Capítulo 17 - Frustração

UMA HORA E MEIA HAVIA se passado quando finalmente os dois entraram no assunto que havia conduzido Regiane até a casa do seu jovem colaborador. Henrique havia mostrado a ela todo o material que tinha conseguido junto aos servidores da Castle Industrial para a sua investigação sobre o Comando Central e lhe contou, sem grandes detalhes, o que havia descoberto enquanto espionava o vereador Washington Castro e os seus comparsas.

— Não existem provas materiais de que Marcos Eiras ou o seu tutoreado, Carlos Castellini Junior, tenham voltado a fabricar e vender armamento ilegal para fora do país, mas encontrei diversos contratos de aquisição de material eletrônico, robótico e cibernético de uma certa multinacional chamada Hamamatsu Corporation. Há alguns anos, os meus parceiros e eu descobrimos que o pai de Carlos mantinha sociedade com essa empresa japonesa de tecnologia há mais de uma década e que havia uma parceria entre eles para o desenvolvimento de próteses mecânicas com servo-motores para a indústria ortopédica, além de projetos secretos para o mercado de armas.

— Que tipo de armas? — Ela quis saber, coçando levemente o nariz. Estava sentada com as pernas cruzadas enquanto encarava a tela de cristal com os arquivos abertos sobre a Hamamatsu.

— Todo tipo de armas. De pistolas a canhões antiaéreos.

Ela se mexeu incomodada na cadeira.

— E o que a Castle tem a ver com a indústria ortopédica?

— Além de contratos com empresas de engenharia civil — respondeu Henrique —, a Castle possuí uma variada gama de clientes em outros setores da indústria. Eles desenvolvem tecnologia avançada e isso pode ser usado de várias formas, incluindo as próteses de membros para pessoas amputadas que eles ajudam a fabricar num laboratório do interior do estado. O ramo de armas de destruição que eles comercializam não é de conhecimento público, por isso, eles precisam de chamarizes para atrair a atenção das pessoas que acreditam que a companhia trabalha pelo bem da humanidade.

— Você tem acesso aos arquivos que comprovam essa venda de armas?

— Não e ninguém mais tem — respondeu ele —, depois que a Corporação foi desbaratada e o Carlos Castellini Pai foi preso acusado de associação criminosa, todos os dados sobre as atividades ilegais da Castle foram deletados dos servidores e eles conseguiram encobrir muito bem todos os rastros digitais. Eu precisei usar um algoritmo muito avançado de descriptografia para vencer as defesas que os seus técnicos criaram para proteger as informações mais sigilosas e, mesmo assim, não encontrei qualquer prova que nos desse certeza que Eiras ou Castellini Junior tenham reativado mesmo o programa Brigada de Elite.

Foi um erro querer me aprofundar nessa investigação. Eu agora sou cúmplice de invasão cibernética, espionagem virtual e roubo de dados. Eu devia algemar esse garoto, me algemar a ele e nos entregar para a polícia, pensou Regiane, relutante. O seu semblante endureceu pouco antes de ela desabafar:

— Em outras palavras, você não achou droga nenhuma que comprove que o seu amigo de escola tem relação com o robô gigante que assassinou o meu parceiro!

Henrique entendia a frustração de Regiane e procurou se explicar.

— Eu sei que devia ter falado a você mais sobre a minha relação com o Carlos Junior e que eu sabia que era ele dentro do traje do Máquina Brutal o tempo quase todo, mas você precisa entender que eu estava protegendo a minha identidade e mantendo a minha família segura. O Carlos tinha ameaçado matar as pessoas que eu amo se soubesse quem se escondia atrás do capuz do Pássaro Noturno na noite em que lutamos. Se eu te contasse que tinha estudado com o cara que atirou contra o policial Pablo e que o conhecia desde a infância, você não pararia até que estivesse frente a frente com ele novamente. Eu tive medo do que você poderia fazer se chegasse a esse ponto e que acabasse revelando o meu próprio segredo a ele.

Os olhos de Regiane estavam banhados em ódio. Enquanto ele falava, a sua mente voltou imediatamente àquele dia na Rua 19, na antiga estrada ferroviária da Boca do Crime. Ela ouviu os gritos, os tiros, o som mecânico do exoesqueleto gigante. Sentiu o ar gelado novamente em sua pele. Se viu sendo nocauteada pelo braço metálico poderoso da armadura reluzente do Máquina Brutal. Se viu acordando banhada em sangue e, depois, se enxergou alcançando o corpo inerte do parceiro de polícia Pablo todo crivado de balas.

— Achou que eu fosse me vingar dele ou que eu acabasse esfregando aquela cara nojenta de burguês safado em sua mesa executiva envernizada? É isso que achou?

Ela tinha ficado zangada e a sua têmpora esquerda tremulava conforme falava.

— Também perdi pessoas próximas a mim de maneira brutal e sei como é duro suportar o ódio nos queimar por dentro e ter que continuar no controle do seu próprio emocional para não fazer nenhuma besteira. Eu não sabia do que você era capaz... Carlos e os seus comparsas tinham te sequestrado. Você estava com raiva deles. Podia perder o controle se descobrisse com quem estava lidando de verdade. Eu tentei te preservar. Tentei impedir que cometesse algo da qual viria a se arrepender mais tarde.

Ela emitiu um riso carregado de ironia.

— Eu sou uma policial treinada. Sei muito bem lidar com esse tipo de situação de estresse.

Nem ela tinha certeza do que estava dizendo.

— Você encontrou o seu amigo retalhado por balas, Regiane... Nenhum treinamento, por melhor que seja, é capaz de preparar uma pessoa para uma situação dessas.

