Capítulo 4 - O reciclador
NO MÊS DE ABRIL, a policial retornou às suas funções no DPSF ávida para continuar as suas investigações sobre o Comando Central, mas antes que pudesse tomar a frente dos conflitos armados que eclodiam em toda a cidade por conta da guerra de gangues entre a facção criminosa de Gerônimo Falcão e a recém-chegada organização controlada por aquele denominado "Jota", a moça foi chamada até a sala do delegado. Era o primeiro dia do seu retorno e Rui Guimarães a recebeu a sós, notando a sua aparência desleixada.
— Você está péssima, Loyola! — disse, se afundando em sua poltrona atrás da mesa empilhada de processos criminais. — Achei que fosse viajar em suas férias, curtir um pouco a vida. Está com cara de quem mal dormiu à noite!
Ela estava com o rosto sisudo e deu de ombros. A sua postura era encurvada. Bolsas escuras marcavam a pele abaixo dos olhos e os cabelos ondulados estavam presos de maneira pouco asseada num rabo de cavalo.
— Minhas férias foram ótimas — disse, irônica. —, mas agora quero voltar à ativa o quanto antes.
Guimarães era um sujeito magro, ombros ossudos, rosto fino sem barba e cabelos penteados de lado. Tinha olhos encovados e lábios grossos herdados do pai, um descendente de indígenas nascido em Manaus, região Norte do país. Ele observou a moça à sua frente por alguns segundos antes de recomendar:
— Precisa voltar a frequentar o consultório da doutora Mercedes para que consiga retomar a sua rotina diária dentro do DP, Loyola. Todos nós sentimos a morte do Pablo, mas entendo que para você deve ter sido ainda mais duro perdê-lo de maneira tão trágica, afinal, ele era o seu parceiro de ronda... Se quer mesmo voltar ao trabalho com tudo para ocupar a cabeça, preciso que visite a psicóloga com maior regularidade. Ela vai te botar em forma outra vez mais depressa do que imagina.
Regiane se mexeu na cadeira diante da mesa de maneira desconfortável. Desviou o olhar do delegado para se fixar no porta-retratos com a imagem da família de Guimarães sobre o tampo branco, depois, coçou o nariz.
— Agradeço o conselho, senhor. Vou arranjar um tempo em minha agenda para voltar à terapia, mas agora, se não se importa, queria falar de trabalho.
O delegado assentiu.
— Muito bem então... — Guimarães tirou uma pasta de documentos da gaveta à direita da sua mesa e a colocou ao alcance das mãos de Regiane. Ela a apanhou rapidamente. — O Laguna continuou a sua investigação sobre o Comando Central durante as suas férias e ele conseguiu informações importantes sobre essa nova facção que vem tentando tomar o crime organizado em São Francisco. Quero que trabalhe com ele a partir de agora.
Ela torceu o nariz.
— Prefiro trabalhar sozinha, senhor.
Antes que Guimarães retrucasse, ela começou a folhear a pasta de arquivos e viu fotos tiradas em uma investigação há alguns dias. Nas imagens, um vereador de prestígio na cidade aparecia jantando no Piacere della Itália acompanhado de mais dois homens, ambos desconhecidos de Regiane.
— Se quer mesmo voltar às ruas para investigar, você terá que fazer isso acompanhada do policial Laguna, Loyola, e isso não é uma sugestão. É uma ordem.
Os seus olhos castanhos fitaram os do chefe atrás da mesa e, embora houvesse uma ruga de desaprovação em sua testa, ela acenou que concordava.
O que ele acha? Que vou sair por aí matando todo mundo que pode estar envolvido com a morte do Pablo? pensou ela, ainda folheando os arquivos de papel em suas mãos.
— Quem são esses dois acompanhando o vereador Castro no restaurante grã-fino?
Ela colocou a foto ampliada sobre a mesa depois de tirá-la de dentro da pasta. Guimarães se voltou brevemente para a imagem.
