Capítulo 7
Eu acordei com o coração disparado, como se alguém tivesse gritado no meu ouvido. Era apenas o som das galinhas do lado de fora, mas meu corpo parecia não entender. Eu sentei na cama e percebi que a cabeça latejava, um peso estranho que ia além da ressaca. Tudo parecia exagerado: o sol entrando pelas frestas das cortinas, o cheiro de limão misturado com terra molhada, o som insistente das aves.
— Que maravilha... — murmurei, esfregando o rosto e tentando organizar os pensamentos. A noite anterior veio à tona em flashes confusos — uma conversa com Jorge sobre cavalos, uma taça a mais de vinho do que o necessário e risadas que agora soavam distantes e distorcidas.
Caminhei até o banheiro tropeçando nos próprios pés, e o reflexo no espelho foi quase um susto à parte. Olhos inchados, cabelo desgrenhado, e uma expressão que parecia perguntar: "o que você fez consigo mesmo, Marcus?".
Depois de um banho rápido — o suficiente para me fazer sentir humano outra vez —, fui até a cozinha e encarei a cafeteira como se fosse um instrumento de salvação. Preparei o café e sentei-me à mesa com a caneca quente entre as mãos, tentando organizar meu dia. Jorge provavelmente apareceria em algum momento, talvez montado naquele cavalo que parecia saído de um filme de aventura.
"Certo, ressaca ou não, preciso sair daqui e fazer algo útil," pensei, mas o som de passos do lado de fora interrompeu meus planos. A porta rangeu levemente quando se abriu, revelando Jorge com seu sorriso habitual e uma cesta cheia de frutas.
— Bom dia, sobrevivente! Como está a cabeça? — ele brincou, entrando sem cerimônia.
— Dolorida, mas funcionante, acho. Você sempre acorda assim tão animado? — retruquei, tentando parecer mais vivo do que me sentia.
Jorge riu, depositando a cesta na mesa. — Nem sempre, mas eu gosto de ver meus hóspedes aproveitando a estadia. Pensei que talvez você precisasse disso. — Ele apontou para a cesta, que tinha morangos frescos, pão caseiro e um pequeno pote de mel.
— Eu precisava mesmo — admiti, agradecendo com um aceno de cabeça. Enquanto ele falava sobre os planos para o dia — algo sobre visitar um mercado local —, comecei a sentir a ressaca ceder. Talvez não fosse apenas o café ou as frutas; talvez fosse o fato de que, aqui, mesmo um começo de dia bagunçado podia acabar se tornando uma boa história.
Deixei o café esfriando na mesa de madeira enquanto Jorge se movimentava pela cozinha com uma agilidade que contrastava com o meu estado deplorável. Ele pegou uma panela e começou a mexer em algo no fogão. O cheiro de alho e cebola sendo refogados cortou a acidez do meu estômago embrulhado.
— Vai comer algo? Estou fazendo ovos mexidos,— perguntou ele, sem tirar os olhos da panela.
Por mais que a ideia de comer qualquer coisa me fizesse querer recuar, o cheiro estava começando a me convencer. — Acho que vou tentar. Melhor do que continuar nesse estado, — respondi, tentando não soar miserável.
— Boa escolha. Minha mãe sempre dizia: cura de ressaca é ovo mexido e café preto, — disse Jorge, rindo e apontando para a cafeteira.
A verdade é que eu me sentia como um hóspede mal-educado. Quem recebe ajuda assim, sem nem pedir? Eu não estava acostumado com essa hospitalidade.
A cena diante de mim era tão surreal quanto as memórias embaralhadas da noite anterior. Jorge, de pé na minha cozinha, mexendo ovos numa panela como se fosse o dono do lugar.
— O que você está fazendo aqui? — deixei escapar, a voz ainda rouca de sono e ressaca.
Ele virou a cabeça para me olhar, um sorriso despreocupado no rosto. — Achei que precisasse de uma mão. A julgar pelo seu estado ontem, imaginei que hoje não seria fácil.
Eu pisquei, tentando juntar os pedaços na minha cabeça, ele sabia da minha ida ao pub, sabia que eu havia bebido, será que sabia que eu estava com Gabriel? Não nos víamos desde o beijo que eu havia lhe dado. Desde que ele me deixou ali, confuso e exposto. Não entendi o motivo da distância, mas também não tive coragem de procurar por ele. E agora, ali estava ele, como se nada tivesse acontecido.
— Onde você estava ontem? — perguntei, cruzando os braços.
Ele levantou uma sobrancelha. — Isso importa?
Sim. Importava. Mas antes que eu pudesse insistir, flashes da noite anterior começaram a surgir. Gabriel. O pub.
