Capítulo 35 - O cadete Montenegro
A CIDADE ESTAVA QUIETA e dava para ouvir o som das ondas quebrando na praia de Copacabana sobre o Porto Miramar quando Pássaro Noturno e o Major Brasil se deram ao luxo de descansar um pouco após toda a adrenalina sofrida desde a tarde do dia anterior.
O clima de rivalidade entre eles diluíra depois que tinham percebido que precisavam um da ajuda do outro para solucionar o sequestro do embaixador estadunidense e agora estavam dispostos a conversar civilizadamente, senão como bons amigos, ao menos como colegas de trabalho. Houve um instante de silêncio até que se permitissem relaxar um na presença do outro e foi Henrique quem começou:
— Foi bem impressionante o que fez na entrada daquele sobrado... Dei uma olhada no portão caído no chão quando saímos da casa e parecia que o metal tinha sido atingido por um maçarico queimando a uns mil graus!
Deu para ver um sorriso se formar pela parte descoberta do rosto do Major, que admitiu:
— Às vezes, nem eu mesmo sou capaz de controlar a intensidade das minhas rajadas!
Os dois estavam agora sentados num degrau elevado do telhado do hotel, e dali, podiam ver boa parte da Avenida Atlântica. Uma brisa agradável soprava e a bandeira às costas do Major tremulava agitada.
— Qual a sua história, Major? Digo, esses poderes elétricos, essas coisas fantásticas que você é capaz de fazer... — Havia um tom de admiração agora na voz de Henrique. — No começo, eu achei que fosse o seu traje, que você estivesse vestindo algum tipo de super-roupa que lhe concedesse poderes, mas agora sei que toda essa energia é gerada pelo seu corpo...
Ele segurou a blusa que cobria o próprio torso e confirmou:
— Não. Isto é só... tecido normal. Eu sou a minha própria fonte de poder.
Confiando em seu colega e sem mais hesitações, o Major puxou a bandana que cobria parte da face e revelou a sua identidade a ele. Um rapaz jovem de cabelos castanhos claros cortados à máquina era o verdadeiro rosto por trás da figura luminescente do Major Brasil e ele se apresentou:
— O meu nome real é Charles Montenegro. Tenho vinte anos, sou ex-cadete da Academia Militar das Agulhas Negras e tem um pouco mais de um ano que isto aconteceu a mim...
E ele criou uma faísca elétrica com o dedo indicador da mão direita, sentado com as costas curvadas em direção a Pássaro Noturno.
— Você era militar... Agora entendo a razão de usar tantos jargões e querer sempre passar uma postura de imponência e autoridade!
Charles assentiu.
— Gosto de me manter dentro do personagem... O Charles Montenegro não é tão sisudo quanto o Major Brasil!
Ele curvou os lábios num sorriso, mas logo o seu semblante se retesou como se tivesse sido tomado por uma má lembrança.
— Naquele dia, os meus companheiros de Academia Militar e eu estávamos visitando uma das usinas nucleares de Angra dos Reis. De tempos em tempos, o órgão do governo que gerencia essas estações de geração de energia costuma fazer testes controlados com a presença de membros das forças militares para comprovar a segurança das instalações e, a AMAN[1] tinha enviado eu e mais cinco cadetes como representantes da escola para aprender um pouco mais sobre o funcionamento das usinas. Era uma noite bastante chuvosa, o tempo estava ruim, mas nós estávamos empolgados só em estar naquele lugar tão único que pensávamos que era uma das áreas mais seguras do país. Ninguém achava que fosse acontecer o que acabou acontecendo...
Pássaro Noturno estava atento à narrativa e já bastante curioso.
— Você ouviu falar do vazamento radioativo que aconteceu em Angra 2 há pouco mais de um ano?
Henrique sacudiu a cabeça negativamente.
— Pois é... O exército e as empresas competentes no controle das estações abafaram o que aconteceu aquele dia, mas eu e mais três amigos fomos vítimas de um acidente bastante grave que mudou a minha vida para sempre e que acabou com a deles...
Pássaro Noturno se mexeu, incomodado.
— Quer dizer que foi um acidente nuclear em Angra 2 que deu a você a capacidade de controlar eletricidade?
Um aceno, uma coçada de cabeça e, então, veio o restante da história:
— Os técnicos da usina estavam fazendo uma demonstração de como são estocados os cilindros de urânio enriquecido depois de retirados do reator, e nós estávamos lá assistindo, acreditando que estávamos seguros. Um guindaste estava movendo um recipiente de uns cinco metros de altura, mais ou menos, até uma piscina onde o material gasto era armazenado. Como eu disse, era um dia chuvoso de forte tempestade e um raio acabou atingindo os cabos que suspendiam o tal cilindro de urânio no alto, a uns quinze metros do chão. Eu não sei precisar quanto pesa um negócio daqueles, mas quando vi que o guindaste não conseguiria mais sustentar o seu peso, eu me atirei sobre um dos meus colegas de Academia antes que ele fosse esmagado.
Charles agora estava cabisbaixo e apertava o capuz entre os dedos como se as lembranças lhe causassem dor física.
