ameaçando contra minha vida?
— E quem disse que para conhecer o inferno precisa estar morto? — sua voz era cheia de veneno. — Você não sabe com quem se meteu.
— Por favor, Patrícia, vamos sair daqui, a outra moça disse que é um lugar com animais venenosos, e isso pode ser perigoso.
— Tem escorpiões, aranhas e...
— Aranhas? Eu tenho pavor de aranhas, por favor, vamos sair daqui, isso não tem graça!
— Pois eu digo que tem aranhas medonhas aqui, enormes, peludas e muito venenosas.
— É sério, eu não gosto de aranhas — falei já entrando em pânico.
— Sério? Não queria estar em sua pele, porque elas estão em todos os lugares.
— O que é isso!? — me encolhi quando algo estranho tocou em meu braço.
— Vem gente aí — disse uma voz que não identifiquei, estava nervosa demais para isso.
— Escuta aqui, se você disser uma única palavra, sobre isso, eu acabo contigo, entendeu?! — Disse ela puxando meu cabelo. — Nem te conto aonde vou enfiar essa aranha da próxima vez.
— Eu não vou falar, não vou, eu juro.
Eu estava sentada no chão com as costas apoiadas em uma parede, minha única reação foi abraçar meus joelhos e tentar não surtar.
— Ana, o que aconteceu? — perguntou Eduardo me apoiando em seus braços. — Fala comigo, por favor!
— Aranha, tem aranha em mim.
— Onde tem aranha, Ana?
— Eu não sei, estava no meu braço — murmurei me agarrando a sua camiseta.
— Não tem nada disso aqui, é uma sala vazia. Como você...
— Eu só quero sair daqui, tenho medo de aranhas — insisti.
— Como veio parar aqui?
— Eu me perdi, e tinha algo andando em mim, pensei que fosse aranha. Tenho muito medo de aranhas.
— Não tem nada aqui além de carteiras, e um armário — afirmou desconfiado, antes de me levar daquele local.
O Eduardo se mostrou muito preocupado, mas não consegui contar a verdade, tive medo dos ataques daquela garota descontrolada que estava realmente disposta a me infernizar.
— Tome, vai fazer com que se acalme — disse ele me entregando um copo de suco natural de maracujá enquanto nos sentávamos no refeitório.
— Eu agradeço pelo seu cuidado, mas...
— Foi ela?
— Ela quem?
— A Patrícia, ou suas amigas. Foram elas que te assustaram?
— Eu realmente me perdi — comentei levando o copo até a boca ainda vacilante.
— Eu não nasci ontem, Ana, por que as está encobrindo? Preciso que me fale a verdade, ou vou dar um jeito dela falar.
— Não, Eduardo, eu me perdi e não quero mais falar sobre isso. Você pode respeitar o meu pedido?
— Tudo bem — Eduardo respirou fundo. — Mas quero que saiba que o fato de respeitar o seu pedido, não significa que concorde com isso. E se a Patrícia, ou suas amigas voltarem a te importunar, eu gostaria que me dissesse a verdade.
— Eu me assustei porque algo esbarrou em mim e pensei que fosse aranha. Quando criança, uma aranha caminhou pelo meu corpo, e isso me causou um trauma, então só...
— Você vai me dizer a verdade, Ana?
— Sim, eu vou — segurei em seu braço aflita — Mas dessa vez, só dessa vez. Podemos fingir que nada aconteceu?
— Só dessa vez — concordou, para meu alívio.
Eu tentei disfarçar meu nervosismo, mas estava muito assustada, qualquer movimento e já me estremecia. Realmente tinha um trauma muito grande de aranhas e aquela brincadeira de mau gosto, acabou sendo um gatilho para minha crise de ansiedade, que eu escondi do meu amigo quando pedi para ir ao banheiro outra vez...
— Vai passar, eu sei que vai — murmurei me acalmando. — Você é forte, Ana, é guerreira, vó Maria te diria isso, o Michael te diria, então não desanime, você consegue.
Murmurei palavras de incentivo a mim mesma, antes de retornar para junto de meu parceiro de estudos, que ainda se mostrou preocupado.
— Eu realmente preciso colocar a matéria em dia — comentei ao fim da aula quando passávamos pela área livre.
— Não se preocupe com isso, eu vou te ajudar — respondeu Eduardo. — Seu irmão está chegando.
— Fiquei preso no trânsito — Michael se justificou. — Faz tempo que está esperando?
— Não, eu acabei de sair.
— E como foi o primeiro dia de aula?