O bar tinha uma atmosfera quente e familiar. Eu não costumava me soltar tanto, mas Gabriel fazia parecer fácil. Estávamos sentados no balcão, rindo de uma história bizarra sobre uma vez que ele tentou convencer turistas de que limões locais eram afrodisíacos. A essa altura, as bebidas já possuíam meu corpo.
— Você devia tentar. Imagina quantos limões venderíamos se fosse verdade,— ele disse, rindo alto e batendo a mão no balcão.
O primeiro drink foi suave. O segundo, um pouco mais forte. No terceiro, eu já estava rindo como se conhecesse Gabriel há anos. Ele tinha essa energia magnética, um jeito de tornar qualquer lugar mais leve.
— Você precisava disso,— ele comentou, os olhos brilhando sob a luz do bar. — Você tá sempre tão sério.
— Não é verdade,— respondi, mas minha risada me entregou.
Por um momento, não havia nada além do som abafado da música e os olhos de Gabriel me encarando, mais próximos do que eu esperava.
E então, aconteceu. Não sei se foi o álcool, o ambiente, ou o fato de que ele estava ali, tão presente e real, a ligação de Kaique de alguma forma poderia ter me afetado. Nossos lábios se tocaram, e foi como se o mundo tivesse parado por um segundo.
Mas o momento foi breve. Ele recuou primeiro, com um sorriso torto e um rubor evidente nas bochechas. — Desculpa, — ele murmurou, mas eu não sabia dizer se ele estava realmente arrependido.
Eu não disse nada. Apenas continuei bebendo, como se fosse possível apagar aquele momento com mais um gole.
De volta à cozinha, encarei Jorge enquanto os flashes do beijo com Gabriel me atingiam como um soco. O que eu estava fazendo?
— Você tá bem? Parece que viu um fantasma, — Jorge disse, me estudando.
— Eu... só não esperava te ver aqui, — murmurei.
— Queria ter certeza de que você estava bem. Mas, se quiser que eu vá embora, é só falar, — ele respondeu, e pela primeira vez, percebi uma vulnerabilidade em sua voz.
Eu hesitei. O que eu realmente queria? O beijo com Jorge ainda estava fresco na minha mente, mesmo depois de uma noite inteira tentando apagá-lo no pub.
— Por que você foi embora aquele dia?— perguntei, finalmente soltando a pergunta que me atormentava desde o beijo.
Ele colocou a espátula na pia e se virou para mim, cruzando os braços. — Achei que você precisava de espaço.
— E agora? Por que você tá aqui, Jorge?
Ele abriu a boca para responder, mas fechou de novo, como se escolhesse as palavras com cuidado.
— Come seus ovos, Marcus. Você vai precisar de forças pra lidar com a ressaca e com tudo o que vem depois, — ele disse, pegando a própria xícara de café e se afastando para a varanda.
Fiquei ali parado, encarando os ovos no prato e me perguntando como minha vida tinha se tornado um nó tão complicado. O que Jorge, Gabriel e Kaique haviam em comum? Eu e toda minha complicação.
O dia parecia deslizar devagar, como mel escorrendo de uma colher. Depois do café com Jorge — ou melhor, da torrente de emoções mal resolvidas que veio junto com ele —, não consegui reunir forças para sair da cama.
Minha cabeça ainda latejava, mas era difícil saber se era pela ressaca ou pela confusão emocional. O laptop repousava ao meu lado, com a página do briefing da campanha de Natal aberta. As ideias que deveriam fluir estavam presas em algum canto nebuloso da minha mente.
Peguei o telefone e disquei o número da única pessoa que fazia sentido nesses momentos: Helena.
— Marcus? Tá vivo? — ela atendeu, a voz carregada de sua energia tranquila e sarcástica de sempre.
— Por pouco, — murmurei, puxando o cobertor para cima dos ombros.
— O que aconteceu? Você soa como alguém que foi atropelado por um caminhão de limões,— ela brincou, rindo levemente.
— Pior. Um caminhão chamado Jorge e Gabriel.
Ouvi a pausa do outro lado. Então veio a risada contida. —Então ele apareceu? Conta tudo, vai!
Suspirei, passando a mão pelos cabelos bagunçados. — Apareceu hoje de manhã. Na minha cozinha. Fazendo ovos. Como se fosse a coisa mais normal do mundo.
— Uau. E o que você fez?
— Fiquei olhando, tentando juntar os pedaços do que está acontecendo na minha vida. Ah, e ontem à noite...— Engoli em seco, sabendo que não tinha como evitar. — Eu beijei o Gabriel.
Silêncio. Depois, um leve suspiro. — Dois beijos em dois dias com duas pessoas diferentes? Você tá querendo me matar de curiosidade, né?
— Helena, por favor, não começa.
