Capítulo 36 - A sangue e fogo
HENRIQUE ACORDOU SOBRESSALTADO na cama do quarto de hotel após um pesadelo em que caía pela janela de um prédio sem qualquer um dos seus gadgets de Pássaro Noturno a mão. No sonho, tinha sido atirado através de uma vidraça vestindo apenas roupas comuns e se via cada vez mais desesperado conforme o abraço da morte se aproximava dele. Quando se sentou no colchão, suor escorria em sua testa, os lábios estavam secos e o coração palpitava forte dentro do peito.
A Avenida Atlântica estava movimentada do lado de fora da janela e o sol de quase trinta e seis graus na sombra brilhava alto no céu do meio-dia. Em seu quarto, não havia qualquer sinal de Rafael, além de um bilhete escrito num pedaço de jornal avisando que ele e Alfredo haviam ido visitar o Pavão Azul, um dos botecos mais tradicionais do Rio.
Mais um ponto turístico que não vou conhecer, pensou ele, um tanto quanto desolado.
A noite passada, ele havia furado um compromisso com Thais e, desde que havia retornado ao hotel, não parava de pensar em quanto ela devia estar magoada. Disposto a se redimir com a garota que amava, Henrique saiu à procura de uma floricultura pelo bairro carioca e acabou desistindo de presenteá-la com flores quando esbarrou em uma chocolataria onde preferiu comprar uma caixa de trufas sortidas. Voltou para o hotel a fim de esperá-la no hall, mas só encontrou Kátia acompanhada da companheira de quarto Indiara que, como de costume, falava pelos cotovelos.
— Você viu a Thais por aí, Kátia?
A morena torceu o nariz ante à pergunta e percebeu que não devia poupá-lo das más notícias. Indiara também parecia inteirada do assunto e não se surpreendeu ao ouvi-la dizer sem qualquer hesitação:
— A Thais saiu bem cedo para aproveitar o último dia no Rio, Rique. Ela passou a madrugada bastante triste e amanheceu hoje dizendo que estava a fim de se divertir muito não importasse com quem.
Henrique não sabia se havia absorvido aquela informação completamente e o vendo um tanto quanto confuso, Indiara disse com todas as palavras:
— Ela saiu acompanhada do Danilo e os dois pareciam bem animados juntos de novo.
Ele sentiu um torpor e o seu semblante murchou.
— Juntos... você quer dizer... juntos?
As duas assentiram e aquela afirmação foi como um tapa em seu rosto.
— Ela está muito magoada com você, Rique — disse Kátia, com um raro tom de seriedade na voz. —, é melhor vocês dois conversarem um pouco para tentar acertar as coisas antes de voltarmos todos para São Paulo.
Se é que o que eu fiz tem conserto, pensou ele, quase desejando que a rajada de trezentos volts do Major Brasil o tivesse fulminado de vez.
A noite começou a cair sobre o Rio e a secretária Paula com o auxílio de Josiel não perdeu tempo em reunir os estudantes do Basilides Guedes no corredor dos quartos, os preparando para o retorno a São Paulo. O voo de volta estava marcado para as vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos daquela segunda-feira e Henrique arrumou as malas com certa impaciência, querendo resolver logo a sua situação com a namorada.
Rafael ainda tentou consolá-lo dizendo que, em mais alguns dias, ela teria esquecido a pisada de bola que ele havia dado em não comparecer ao encontro pela qual tanto a menina esperava em meses, mas o rapaz só estaria convencido disso quando a encarasse nos olhos mais uma vez.
— As mulheres são assim mesmo — disse o rechonchudo, com a superioridade de quem conhecia bastante do assunto. —, elas ficam bravas com muita facilidade, mas acabam perdoando as nossas falhas de maneira rápida. Você vai ver. Em pouco tempo, a Thais já terá esquecido a sua mancada e vocês vão viver felizes para sempre.
Havia certo ar de deboche naquela frase, mas Henrique estava desanimado demais para achar graça.
Os dois não voltaram a se encontrar de novo até o desembarque no Aeroporto de Guarulhos e ele precisou correr ao seu encontro enquanto ela arrastava a mala com as rodinhas desviando dos demais passageiros que haviam chegado a São Paulo no mesmo voo. Denise e Kátia já tinham se despedido dela e a garota seguia em direção à saída, onde o pai a aguardava do lado de fora em seu carro. Henrique estava esbaforido e a cercou antes do portão.
— Eu tenho tentado falar com você, mas parece até que está me evitando...
Thais parou um instante e o encarou com um semblante blasé, sem demonstrar qualquer emoção. A pele estava bastante bronzeada do sol que havia pegado em todos aqueles dias e exibia a marca de biquíni por cima dos ombros expostos pela blusinha que usava.