— Sobrevivemos — falei apreensiva.
— Temos um trabalho para terminar, se você não se importar de ela ir até a minha casa amanhã à tarde.
"Não acredito que ele pediu permissão ao meu irmão para estudar comigo", pensei.
— Na sua casa?
— Pode ser na sua em um horário que estiver presente, se preferir.
— Meus horários são meio complicados, mas tudo bem, amanhã você me passa o endereço e o horário que eu combino com o táxi.
— Como preferir — concordou Eduardo. — Eu já vou indo, e você, mocinha, se cuide.
Ele me deu um beijo inesperado no rosto, antes de se despedir do meu irmão, e sair...
— Hum, notei um clima de romance flutuando por aqui — Michael cantarolou enquanto caminhávamos até o estacionamento.
— Então deve ter sido de outra pessoa — cantarolei em resposta.
— Será mesmo, até beijinho no rosto, alguém ganhou — ele apertou minha bochecha.
— Ele é o cara que vai me ajudar com a adaptação, e não crie um roteiro romântico porque tem namorada — dei de ombros.
— Ah, que pena, eu gostei do rapaz.
Mal sabia ele, que eu também...
Meu primeiro dia de aula, não foi bem como eu esperava, e não fazia ideia de como me livrar daquela perseguição. Sabia que ela de certa forma tinha razão em se sentir incomodada, eu cheguei do nada e passaria um tempo muito próxima ao seu namorado que, aliás, me tratava com muito carinho, o que me fez pensar, que se fosse comigo também teria ciúmes. A diferença, é que eu jamais maltrataria uma pessoa por isso.
Nunca me importei com o fato de não poder enxergar, afinal, não conhecia outra realidade, mas ter minha própria deficiência usada contra mim, me fez ficar depressiva. Era difícil lidar com esse tipo de situação, me senti fraca e indefesa diante daqueles ataques, e infelizmente pessoas assim existem, estão espalhadas por todos os lugares, e não se dão conta de como sua atitude machuca.
~♥~
Apesar de já ter se passado alguns dias, ainda estranhava bastante minha nova rotina. No interior eu nunca ficava sozinha, e ali, não havia ninguém para conversar, a vizinhança simplesmente não se misturava, eu sequer sabia quando havia alguém em casa.
— Eu sei que te prometi não sair, mas é só um sorvete — murmurei caminhando pela rua.
Não encontrei dificuldades para chegar até a sorveteria, já que era na mesma rua em que morávamos, só senti de não ter a minha amiga Paulinha comigo, ela sempre me acompanhava e ficava narrando os acontecimentos a nossa volta.
— Estava pensando em você — falei ao atender o telefone. — Amiga, está me fazendo tanta falta. Se soubesse tudo que passei hoje (...)
Paulinha ficou indignada com a atitude das meninas na faculdade, mas, ao mesmo tempo, muito curiosa sobre meu novo amigo, já que eu não parava de falar sobre ele.
— Agora vou ficar curiosa para saber como é esse príncipe — respondeu ela do outro lado da linha.
— Nem eu sei, e vou ficar sem saber porque se tocar o rosto dele para descobrir, ela me escalpela — rimos juntas.
— Ah, Ana, é tão ruim olhar para aquela casa fechada, vocês estão fazendo muita falta.
— Logo vocês se acostumam com os novos vizinhos — comentei.
— Sim, tem uma menina da nossa idade, muito simpática, veio conhecer a casa e já fez amizade com todo mundo aqui. Os meninos estão disputando para ver quem consegue o coração da donzela solteira — debochou aos risos.
— O povo daqui não se mistura, a rua está sempre vazia, você só escuta barulho de carro passando. O Michael disse que é assim mesmo, mas eu acho, sei lá, muito frio — comentei enciumada.
— Meu pai disse que é um lugar muito perigoso, toma cuidado — disse ela.
— Vou me cuidar. Me esquece não, tá? — pedi insegura. — Manda um abraço para a galera aí, estão me fazendo muita falta.
Sei que era egoísmo meu, mas ouvir que outra garota moraria em minha casa, e que caiu nas graças dos meus amigos me deixou enciumada. Eu sabia que logo iam me esquecer, só não queria que fosse tão rápido, foram dezenove anos ali na mesma casa, na mesma vizinhança, e agora simplesmente havia outra pessoa em meu lugar.
— É Ana Clara, ninguém disse que a vida era fácil — murmurei ao sair daquela sorveteria.