— Tá, desculpa. Mas, Marcus, vamos lá: você beijou Jorge porque...?
— Porque foi intenso. Porque ele me olhou daquele jeito. Porque... não sei. Eu me abri para ele, ele me contou um pouco da sua vida. Acho que eu só estava sensível.
— E Gabriel?
— Porque a noite foi incrível. Porque ele me fez rir. E eu havia conversado breve mente com Kaique, então pode ter ocasionado.
Ela riu. — Bom, pelo menos você tem autoconsciência. E agora? Vai fazer o quê?
— Focar no trabalho,— falei, pegando o laptop e abrindo o arquivo da campanha. — Preciso terminar as ideias para o Natal.
— Kaique não para de falar sobre isso, ele disse que você ainda não entregou nem um esboço se quer.
— Imagino. E eu preciso transformar isso em algo que pareça mágico e acolhedor.
— Tá, pensa comigo, — ela começou. — Natal é sobre conexões. Que tal criar algo que mostre momentos simples, reais? Como, sei lá, uma avó assando biscoitos com os netos ou amigos improvisando uma ceia.
— Isso é bom,— murmurei, já digitando. — Algo íntimo, que mostre que o Natal não precisa ser perfeito para ser especial.
— Exatamente. Dá para brincar com luzes, sons suaves e muita emoção.
As palavras começaram a se encaixar, e as ideias fluiram melhor do que eu esperava. Digitei freneticamente, ajustando o texto. Aos poucos, a campanha ganhava forma.
— Valeu, Helena. Sério.
— Para isso servem as amigas, mesmo que você tenha me largado aqui sozinha a sei lá quantos quilômetros de distância. — ela respondeu, rindo. — Agora, sobre Jorge e Gabriel...
— Eu ligo depois, — interrompi, já sentindo que ela ia começar um interrogatório.
— Covarde.
Ri antes de desligar, sentindo-me um pouco mais leve. Fechei o laptop, voltei a me enfiar debaixo do cobertor e, por um instante, deixei o peso do dia se dissolver.
Enquanto eu encarava o teto, ouvindo o som suave dos galos na quinta ao longe, minha mente se recusava a desacelerar. O trabalho estava encaminhado, Helena tinha ajudado a clarear algumas ideias, mas as questões pessoais permaneciam como um novelo emaranhado dentro de mim.
Peguei o celular novamente, sem nem saber direito por quê. O contato de Gabriel estava ali, com a última mensagem ainda não respondida:
Gabriel: "Foi divertido ontem. Espero que você tenha sobrevivido à ressaca 😅."
Suspirei, relendo a mensagem algumas vezes. Ele tinha razão, a noite tinha sido incrível. Rimos, bebemos, falamos sobre as coisas mais aleatórias, desde o clima seco que estava prejudicando os limoeiros até qual é o melhor filme de Natal de todos os tempos. (*Ele jurou que era "Esqueceram de Mim", enquanto eu defendia "Simplesmente Amor.")
Mas o beijo... O beijo não foi planejado. Foi um impulso, um momento onde o riso e a proximidade se transformaram em algo mais. Não tinha certeza se foi o álcool ou a química entre nós, mas agora isso complicava ainda mais as coisas.
Eu escrevi e apaguei várias respostas antes de finalmente digitar:
"Acho que sobrevivi. Foi uma noite ótima mesmo. Obrigado por isso."
Simples, direto. Sem mais complicações. Enviei antes que pudesse reconsiderar.
Em seguida, meu telefone vibrou com uma notificação. Mensagem de Jorge.
Jorge: "Estou fora da fazenda hoje, mas volto à noite. Espero que esteja se sentindo melhor."
Fiquei olhando para a tela, sem saber como responder. Ele estava claramente tentando manter a comunicação, mas a lembrança do beijo na cozinha me deixava confuso.
Finalmente, decidi responder:
"Obrigado. Estou melhorando aos poucos. Aproveite o dia."
Deixei o telefone de lado e me afundei ainda mais nos travesseiros. O peso das duas mensagens me atingiu de forma diferente, mas igualmente forte.
Helena tinha razão; minha vida estava começando a parecer o enredo de uma comédia romântica caótica.
O resto do dia passou lentamente. Consegui finalizar algumas ideias para a campanha, revisei e enviei para o cliente. Pelo menos, no trabalho, as coisas estavam indo bem.
À noite, enquanto o céu escurecia e as estrelas começavam a aparecer, senti uma mistura de ansiedade e expectativa. O que viria a seguir? Com Jorge e Gabriel, com o trabalho, com tudo?
Eu só sabia de uma coisa: amanhã traria novas complicações, novos momentos e, talvez, algumas respostas.
Por ora, o silêncio e o céu estrelado eram suficientes.
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