Pássaros e Lagartixas
Ele era muito jovem, tinha pouco mais de doze anos. Sua família o levou para uma casa de campo pela terceira vez, e ele já tinha se apaixonado por aquilo na primeira. Essa viagem, no entanto, era diferente, pois seu melhor amigo Thiago os acompanharia dessa vez. Thiago era um bom amigo, e Fernando sempre me dizia como sentia pena dessa ter sido a última vez que o teve por perto.
A viagem de carro foi tranquila. Fernando e Thiago passaram as horas contando os carros que fossem vermelhos, mas perderam a conta por volta do quadragésimo.
"Eu vou testar meu estilingue nos pássaros", Thiago brincava. "Aposto que acerto mais do que você".
Meu amigo Fernando me disse que não gostava dessa ideia. Veja bem, Thiago veio de uma família do interior, o passatempo mais comum de seu pai e tios era capturar lagartixas e injetar elas com uma seringa de cachaça para ver o animalzinho cambalear bêbado por aí. Thiago sempre se defendia aos risos, dizendo que nunca foi muito cruel com nenhuma, porém não se importava quando Fernando levantava que elas provavelmente morriam um tempo para algum predador por estarem bêbadas.
Os pais de Fernando sempre diziam que ele estava se preocupando demais com uns pássaros e lagartixas. "Melhor do que ficar o dia todo em casa lendo livros o dia todo", eles diziam, e ele abaixava a cabeça e assentia, para não provocar os pais.
A casa de campo não era muito grande, apenas uma cabana de madeira no topo de uma pequena colina, próxima de um bosque e uma estrada de terra. Por dentro do bosque serpenteava um não muito grande rio, onde o pai de Fernando um dia mostrara-lhe uma serpente gigantesca submersa próxima à costa. A interferência humana nesse tipo de lugar é pouca, quase nula.
Eles passaram passaram o primeiro dia do fim de semana brincando na mata, aproveitando o ar livre, se divertindo. A noite, Thiago quis testar sua ideia de matar passarinhos e chegou bem perto de acertar alguns, mas eles sempre fugiam para o bosque. Fernando me contou em detalhes como ele ficava na ponta da cadeira quando uma pedra passava perto de um pássaro, e passou a propositalmente apontar sua lanterna para as aves para que elas não se aproximassem da casa o suficiente.
"Todos os pássaros 'tão no bosque", Thiago dizia. "E 'tá muito escuro, por isso eu não consigo acertar".
Fernando nunca pressionou ele para acertar, mas ao mesmo tempo fingia não se importar. Sempre foi baixo e franzino, e virava alvo do que hoje em dia chamamos de bullying. Já Thiago era um pouco mais alto e tinha "tanta massa quanto coragem" (palavras do Fernando, interprete isso como quiser). Quando se tornaram amigos, passaram a proteger um ao outro, e o Fernando não queria começar uma briga ou perder essa amizade.
Agora vem uma das afirmações que Fernando mais se arrependeu na vida. E eu digo uma das, pois houveram muitas afirmações desse tipo em sua vida.
"Você não vai acertar um pássaro no bosque a essa hora"
O que para Fernando era um conselho, Thiago tomou como um desafio. Apesar da escuridão, apesar do território desconhecido, o garoto com um estilingue insistiu em irem até a mata. Algumas desculpas que meu amigo tentou dar foram "Está muito escuro", rebatida com "Então leva sua lanterna", e "Vou avisar meus pais antes", por sua vez rebatida com "Eles não vão deixar. Deixa de ser estraga prazeres!". Tomado pela pressão, Fernando aceitou seguir o amigo.