— Um deles é o CEO da Castle Industrial, um tal de Marcos Eiras. O cara é o novo manda-chuva da empresa de tecnologia desde que o presidente original morreu na rebelião do presídio de Marechal LaRocca, ano passado.
Regiane deu uma olhada no sujeito calvo sentado à direita do vereador identificando Eiras.
— E o outro?
— O outro homem na fotografia é o juiz Eliseu Franco Neto. Assumiu o cargo mais alto do legislativo dentro do Fórum de Justiça de São Francisco depois que o seu antecessor foi exonerado, acusado de conluio com a organização criminosa de Edmundo Bispo, há dois anos.
Regiane observou com mais atenção o homem corpulento sem cabelos e de barba espessa no rosto ovalado a quem Guimarães se referia.
— O que esses três têm a ver com o Comando Central? — Ela parecia em dúvida. — Ao que parece, temos nessas imagens apenas alguns amigos bastante endinheirados confraternizando em uma noite qualquer...
O tom era de sarcasmo.
— Segundo o que o Laguna apurou nos últimos trinta dias, o vereador Washington Castro está trabalhando em sua campanha para deputado estadual pelo partido PSN da ex-prefeita Renata Leme e do atual prefeito Josleno Cavalcante. O encontro na foto, provavelmente, era para angariar fundos de campanha. O que se sabe além disso é que Castro também andou de conversa com Romero Assis há alguns dias. Essa ligação reforça as nossas suspeitas de que o cara anda conspirando com a milícia que o ex-delegado do nosso DP comanda na Comunidade da Boa Vista desde que também foi exonerado do seu cargo por corrupção.
Regiane franziu o cenho.
— O Laguna tem provas desse encontro?
Guimarães fez que não, reclinando as costas na cadeira em seguida.
— E como ele sabe que o Castro encontrou mesmo o canalha do Assis?
— Os dois foram vistos de papo durante o jogo de vôlei masculino que inaugurou a nova quadra poliesportiva do CSU, o ginásio da cidade. Fizeram questão de serem vistos juntos e pareciam bastante íntimos.
— O que não quer dizer muita coisa — retrucou Regiane, colocando a pasta de volta sobre a mesa. —, esses corruptos cheios da grana vivem se encontrando nesses eventos usados como palanque político. Os dois estarem de papo não prova necessariamente que eles façam parte do Comando Central ou que saibam quem é a pessoa por trás da organização...
— Não, não prova, mas temos indícios de que alguém grande dentro da prefeitura tem apoiado as ações criminosas dessa nova facção com a famosa vista-grossa do prefeito e o mais indicado é que seja o vereador Castro. Nós precisamos ter certeza de que eles estão atuando juntos. É exatamente por isso que quero ver você trabalhando com o Laguna nessa investigação. Até termos certeza de que essa nova organização está na cidade para ocupar o lugar vago deixado pela Corporação, precisamos ficar de olho em todos esses pulhas e mostrar a eles que São Francisco d'Oeste não vai se render novamente ao crime.
Regiane sabia que havia uma conexão entre o Máquina Brutal, a Brigada de Elite e o Comando Central, mas até que pudesse levar à justiça a pessoa que havia dado cabo de seu parceiro e amigo, ela precisava reunir as provas que Guimarães havia lhe ordenado conseguir.
É uma fileira de dominós em cima de uma mesa e é preciso tocar a primeira pedra até conseguir derrubar todas as outras, pensou ela, sagazmente.
Embora a contragosto, naquele mesmo dia, ela se reuniu com o policial Leandro Laguna e os dois saíram em ronda motorizada pelas ruas. Enquanto seguiam para um endereço na Zona Leste da cidade onde pretendiam conseguir mais informações sobre a relação de Washington Castro, o juiz Franco Neto e Marcos Eiras, os dois discutiam alguns pontos em comum em sua investigação.
— Sabia que um dos projetos propostos pelo vereador Castro, caso seja eleito como deputado estadual no ano que vem, é a criação de unidades policiais pacificadoras por toda a cidade, incluindo dentro da favela da Boa Vista?