— Acho que a gente se desencontrou...
Ele estendeu a caixa de chocolate que havia comprado ainda no Rio para ela e a garota a apanhou sem nem olhar o que era.
— Tem um ou dois minutinhos pra gente conversar?
Thais torceu o nariz e olhou em direção ao portão que estava a pouco menos de quatro metros deles. Uma multidão de pessoas passava entre os dois jovens carregando malas, bolsas e caixas. Estavam no setor de desembarque e, bem próximo dali, ficava o ponto de táxi do lado de fora de uma das saídas do aeroporto.
— Sem chance. Papai está me esperando lá fora e ele fica meio impaciente se alguém o deixa esperando...
Havia uma pontada de crítica naquela frase, mas ele assentiu ainda sem saber como poderia remediar as coisas entre eles.
— A gente pode se encontrar amanhã então. Ainda tenho alguns dias de folga até o recesso de final de ano...
Ela respondeu de maneira evasiva, já voltando a puxar a sua mala azul de viagens e seguindo o fluxo de pessoas.
— Vamos ver. Me liga depois e a gente tenta combinar algo. Tchau!
O retorno à rotina de trabalho na Suares & Castilho e as atividades extras para a Rux-Oil o mantiveram ocupado na semana seguinte, mas Henrique não havia conseguido voltar ao mesmo ritmo de antes. Sentia que algo havia se quebrado irremediavelmente entre Thais e ele depois que não havia conseguido comparecer àquela que seria a primeira noite de amor do casal, e a menina não estava facilitando em nada para que os dois pudessem tentar um entendimento.
Depois do encontro rápido na saída do aeroporto, eles não tinham mais se falado e todas as vezes que ele ligava para o seu celular, o aparelho parecia desligado ou fora da área de cobertura. Na casa dos Augusto, era sempre Milena quem atendia e, embora fosse bom conversar com a cunhada e o seu inesgotável repertório de ironia e sarcasmo, era com a namorada que ele queria falar.
Na véspera de Natal, Henrique decidiu parar de cerimônia e foi ao encontro de Thais no prédio onde ela morava com os pais e a irmã. Tinha vestido a sua melhor roupa, caprichado no perfume, comprado um livro sobre Psicologia Cognitiva que ela estava querendo ler antes da faculdade e, logo que pisou no local, pediu para ser anunciado na portaria do condomínio. Depois de quase vinte minutos, foi autorizado a entrar e repetiu o mesmo trajeto que fizera da primeira vez, quando atrasado para o jantar, fora forçado a pousar a ASA no campo society e manter o traje de Pássaro Noturno crivado de balas por sob as roupas.
Sentia-se animado em finalmente poder conversar com Thais para esclarecer todas as questões que haviam ficado em aberto desde a segunda noite em Copacabana e andou apressado até o saguão do prédio. Estava ansioso para reatar o namoro, fortalecer os laços com a sua família e solidificar a relação bonita que havia entre os dois. Os dedos suavam segurando o embrulho de papel colorido e, quando ele a enxergou de longe encostada na parede lateral da saída do átrio a esperá-lo, o seu coração pulsou forte. Tentou lhe depositar um beijo nos lábios em cumprimento, ela desviou.
— Achei que me esperaria lá em cima no apartamento — disse ele, constrangido.
— Os meus pais estão recebendo alguns parentes nossos para a ceia. Achei melhor esperar aqui embaixo.
Houve alguns segundos de incômoda tensão entre os dois. Ele queria falar o que estava sentindo depressa antes que perdesse a coragem, mas ela não parecia disposta a ouvir. Naquele ínterim, ele lhe estendeu o livro que comprara e ela o recebeu sem jeito.
— É daquela psicóloga da USP que você comenta sempre, a que estuda psicologia cognitiva...
Nenhum aceno e nenhuma confirmação. Ela estava fria.
— A gente precisa conversar, Tatá... Aquele dia no hotel, sobre o nosso combinado... Bem, eu queria muito ter ido... quer dizer, eu só pensava nisso... era pra eu ter ido...
Nunca fora tão difícil explicar algo para alguém.
Eu consigo explicar codificação avançada para um leigo, consigo traduzir uma linguagem que nem existe no planeta Terra e não consigo dizer a ela a razão de eu não ter comparecido ao nosso encontro!
Ele estava surtando.
— Eu fiquei esperando por você a noite toda — Havia amargura no tom de voz quase sempre delicado e gentil. —, no começo, eu achei que era apenas porque eu estava muito ansiosa. Pensei que talvez você nem tivesse demorando tanto para chegar e que era a minha cabeça criando mil motivos para me deixar mais nervosa. Então, eu olhei para o relógio e vi que a noite tinha virado madrugada... duas horas, três, quatro... Quando finalmente percebi que você simplesmente havia me largado lá esperando, eu só consegui chorar. Me senti descartada...