Sob a luz da lua, os dois garotos de doze anos andavam lado a lado pelo campo vazio, os únicos sons sendo dos seus passos e dos grilos. Fernando apontava sua lanterna para o chão, temendo pisar em um espinho, tropeçar numa pedra ou ser picado por uma cobra. Podia ver no rosto do seu amigo que, apesar de querer esconder, Thiago estava tão nervoso quanto. Segurava o estilingue com a mão direita, e tinha uma pedra pequena na mão esquerda. Quando andava, sua calça fazia o barulho de uma dúzia de outras pedrinhas balançando no bolso. Fernando teria ajudar com as pedrinhas, mas seu short era de pano, sem bolsos, com um cordão branco que o prendia na cintura.
"A gente ainda pode voltar", Fernando quebrou o silêncio. Thiago desacelerou o passo, porém não parou.
"Volta você, se tiver com medo".
Fernando suspirou, e deu alguns passos a frente para iluminar o caminho.
"Não sem você".
O bosque era denso. Toda vez que davam um passo, podiam ouvir um galho ou folha quebrando sobre seus pés. O barulho dos grilos já estava baixo e afastado. Quando olhavam para trás, podiam ver a silhueta da casa de campo, iluminada pelas luzes internas.
Fernando me descreveu como sentia que algo daria errado. Nunca entendeu como ou porque, mas sentia em seu cerne que eles estavam em perigo. Eu já disse para ele que os sentidos dele perceberam algo que sua mente consciente falhou em notar, mais ou menos como quando temos a impressão de estar sendo observados porquê nossa visão periférica percebeu um observador.
Seus jovens corações aceleravam mais e mais. Seus olhos alternavam entre observar seus pés abaixo e o caminho que seguiam, e observar os galhos acima e os pássaros que podiam passar. A esse ponto, Fernando apenas torcia que Thiago acertasse um só pássaro para os dois poderem sair de lá o mais rápido possível.
Agora, até a luz da lua e das estrelas se tornara fraca atrás dos galhos e folhas, e a única luz forte era da lanterna de Fernando. Thiago ficava próximo do amigo, não só por ser a única fonte de luz, mas por estar com tanto medo quanto ele. O vento uivava quase como um predador, e as folhas faziam pequenos redemoinhos quando empurrados pela brisa.
O sentimento de perigo voltou, e dessa vez era diferente. Não era somente um medo do escuro, e sim um medo por suas vidas. Ambos podiam sentir isso, algo que Fernando perdeu quando Thiago disse que eles deviam voltar. Concordou, e virou para tentar seguir a trilha de volta.
Mas... que trilha?
A melhor pista que eles tinham era seguir o caminho que pensavam ser certo. Em poucos minutos, eles já não reconheciam mais nada. As árvores que passaram tinham sumido, os galhos pareciam diferentes e até as pegadas que eles deixaram não mais existiam. Fernando se segurava para não chorar, e Thiago começou a se sentir culpado.
"Você ainda vai ver nascer do sol, Fernando", ele dizia baixinho, tentando reafirmar seu amigo.
Fernando diz jurar ter ouvido uma risada vindo das árvores, reagindo a promessa infundada de Thiago. Na época pensou ser apenas o vento ou sua imaginação, mas no fim da noite já duvidava muito disso.
A lanterna agora se focava apenas no chão, com Thiago procurando um caminho e Fernando garantindo que eles não tropeçassem. Falando assim, eles parecem muito organizados, mas meu amigo sempre ressaltou o quão desesperados eles estavam. O que provavelmente foi só alguns minutos pareceu horas de tensão e terror. E se não encontrassem uma saída? Talvez tivessem que passar a noite toda na floresta, e que tipo de animal podia encontrá-los? A qualquer momento eles podiam ser picados por uma serpente ou uma aranha. Talvez entre as árvores houvesse uma onça, um lobo guará, ou...
"Uma lagartixa?", Fernando disse.
Thiago que não prestava atenção no caminho, virou os olhos para o foco da lanterna. No chão, menos de um metro deles, estava caída de costas uma lagartixa, que não se movia nem um milímetro. Nenhum dos dois disse nada, e por um momento foi como se não houvesse nenhum som além do vento.