Laguna era um homem de um metro e oitenta e oito de altura, ombros largos e peitoral estufado. Usava um bigode espesso sobre os lábios grossos e raspava os cabelos à máquina todas as manhãs. Tinha a pele escura feito o ébano e estava usando um par de óculos spy todo preto naquela tarde.
— Ah, é?
O tom de Regiane no banco do carona era entediado. O seu aviador sobre o nariz disfarçava as olheiras das noites mal dormidas e a sua cabeça ainda latejava por conta da ressaca.
Desde que abordara um dos principais informantes do Comando Central naquele estacionamento, tinha ficado intrigada em saber quem era o homem denominado apenas como "Jota" e como ele havia conseguido ascender tão rápido ao posto de chefe da organização.
Será que ele é algum poderoso que já conhecemos ou só um novo pau-mandado de outra pessoa que o manipula feito uma marionete? pensava ela, distraída a olhar para o lado de fora da janela. O carro estava chegando ao seu destino e a rua asfaltada já havia dado lugar a um terreno acidentado que fazia o veículo trepidar enquanto se deslocava em cima dele.
— Olha, eu sinto muito pelo que aconteceu ao Pablo e entendo que você não queira um novo parceiro tão rápido — começou Laguna, a vendo totalmente desinteressada ao seu lado. —, mas nós precisamos fazer isso juntos. O Guimarães quer que trabalhemos em equipe nesse caso e você sabe como é: ordens são ordens!
Ele deu um meio-sorriso que se desvaneceu rápido ao notar que ela nem sequer havia se virado para o encarar.
— Vamos terminar logo com isso e dar no pé daqui. — Regiane olhava de maneira arisca através do vidro. Estavam em um dos bairros mais decadentes da Zona Leste e ela sabia que aquele local não era seguro para policiais. — Eu morei aqui até bem pouco tempo. Se ficarmos mais de cinco minutos nessa área e alguém identificar os nossos distintivos, vamos fazer companhia ao Pablo mais cedo do que imaginamos!
O tom de voz da moça era sombrio e Laguna engoliu em seco atrás do volante. Estavam em um veículo que não era identificado como da polícia em uma investigação informal, mas teriam que se apresentar como policiais se quisessem imprimir respeito ao seu informante.
— O local de encontro é naquele depósito ali em frente — E Leandro apontou para um sobrado de fachada suja a menos de oito metros de distância. —, o sujeito pediu que batêssemos três vezes na porta de aço e esperássemos.
Regiane já tinha visto dois olheiros sobre telhados; um de cada lado da rua estreita em que entravam. Ali funcionava uma das antigas bocas de fumo controlada por Toni Maranelli e os seus homens sempre mantinham vigias no alto das residências para avistar a aproximação de possíveis ameaças. A moça desabotoou o coldre em sua cintura e sentiu o cabo da sua Glock com a ponta dos dedos.
— Está com cheiro de emboscada — disse ela. —, melhor estar preparado.
Laguna ajeitou os óculos no rosto e uma veia passou a saltar em sua têmpora enquanto ele preparava para estacionar em frente ao sobrado.
— Lá vamos nós!
Regiane ficou de frente para a rua por onde tinham chegado e não tirou os olhos dos dois sujeitos sobre os telhados mais ao longe. Um bar periférico com duas pessoas à porta tocava de maneira ruidosa o som de um funk à direita da calçada e os ecos distantes das vozes de moradores das casas soavam aos seus ouvidos. Laguna já tinha batida na porta de aço como combinado e esperava o seu informante do lado de fora. Um sujeito surgiu pela outra extremidade da rua pilotando uma moto. Estava sem camisa, não usava capacete e fez questão de causar um ruído com o escapamento assim que encarou Regiane de maneira indolente, passando devagar pelo carro estacionado.
— Segura a onda — disse Laguna, sentindo a parceira se enervar com o motoqueiro que a desafiava com o olhar. —, não estamos aqui para arrumar encrenca.