Ele fez menção de se aproximar para dizer que não era nada daquilo, mas não houve abertura.
— Depois que me acalmei, eu comecei a achar que você devia ter um bom motivo para não ter ido até o quarto. Quer dizer... A gente só estava a um andar de distância. Não parecia ser uma barreira tão difícil de transpor. "Ele deve ter tido um bom motivo", eu pensei, tonta...
Os olhos dela começaram a lacrimejar.
— Mas havia um bom motivo... me deixe explicar...
Ela o interrompeu.
— Ninguém sabia de você. Nós tínhamos a noite toda e você simplesmente sumiu do quarto... Nem o Rafa que estava dormindo na cama ao lado soube explicar aonde você estava...
— Me deixa explicar, Tatá...
Ela sacudiu a cabeça devagar e apertou a base dos olhos, impedindo que uma lágrima rolasse.
— Eu comprei uma lingerie nova para a nossa noite especial... Me produzi toda pra te agradar. Todo mundo colaborou pra que ficássemos juntos no quarto, pra que nada nos atrapalhasse... E você simplesmente sumiu!
Era uma emergência. Haviam vidas em risco e eu precisava impedir que mais pessoas morressem. Precisavam de mim, precisavam do Pássaro Noturno... Tenta me entender, por favor, ele pensou, desesperado por não poder verbalizar aquilo.
— Eu tenho uma explicação, mas não é fácil de dizer...
Um brilho molhado podia ser visto nos olhos apertados. Ela estava se contendo para não cair em prantos.
— Quase seis meses de namoro e eu não consigo sentir que te conheço de verdade, Henrique — Ela o encarou a um metro de distância. —, tem alguma coisa muito errada com você... É como se escondesse das pessoas quem você realmente é, como se não fosse capaz de ser verdadeiro nem com quem diz amar...
Aquilo o havia atingido profundamente.
— Todo mundo à sua volta percebe... A sua mãe, a sua irmã, os seus amigos... todo mundo sabe que você usa uma máscara — Ele chegou a sentir o coração saltar dentro do peito naquele momento. —, que você se esconde atrás de alguma coisa, mas ninguém tem coragem de perguntar o que é...
Henrique tentou mais uma vez se aproximar e ela o fitou de uma maneira gélida que o manteve à distância. Toda a doçura que havia em seu rosto havia desaparecido.
— Todos aqueles machucados, aquelas contusões inexplicáveis, as dores de cabeça, as queimaduras na pele... Eu nunca soube exatamente o que acontecia com você e, mesmo quando a gente começou a namorar, tudo isso ainda era um grande mistério. Eu nunca conheci o verdadeiro Henrique Harone, apenas a sombra fria e sem vida que ele mostra para as pessoas com a sua cara...
— Thais, não fala isso. Eu amo você e estou disposto a contar tudo...
— Acabou, Henrique. Eu não quero mais me sentir presa a alguém que não está disposto a um relacionamento recíproco de confiança. Você ainda não está preparado para um relacionamento mais maduro e eu sinto que agora também não estou mais disposta a me envolver com uma pessoa que não se abre e que não quer compartilhar uma vida com quem está ao seu lado. Espero que encontre um dia o seu caminho, mas quando o encontrar, eu não estarei lá com você...
Thais devolveu o livro que ele dera de presente sem nem mesmo abrir o seu embrulho. Os polegares deslizaram pelas bolsas sob seus olhos uma última vez limpando as lágrimas.
— Espera, Thais...
Ela lhe deu as costas caminhando em direção ao elevador e não olhou para trás.
Sobre a sua cabeça, no interior dos apartamentos do prédio, as famílias festejavam a aproximação do Natal. Ouvia-se risadas, estouro de champanhe e muitos urros felizes por todo o condomínio. O clima era de alegria intensa. Faltavam menos de duas horas para a meia-noite.
Henrique recostou-se na parede do prédio, deixou o corpo escorregar até o chão e inclinou o tronco sobre os joelhos. Sentia que todas as forças haviam se esvaído e evaporado por entre os poros da sua pele. Tinha feito de tudo para conciliar a sua vida pessoal com a de vigilante mascarado, mas sentia que havia falhado retumbantemente. Relembrou as palavras duras ditas por Thais há pouco, incapaz de tirar-lhe a razão e, enquanto as pessoas celebravam a aproximação da data festiva, ele se recolheu em dor, deixando que lágrimas irrefreáveis lhe banhassem o rosto, como tinha que ser.
"Nesta história só eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo."
(Soneto LXVI – Pablo Neruda)
FIM
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