Antes de Thiago conseguir falar algo, os dois ouviram um barulho atrás deles. Um único passo. Ao se virar, a lanterna revelou um caminho vazio, sem nenhuma pessoa ou animal. Mas aquela sensação não sumia, a sensação de estarem sendo observados.
A sensação de que só um deles sairia inteiro daquele bosque.
E foi quando Fernando percebeu. Olhou a volta, e não viu nenhum sinal de Thiago ou seu estilingue. Seu olhos lacrimejaram, sua mente sem conseguir entender o que estava acontecendo. O vento ficou mais forte, seu coração palpitava no peito, não importa pra onde olhasse, podia sentir que o perigo estava bem atrás dele.
"Como é estar sozinho?", uma voz na mata perguntou. "Como é saber que quem pode te ajudar virou o rosto?", e era a voz do Thiago.
Isso era peso demais para a mente de um garoto de doze anos. Fernando chorou, conseguindo vocalizar apenas a palavra "Para!" algumas vezes. Seu choro se tornou um pedido por ajuda, respondido apenas por uma risada. A mesma risada que ouviu antes das árvores.
Sentiu sua camisa ser puxada de trás, e seu corpo impactou com força no chão de terra e folhas caídas. A lanterna caiu de suas mãos fracas, sua luz vagamente iluminando uma forma acima de si. Um terror inimaginável se mesclava com a escuridão da noite, esboçando um sorriso de orelha a orelha enquanto uma mão escura tampava a boca do garoto, impedindo seus gritos. Sentiu seu corpo afundar na terra e seus gritos abafados já te nada serviam. Cada músculo totalmente paralisado. Quando tentava se levantar, sentia o peso de um único pé sobre seu peito, apertando-o contra o chão, mas não conseguia ver nada naquele breu. Nunca em sua vida Fernando se sentiu mais próximo da morte.
Foi quando ouviu um grito à sua direita. Não era um grito de dor, mas sim de raiva. Thiago jogou todas as pedras de seu bolso na direção de Fernando. Elas passaram por cima dele, no lugar onde o garoto sentia a forma, e o sorriso no escuro sumiu. O chão não mais já lhe engolia, e, tossindo, seu reflexo foi levar a mão até a lanterna no chão e tentar encontrar o perigo. Mas não viu nada.
Thiago correu em sua direção, seus olhos também lacrimejando em raiva e desespero. Enquanto Fernando se levantava, os dois sentiram uma presença se aproximando da floresta.
"Corre!", gritou, segurando sua lanterna com força enquanto se apoiava numa árvore. Ficara sem respirar tempo demais e já sentia-se tonto. Suas pernas fracas, seu foco confuso. Thiago puxou ele pela camisa em desespero, quase arrastando-o.
"Não sem você!", gritou de volta, tentando seguir pela direção que achava que tinha vindo. Foi então que Fernando notou a quantidade de ferimentos nos antebraços do seu amigo. Não sabia se eram cortes ou hematomas, e estava envolvido demais em adrenalina para prestar muita atenção.
Sem cautela, se desequilibraram em muitas raízes de árvore. O vento frio parecia bem mais forte, e os pequenos tornados de folhas eram tão violentos que arranhavam seus pés. Não percebiam a dor, no entanto, tão focados em fugir da presença que parecia os seguir por simplesmente existir em qualquer região que a lanterna não iluminasse.
Fernando sentiu algo bater em seu ombro, mas ignorou. Logo sentiu novamente, e dessa vez doeu bem mais. Na terceira vez, a dor do impacto era muito grande para ignorar. Ainda correndo e ofegando, tentou dizer algo à Thiago, mas viu uma pedra cortar o ar e acertar as costas dele. Uma pedra se tornou duas e logo era como se o bosque os apedrejasse enquanto corriam. Seus braços doíam e suas costas começaram a sangrar por baixo da camisa.