Regiane acompanhou com os olhos o motociclista até que ele desaparecesse na esquina e, foi então que alguém do lado de dentro da porta de aço perguntou de lá:
— Qual é a senha?
— Peixe-Espada. — respondeu Laguna, sem titubear.
Logo em seguida, a porta de aço estava se elevando e um sujeito magro usando bermuda folgada com uma camisa de estampa xadrez surgiu os botando rapidamente para dentro do que parecia ser uma garagem.
— Entrem depressa. Não queremos chamar atenção.
Antes de entrar, Regiane deu uma última olhada para o telhado e um dos vigias fumava um cigarro escuro de maconha acocorado próximo ao beiral da casa. Não os tinha perdido de vista em nenhum momento.
Sentados em volta de uma mesa metálica de bar com o logotipo de uma marca famosa de cerveja ao centro, os três se reuniram para trocar ideias sobre o Comando Central. Em torno deles, havia muitas pilhas de jornais para reciclagem, sucatas diversas de eletrodomésticos velhos, peças automotivas em desuso e uma quantidade grande de engradados vazios de bebidas. O homem conhecido como "Reciclador" no bairro Jardim Nova Esperança era também um dos informantes mais confiáveis da polícia há muitos anos e já tinha ajudado o DPSF com inúmeros casos envolvendo tráfico de drogas.
— Não foi muito inteligente nos trazer aqui, senhor "reciclador" — começou Regiane se sentindo incomodada em estar sentada naquela cadeira dobrável de alumínio. Tinha parado de fazer exercícios físicos há algum tempo e, além de uma cefaleia, também sentia dores nas costas provocados pela má postura. —, quando chegamos, tinham dois caras de olho na gente de cima do telhado, a uns oito metros daqui. — E ela apontou para o lado de fora através da porta de aço agora fechada. — Estamos correndo riscos desnecessários...
O Reciclador tinha um rosto envelhecido pelo sol em excesso que tomava todos os dias em seu trabalho nos lixões da cidade, mas esboçou um sorriso.
— Eu sei. Foram eles que me avisaram quando vocês dois chegaram.
Ela o olhou atônita.
— Trabalham comigo. Podem ficar despreocupados.
Laguna esboçou um sorriso e percebeu que a sua parceira tinha ficado um pouco mais relaxada ao seu lado.
— Mesmo assim, é bom sermos rápidos por essas bandas. — A policial queria abreviar aquele encontro. — Disse que tinha uma dica pra gente, Reciclador.
O homem acenou que sim e, em seguida, foi até uma das pilhas de jornal que mantinha junto a uma das paredes do seu depósito. Passou a mão calosa por cima de um pedaço de papel como que lhe tirando a poeira e caminhou de volta até a mesa metálica. Entregou a informação para Laguna.
— Em dois dias, o Comando Central vai despachar mais de meia tonelada de cocaína e droga sintética para a Colômbia nesse endereço que está aí no papel. — Ele apontou para a folha pautada cortada ao meio nas mãos de Laguna. — Dizem que é a carga mais valiosa a que eles tiveram acesso nos últimos meses e é bem possível que outras facções queiram estragar a negociação com os colombianos.
Regiane esticou o pescoço em direção ao pedaço de papel.
— Para a Colômbia? Mas como eles farão esse transporte? De helicóptero?
O Reciclador balançou a cabeça em negativa.
— Eles construíram uma pista clandestina de voo a alguns quilômetros de onde ficava a termelétrica que foi destruída no Bairro dos Laranjais. O Comando agora tem acesso a aviões bimotores para esse tipo de transporte e vai começar a exportar a droga para outros países da América Latina. Eles têm feito testes de voos há algumas semanas, mas essa vai ser a primeira vez que usarão os aviões pra valer. Se forem detidos agora, estarão queimados com os compradores estrangeiros e ninguém mais vai arriscar negociar com o Comando. Se vocês querem mesmo pegá-los, essa é a hora.
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