— Moça bonita, com a distraída, saiu e deixou a bolsa em cima do balcão — disse uma voz masculina, bastante simpática, me alcançando no caminho.
— Ah, sim, que cabeça a minha, obrigado moço — agradeci já estendendo a mão.
— O celular saliente no bolso de trás também seria bom evitar, nunca se sabe quem vai passar por nós na rua — orientou.
— Eu realmente estou na cidade grande — murmurei com um sorriso. — Tem coisas que preciso me acostumar, e uma delas é todo esse cuidado, de onde eu vim era tudo tão tranquilo.
— Não deveria ser assim, mas infelizmente o ser humano tem o dom de estragar a própria raça — disse ele. — Mas me fala, está gostando da vizinhança? — perguntou me acompanhando.
— E temos vizinhança? — eu ri. — Esse povo não se mistura, eu sequer conheço os vizinhos de muro, você acredita?
— Realmente é uma rua bem parada, mas logo se acostuma.
— Tomara, mas me parece ser um bairro bom para se morar.
— É, já vi piores — disse risonho.
— Me assusta não, moço, eu fico a maioria do tempo sozinha — comentei.
O rapaz era muito simpático e me acompanhou até o portão da minha casa, o que acabei achando bom, porque estava me sentindo sozinha e agora pelo menos tinha alguém para conversar.
— Eu moro aqui perto, se quiser dar uma voltam dia desses, podemos combinar alguma coisa.
— Você é muito gentil, mas por enquanto não tenho autorização para ficar saindo. Meu irmão tem medo de que saia sozinha, me perca e não saiba voltar, mas enfim, agora eu preciso entrar, já está ficando tarde.
— Seu irmão tem razão, é perigoso andar sozinha por aí, pode ser assaltada, e, também, não deveria dar atenção a estranhos.
— Nossa, então é melhor não te dar atenção, não é mesmo? — eu ri.
— Talvez eu não seja uma boa companhia mesmo.
— Você me devolveu a bolsa, o que significa que não vai me assaltar, então... — dei de ombros.
— Talvez eu tenha um modelo igual a esse no meu closed, sua boba — respondeu debochado.
— É, definitivamente você é estranho — eu ri.
— Bem mais do que você imagina — disse ele me dando um beijo inesperado no rosto, mais precisamente no canto da boca antes de se afastar.
— O que foi isso? — eu ri levando a mão até a bochecha enquanto entrava no quintal.
Não sei o que deu naquele ser misterioso, mas achei fofo, e depois de um dia tumultuado encontrar um príncipe encantado até que não seria tão mal. O problema é que sequer perguntei seu nome.
Michael chegou por volta de meia noite com uma pizza quentinha e cheio de assuntos sobre como foi o seu dia, e para variar, omiti os fatos que ele deveria saber sobre os ataques que recebi na universidade, ainda tinha a esperança de contornar aquela situação e poder estudar em paz. Ele era praticamente a única presença masculina evoluída com quem convivi, pelo menos até chegar em São Paulo.
Meus amigos eram rapazes com mentalidade de meninos que talvez um dia amadureceriam, mas enfim, agora eu estava entrando em um campo desconhecido que logo de cara já me causou sensações estranhas e vários conflitos internos. Contei sobre minha ida até a sorveteria, e como já era esperado, levei um sermão por sair sozinha acompanhado de mil motivos para não dar atenção a estranhos em uma cidade tão perigosa.
Meu irmão era um bom ouvinte e sabia tudo sobre mim, assim como sempre se abria comigo também. Eu não tive uma presença feminina para me orientar sobre nada, minha avó se foi muito cedo, mas mesmo quando viva, nunca foi de falar comigo sobre certas coisas, então, Michael era quem me orientava em tudo.
Graças a sua profissão, ele teve vários treinamentos de como abordar todos os tipos de assuntos com adolescentes, e isso de certa forma facilitou e muito para que conseguisse lidar comigo. Como aquela noite, por exemplo, que ele me alertou dos perigos que corria dando corda para um rapaz desconhecido no meu portão, e de como aquilo poderia terminar mal.
Ele tinha o dom da palavra e conseguia abordar até os assuntos mais constrangedores de uma maneira fácil de se fazer entender, tanto, que sempre era convidado para ministrar palestras em colégios para adolescentes. Às vezes ele ria da minha inocência, o fato de não ter memória visual dificultava um pouco as coisas na hora de me explicar certos assuntos, mas enfim, acabamos nos distraindo e aquela conversa acabou se estendendo até duas horas da manhã.
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