Foi aí então que tropeçou em uma raiz de árvore. Dessa vez não conseguiu se equilibrar novamente, rolando no chão de terra. A lente da lanterna quebrou ao impactar com o chão, gerando apenas uma luz fraca direcionada à frente, onde pode ver Thiago, que não percebera sua queda. Em desespero, se levantou mesmo com os joelhos e cotovelos ralados e tentou voltar a correr.
No entanto, não saía do lugar. A risada que parecia longe ficou cada vez mais próxima, até parar a centímetros de suas costas. Podia sentir a respiração pesada contra sua nuca, e algo o fez parar de correr. Como se não houvesse mais chance.
E então puxou o cordão do short. Tirou-o totalmente, tentando se concentrar apesar do medo. O frio aumentava, uma mão segurando seus braços sem fazer força - apenas encostando. Outra mão passando pelo seu ombro. Logo uma terceira, uma quarta, uma quinta. Todas segurando seu corpo como se juntando forças para puxá-lo para o escuro. Com o mindinho segurava seus shorts e com os outros dedos e a outra mão, tentava fazer um nó. O nó mais apertado que conhecia, o mais difícil de desfazer possível. As mãos começaram a apertar seu ombro, seu pulso, suas canelas, sua testa.
Fernando jogou o nó por cima do ombro, apertando os olhos fechados. Sem pensar, tentou correr novamente. E conseguiu. O vento se afastou, a escuridão diminuiu, a lua apareceu. Não via mais nenhum sinal de Thiago, muito menos de uma saída, mas sabia que a forma passaria muito tempo tentando desatar aquele nó. Quando viu uma abertura na floresta, saiu com um salto, impactando com os pés sobre o profundo rio que cortava o bosque.
E então, subitamente, apagou.
Quando abriu os olhos no que pareciam ter se passado horas, estava deitado com a cara na terra molhada das margens do rio. O sol do amanhecer iluminava o rio. A parte esquerda de seu corpo, totalmente úmida e submersa. Suas roupas rasgadas e sangue escorria de sua testa. Tentou levantar seu corpo sujo e sentiu uma imensa dor no seu peito, como se ele tivesse recentemente tido sido esmagado por algo. Conseguiu ficar de joelhos e se arrastar para longe da água, por instinto evitando qualquer chance de ver uma cobra. Uma buraco de galhos quebrados e terra arrastada na mata ciliar indicava por onde tinha vindo, escorregado, e caído. Não podia se conter em sorrir ao perceber que pode ver o nascer do sol.
Foi nesse momento que percebeu que Thiago não estava por lá. Seu coração acelerou, temendo pela vida do seu amigo. O que eles passaram, aquilo foi real? Para onde Thiago foi? Quis chamar por ele, mas não conseguiu, sentindo sua garganta seca demais para falar alto.
Ouviu passos, mas dessa vez olhou com esperança. Um homem ao longe com uma lanterna gritava, procurando alguém na mata. Ele parecia cansado, mas de longe Fernando não conseguia reconhecer quem era. Não conseguia gritar por ajuda, e começou a perceber que o homem se afastava. Ele não conseguia ouvir. Tentou ficar de pé, mas também não conseguiu. Não sentia tanta dor, mas o cansaço pesava demais em seu franzino corpo. Seja do monstro ou da queda, os cortes e ferimentos continuavam em seu corpo, piorando a situação.
Fernando viu sua chance de salvação se afastar, mais e mais. Respirou rápido, tentando se arrastar, o que só machucou ainda mais seus arranhões.
Finalmente, pegou uma pedra da margem e jogou no lago com a maior força que conseguiu. O barulho era claramente não natural, e foi o suficiente para que a silhueta ao longe se virasse e fosse em sua direção. Fernando riu e sorriu, percebendo que estava salvou. Para garantir, pegou mais uma pedra, mirou no rio e percebeu...
Descendo o rio, lentamente, havia um cordão branco. Ele se prendeu em uma das pedras do lado, e lá parou, desamarrado, sem nenhum nó.
E uma risada ecoou pela floresta.
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