Capítulo 23 - Contato inoportuno
NA SEGUNDA SEMANA DO MÊS de agosto, parte da turma do terceiro ano de Henrique estava ocupando um dos laboratórios de informática do segundo andar do prédio principal da escola quando Thais entrou eufórica pela porta acompanhada da sua dupla de TCC Kátia.
Tão logo avistou o namorado sentado diante de um dos PCs mais ao fundo da segunda bancada, compenetrado a programar uma das últimas telas do seu sistema integrado, ela se apressou para encontrá-lo sem perceber que estava sendo observada de longe por Danilo Estrada e a sua nova conquista amorosa, a menina de cabelos encaracolados chamada Indiara Mayer.
— Amor, eu marquei para o próximo sábado o jantar para eu te apresentar aos meus pais. Trata de ir bem bonitão para impressionar o meu pai, hein!
Ela o abraçou por trás da cadeira de maneira carinhosa e depositou-lhe um beijo no rosto. Ele salvou no computador a última alteração que tinha feito no código-fonte e, então, voltou a sua atenção para Thais.
— Sábado agora?
Kátia estava bem-humorada como de costume, e tratou de botar pilha no amigo.
— Xi, vai conhecer o sogrão, hein, Rique! Ouvi dizer que ele é muito bravo e que não dá mole para os pretendentes da sua filhinha preferida!
Os olhos de Henrique foram dos pretos de Kátia para os castanhos de Thais que o confortou.
— É brincadeira da Kátia. O papai é um doce de pessoa. Tenho certeza que ele vai adorar você.
Um riso de deboche ecoou no laboratório e as atenções dos três amigos se voltaram para Danilo, que estava sentado sobre uma das bancadas fazendo companhia à nova namorada. A garota era uma das melhores alunas da turma e, naquele momento, estava programando num dos computadores sem nem perceber o que estava acontecendo. Thais notou a feição de escárnio no rosto pálido do garoto de postura relaxada a encará-la e sentiu que ele estava prestando a atenção na conversa entre ela, Henrique e Kátia.
— Idiota!
O humor de Thais tinha se alterado, mas Henrique fez-lhe um carinho nas mãos a fim de fazê-la relaxar quanto à atitude imatura do seu ex-namorado. Ele então voltou ao assunto.
— Vai ser um prazer rever a sua mãe e conhecer o seu pai, Thais. Com certeza vai ser um fim de semana bem divertido como foi aquele na minha casa.
Ela acenou que sim e voltou a sorrir. Pouco depois, deu outro beijo no rosto do namorado e puxou Kátia para um dos lugares vagos dentro do laboratório. Ainda tinham muita coisa para fazer em seu projeto e estavam atrasadas.
Algumas horas depois da cena no laboratório, perto do fim das aulas daquele dia, Henrique estava se aprontando para seguir ao ponto da van que o levaria para Moema, quando foi abordado por alguém que se aproximou sorrateiro por trás dele. Uma risada desafinada antecipou a chegada de Danilo que, tentando criar uma intimidade que não havia entre eles, segurou o ombro do rapaz antes de o provocar.
— E aí, Henrique! Eu soube que está namorando a Thais... Cara, será que está preparado para apagar o fogo dela? Vou te contar uma coisa, essa garota é um vulcão! Quando visitar a casa dela, é melhor cê tomar cuidado para não se queimar!
Era muito raro que Henrique perdesse a cabeça por qualquer que fosse a razão, mas ao ouvir a maneira grosseira como Danny Boy estava se referindo à Thais, sem pensar muito, ele aplicou um empurrão no peito do garoto, que caiu para trás desequilibrado. O começo de briga chamou logo a atenção de outros alunos que também se preparavam para se encaminhar até os portões de saída e uma aglomeração se formou em torno dos dois. Alfredo veio de fora da sala atraído pelo burburinho e agiu rápido em segurar o amigo antes que ele partisse para cima do outro.
— Eu devia quebrar a sua cara para aprender a nunca mais falar assim da Thais, seu babaca!
Danilo se levantou rápido do chão e começou a incitar uma briga, demonstrando que não tinha qualquer medo de encarar Henrique.
— Chega aí, bunda-mole! Vem pra cima pra você ver quem é que vai ficar com a cara quebrada!