— Eu não sei o que me deu na hora. O cilindro estava despencando do alto e eu simplesmente empurrei o meu amigo Flávio... Me lembro de ter ouvido um estrondo depois disso. Vi um clarão iluminar toda a plataforma onde estávamos assistindo à demonstração e nós dois mergulhamos na piscina onde os resíduos de urânio eram armazenados. Após cair na água, tenho apenas flashes de memória que me vêm à mente de vez em quando. Tudo que sei depois disso é o que os meus superiores me informaram quando acordei no hospital. O acidente e o contato com a radiação me deixaram em coma profundo por cinco longos meses e, quando finalmente acordei, todos lidaram como se fosse um milagre ou alguma manifestação divina. Me mantiveram isolado na ala radiológica de um hospital militar e fiquei sendo estudado por semanas, sem contato com os meus familiares ou a namorada que eu tinha na época. Comecei a ser tratado como uma aberração e tudo aquilo começou a me afetar psicologicamente. Eu nem ao menos tinha notícias sobre os meus colegas e demorei para saber o que tinha acontecido aos outros que também haviam sido expostos à radiação do urânio.
Havia tristeza no semblante de Charles.
— Eles morreram?
Um novo aceno positivo.
— De todos que foram afetados pela radiação que escapou do cilindro aquela noite ou pela água contaminada da piscina, eu fui o único que sobreviveu. Flávio, Reinaldo, Djalma... todos eles morreram algumas semanas após a exposição e nada disso foi sequer mencionado pela imprensa ou mesmo pelo próprio Exército. O nosso caso foi classificado como extraoficial e o acidente foi arquivado como se nada tivesse acontecido.
— Mas esses poderes... Como exatamente você os adquiriu?
Charles ponderou um instante antes de responder.
— De alguma forma que não sei explicar cientificamente, o meu corpo absorveu toda aquela radiação a que fui exposto quando caí na piscina e remodelou o meu DNA, me tornando capaz de processar certos tipos de energia. Um dos médicos que estudou o meu caso desde o acidente disse que a ala em que eu estava em coma sofreu uma descarga elétrica violenta pouco antes de eu finalmente acordar, e que cada um dos componentes eletrônicos dos equipamentos do quarto tinha sido queimado. Ainda durante o meu coma, em um exame preliminar para saber até que ponto a minha fisiologia havia sido afetada, os médicos detectaram dois tumores malignos em meu corpo que simplesmente sumiram quando uma segunda prova de exames foi encomendada. Ao que consta, o meu próprio metabolismo havia sido capaz de erradicar o câncer e, quando eu acordei, estava saudável e bem... Na verdade, melhor do que sempre estivera!
Henrique estava admirado. Saber tudo aquilo estava expandido a sua mente em vários sentidos e era como se ele acabasse de ser apresentado a todo um novo mundo de possibilidades, a maioria delas apavorante.
— Mas o que mudou em seu organismo? Você tem super-força ou super-sentidos além da capacidade de voo e da manipulação de energia?
Ele sorriu e ergueu uma das palmas como se desculpando de algo.
— Não, eu não sou um super-homem! Se a radiação me deu essas habilidades também, eu ainda não aprendi a usá-las — E ele riu. —, o meu corpo agora é uma espécie de gerador. Sinto como se toda a eletricidade viesse de dentro de mim... Não é como se eu apenas manipulasse fontes externas. Eu posso criar energia. Eu consigo captar vários outros comprimentos de onda, às vezes. Posso sentir a radiação presente no lítio de uma bateria de celular, consigo perceber os campos magnéticos da Terra e até a energia irradiada pelo Sol. Ainda não consigo controlar essas fontes energéticas como faço com a eletricidade, mas sinto que serei capaz disso num futuro não muito distante.
Pela primeira vez, Henrique sentiu um arrepio percorrer a sua espinha na presença do Major Brasil e, por alguma razão que ainda não sabia explicar, ele pensou que o mundo teria problemas sérios para lidar com alguém capaz de controlar tanto poder.
Charles mencionou que os seus dons causaram problemas psicológicos durante o seu período de convalescença no hospital... Nem quero imaginar o que pode acontecer se ele um dia perder de vez a sua sanidade. Ninguém seria capaz de freá-lo! Os seus pensamentos eram sombrios.
— Mas, e você? — indagou Charles, curioso. — Me diga qual é a sua história. Como conseguiu confeccionar esse seu traje...? Confesso que fiquei bastante impressionado com as coisas que o vi fazer com esses seus brinquedos!
Disse o cara capaz de fritar um ovo com um piscar de olhos! pensou Henrique antes de responder:
— Não há nada de muito especial em minha história. Sou só um cara tentando usar as ferramentas erradas para fazer as coisas certas.
Os dois se encararam um instante.
— Não seja modesto, cara! Você pode não ter superpoderes como os meus, mas o que o vi fazer hoje para salvar o embaixador e a sua esposa são atos dignos de um super-herói. Mesmo quando percebeu que não podia me vencer na força, você não desistiu um só segundo focado no objetivo de me tirar do caminho para deter os sequestradores. Tenho muita vergonha em admitir o quanto fui burro em tê-lo confundido com os caras maus, mas foi a sua perseverança que me fez enxergar o quanto eu estava errado...
— Se não fosse esse seu campo de energia, eu teria quebrado a sua cara!
Charles o olhou como que surpreso em ouvi-lo ser tão sincero, mas em seguida, caiu no riso.
— Ok, admito. Você tem um bom cruzado de direita. Senti uma coceira no nariz depois que você me acertou aqueles socos...
Os dois seguiram com as provocações ainda por mais uma hora e formaram ali, sobre aquele telhado, uma relação saudável de parceria que, com muita certeza, voltaria a acontecer no futuro. Ambos moravam em cidades diferentes, tinham origens distintas, mas compartilhavam o mesmo desejo em fazer justiça e de ajudar aqueles que não podiam se defender sozinhos das mazelas do mundo.
Em algum lugar no futuro, o Pássaro Noturno e o Major Brasil voltariam a se unir para proteger aqueles que não podiam fazer aquilo por si mesmos.
[1] AMAN - Academia Militar das Agulhas Negras
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