Henrique era maior em estatura e tinha toda a vantagem que o seu treinamento em Fei Hok Phai lhe conferia. Ele sabia que não haveria nenhuma honra em se deixar levar pelas provocações de Danilo ali diante dos outros colegas de turma e decidiu ouvir o que lhe dizia Alfredo, que o segurava com firmeza.
— Não vale a pena, Rique. Esquece isso.
Em seu momento de lucidez, Henrique deu as costas ao rival que continuou provocando e rindo, a fim de arranjar confusão.
— Volta aqui, otário! Vem pra porrada! Vai fugir do Danny Boy? Tá com medinho?
Os risos e os gritos de escárnio ecoaram da sala de aula, mas quando chegou perto das escadas, Henrique já havia esfriado a cabeça e se convencido que não valia mesmo a pena brigar por um motivo tão torpe.
Naquele final de semana, algumas horas antes do jantar com a família da namorada, Henrique estava se sentindo apavorado em conhecer o pai austero de Thais e, por conta da sua ansiedade, não estava conseguindo colocar nenhuma comida na boca. Sentia o estômago gelado e as mãos chegavam a tremular só de pensar em estar cara a cara com o sogro, que era conhecido por todos como alguém extremamente zeloso com as suas duas filhas.
Qual é, seu idiota? Você já esteve frente a frente com um exoesqueleto de três metros pilotado por um psicopata loiro. Encarou o Edmundo Bispo olho no olho e já pulou de um prédio de dezenas de andares sem o auxílio de uma corda... Conhecer o sogro bravo não é nada perto disso tudo!
Ele estava tentando se convencer que visitar a família de Thais pela primeira vez era algo corriqueiro, algo que ele poderia contornar com facilidade, mas as reações do seu corpo em pânico contavam outra história. Quanto mais os ponteiros do relógio giravam, mais ele se sentia angustiado.
Três horas antes do jantar, Henrique ouviu um sinal sonoro irritante vindo da primeira gaveta da sua escrivaninha e demorou alguns segundos para perceber que se tratava do seu ponto auricular recebendo uma chamada. Aquela era a sua linha-direta com a policial Regiane e, após encostar a porta do quarto para que nem a mãe e nem a irmã o ouvissem dos outros cômodos da casa, ele a atendeu.
— Já sei... Estava passeando de carro pelo meu bairro e resolveu me chamar. Foi isso?
Não houve uma resposta imediata do outro lado, mas a voz da agente soou sussurrada quando finalmente disse alguma coisa.
— Na verdade, eu estava me sentindo solitária aqui em meu apartamento vestindo o meu pijama cor-de-rosa e resolvi te chamar para vir até aqui tomar um drinque comigo...
Henrique tinha ficado desconfortável com o comentário malicioso. Pouco depois, ouviu um riso pelo ponto e ela retomou a conversa.
— Eu estou só tirando um sarro da sua cara, PN! Eu estou mesmo em uma ronda perto da sua casa, mas entrei em contato para saber a quantas andam as investigações sobre aquele nosso caso.
Henrique decidiu passar o trinco na porta para ter mais privacidade e se sentou em sua cama de solteiro no canto leste do quarto, ao lado das roupas limpas e passadas que havia preparado para o jantar com a namorada.
— Eu descobri com as minhas pesquisas que a maioria das empresas que apresentaram interesse em custear os honorários dos advogados no caso dos soldados da Brigada de Elite presos na La Phoenix têm ou já tiveram conexões entre si no passado; seja uma sociedade ou uma transação comercial temporária. Eu aproveitei que estou trabalhando de freelance para a multinacional Rux-Oil e consegui chegar ao seu banco de dados para rastrear melhor duas das companhias citadas.
Regiane estava ouvindo com atenção e desligou o rádio do carro para não se distrair.
— Uma delas se chama Novyy Kordon. É uma mineradora com sede na Rússia cujos administradores atuais têm origem na Ucrânia e que já fizeram negócios há muitos anos com Vicenzo Mateo Santinni, o velho canalha que tentou destruir a reserva ecológica da Alameda dos Cajarás para explorar petróleo.
— O desgraçado está respondendo um processo por conta disso até hoje. Mas qual era a relação dele com essa tal empresa russa?
— Vicenzo era dono de uma pequena consultora que servia de ponte entre grandes mineradoras estrangeiras e seus possíveis clientes brasileiros. No geral, era gente disposta a abrir as nossas baías para exploração de petróleo em território nacional. O velho trabalhou por vários anos com a Novvy Kordon, até vender a sua empresa de consultoria e passar a viver do que a família Santinni já havia acumulado de fortuna com a imprensa e a política.
— Se os Santinni estão envolvidos, dá pra ver de maneira bem clara que um dos braços da Corporação que não arrancamos da primeira vez está pronto para nos esganar agora.
Henrique apenas resmungou ao comentário e continuou.
— Outra das empresas ligada ao caso da Brigada de Elite é a Constrular, que é simplesmente a construtora pertencente ao grupo Xeque-Mate de Edmundo Bispo, a companhia de tecnologia que hoje é administrada por um dos filhos do canalha. A Constrular é a terceira construtora mais rentável do país e vários dos seus engenheiros assinaram inúmeros projetos realizados em nossa cidade nos últimos anos, incluindo o Elevado Intermunicipal Alceu Franco e a revitalização da Praça Álvares Fonseca feita há menos de um ano.
— Você acha então que a mineradora ucraniana, a importadora do Cazaquistão e a própria Constrular estão tentando pagar dívidas que têm com o Comando Central e aliviando a pena dos seus soldados com a compra dos advogados? — O som da voz de Regiane era bem nítido pelo rádio e foi possível captar até mesmo a troca da marcha do seu veículo na pista onde rodava.
— Se não estão fazendo isso pelo próprio Jota, estão ao menos servindo aos interesses dos antigos membros da Corporação, aqueles que, como os Santinni, nós não conseguimos derrubar da primeira vez. Custo a acreditar que o chefe do Comando Central, seja lá quem for esse desgraçado, tenha tanta influência assim a ponto de conseguir a ajuda de magnatas do petróleo russos ou mesmo que seja tão importante a ponto de fazer com que esses empresários sujem as suas mãos tentando tirar da cadeia simples milicianos que decidiram trocar de lado e que se venderam por alguns trocados.
Regiane concordava e, enquanto diminuía a velocidade para que um cachorro vira-latas atravessasse pacientemente a rua à frente, disse, com um tom rouco:
— É um gasto de energia muito grande para livrar a cara de uns bostas vestidos com roupas high-tech. Tem algo muito mais grave rolando que não estamos prestando a atenção, e eu detesto essa sensação de ignorância.
— Vou continuar a minha investigação e devo ter mais novidades em breve.
Henrique já estava achando que a conversa entre eles estava terminada, quando a voz da policial soou outra vez pelo rádio auricular.
— Na verdade, eu preciso que você faça mais uma coisa por mim.
Ele engoliu em seco do seu lado e deu outra olhada na camisa social chumbo e na calça jeans preta pousada sobre a cama. O momento de encontrar Thais e a sua família estava chegando.
— Daqui a uma hora vai acontecer o coquetel do lançamento oficial da pré-candidatura a deputado estadual do Washington Castro e eu preciso dos seus olhos e dos seus ouvidos nesse evento. Eu tenho certeza absoluta que toda a corja que temos vigiado nos últimos meses estará reunida lá e precisamos de provas que os conectem...
Henrique se viu na obrigação de interrompê-la, preocupado.
— Ei, desculpe, mas hoje eu não posso. Eu tenho um compromisso daqui a pouco... Um jantar na casa da minha namorada...
— Escuta, essa é uma chance única de pegarmos todos eles num mesmo lugar. Esse coquetel vai estar apinhado de seguranças. Todos os milicianos serão convocados e é quase certo que o Jota se sentirá seguro o bastante para também dar as caras. Nós podemos finalmente descobrir quem ele é...
— Você não está me ouvindo... Eu não posso...
— É só por uma hora. Você não precisa fazer nada. É só espionar, dar um jeito de conseguir algumas imagens e depois sair de fininho. Sem confrontos, sem brigas... Eles nem precisam saber que você esteve lá. Eu mesma faria o serviço, mas como você sabe, o Guimarães me botou de castigo. Ele nem pode imaginar que continuo investigando o Comando Central sem a sua autorização!
Henrique levantou-se de maneira impaciente e respirou fundo tentando tomar uma decisão rápida.
"É só por uma hora. Você não precisa fazer nada"... Ele estava considerando a possibilidade.
Eu vou com a ASA. Coloco a roupa que vou usar no jantar dentro da cabine, espiono o coquetel, me visto de volta e, depois, saio do local voando. Com a velocidade da aeronave, chego à casa da Thais bem rápido. Acho que consigo.
— Droga, Regiane... onde vai ser esse maldito coquetel?
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