— Pelo amor de Deus! Você só tem dezesseis anos. O que sabe sobre perdas ou controle emocional?

Naquele momento, ele entendeu que ela estava apenas externando toda a pressão pela qual passava nos últimos meses e se manteve em silêncio por um tempo para não a perturbar mais com aquele assunto. Ficou a procurar novos dados sobre a Castle Industrial no acesso exclusivo que havia estabelecido há alguns dias voltado para o seu computador e esperou até que ela estivesse pronta a falar novamente.

— Você... Você fez bem em não me contar. — Ela admitiu, já conseguindo controlar o seu ímpeto raivoso. — Depois do que aconteceu, toda a história do sequestro, da emboscada na Boca do Crime... Eu não tenho sido mais a mesma pessoa que era. Ando irritada, amargurada e tenho sido descuidada no trabalho. Até o meu chefe percebeu os meus problemas de controle e me mandou tirar umas férias antes da hora. Se eu soubesse antes quem era o Máquina Brutal, com certeza teria ido atrás dele e acabado com o canalha a sangue frio.

Henrique sentiu o estômago queimar ao ouvi-la dizer aquilo de maneira tão sincera e a sua cabeça latejou dando os primeiros sinais de que sua enxaqueca estava retornando.

— E se tivesse feito isso, provavelmente, teria destruído a sua carreira e se tornado igual ou até mesmo pior à pessoa que estaria combatendo.

Henrique deu uma olhada para o armário transparente onde guardava o seu primeiro traje de Pássaro Noturno, colocado ao fundo da parede norte do bunker. Os olhos dela viraram para a mesma direção e a policial o ouviu dizer:

— Eu ainda não sei tudo que sou capaz de fazer sentado aqui na frente desse computador futurista ou cada uma das milhares de coisas perigosas que posso materializar nessa impressora 3D, mas desde o início, eu entendi a responsabilidade que tinha em mãos ao fazer uso das coisas que crio e como a minha consciência certamente pesaria se eu viesse a causar dor e sofrimento gratuito às outras pessoas com esses equipamentos.

Ele ficou um instante em silêncio. Logo depois, voltou a falar.

— Todos os dias, eu me martirizo pensando se estou realmente fazendo o que é certo para tornar a vida de outros moradores da cidade mais justa ou se não estou apenas brincando de ser super-herói com a minha máquina fantástica que dá asas à imaginação... Eu ainda não sei a resposta, mas posso te dizer que faço o máximo que posso para não me igualar as pessoas que tento combater.

Ela absorveu um instante aquelas palavras, depois disse:

— Acho que esse é o fardo que carregaremos para sempre nas costas: a incerteza se estamos fazendo o que é certo ou apenas tentando conviver com as nossas próprias escolhas equivocadas...

Houve uma nova pausa no diálogo. Os dois eram mais parecidos do que gostavam de admitir e, de repente, pararam de competir um com o outro. Estavam juntos naquele caminho tortuoso em busca da justiça e precisavam continuar andando lado a lado. Após o que pareceu uma eternidade de incômoda calmaria, ele quis saber:

— Alguma pista sobre o roubo da armadura do depósito da delegacia?

Eles não haviam conversado sobre aquele assunto desde então, mas ela não estava impressionada que o rapaz estivesse ciente da notícia, já que ela havia sido amplamente divulgada na mídia jornalística.

— Percorremos cada quilômetro quadrado que a pessoa que roubou aquele trambolho de várias toneladas poderia ter usado para escapar da delegacia e não encontramos qualquer pista. — Ela demonstrava toda a sua irritação ao dizer aquilo. — Algumas testemunhas viram o robô sair correndo de dentro do depósito após explodir a parede e seguir direto para um caminhão estacionado na esquina do DP. Ao que consta, o traje não estava com autonomia total para percorrer muitos metros andando sozinho e o caminhão baú partiu tão logo o piloto alcançou a carroceria.

— Como um caminhão aparentemente tão pesado desaparece assim tão rápido?

Ela apertou os lábios.

— Ele não precisava ir muito longe. Descobrimos que havia um heliporto térreo preparado na quadra ao lado do DP e que um helicóptero militar foi visto levantando voo menos de quinze minutos depois da explosão no depósito. Seja lá quem tenha arquitetado o roubo, já tinha tudo muito bem planejado antes de executá-lo.

Naquele instante, Henrique ficou ruminando consigo mesmo o que achava que havia acontecido e compartilhou com a policial.

— Eu tenho certeza que usei carga o suficiente do meu Imã para causar uma pane elétrica bastante severa nos circuitos internos e nos servo-motores da armadura, mas é certo que eu não a deixei inutilizada para sempre. Carlos, ou as pessoas que desenvolveram aquele monstro de ferro, devem ter instalado algum sistema de salvaguarda que armazenasse pelo menos um mínimo de energia a fim de que o equipamento fosse reiniciado. Alguém teve acesso ao depósito, entrou no traje, acionou o circuito de emergência, consertou os problemas mais básicos de locomoção e armamentos, por exemplo, depois saiu pilotando a armadura com tudo, já seguindo para o caminhão que iria tirá-lo rapidamente dali. Certamente, a roupa não seria capaz de enfrentar um pelotão da polícia ou fazer as mesmas peripécias demonstradas na Rua 19, mas devia estar suficientemente consertada para correr e escapar do depósito.

— Era alguém experiente dentro do exoesqueleto — deduziu ela. —, uma pessoa que supostamente já devia ter pilotado algo tão complexo antes.

— Sim — concordou ele. —, mas duvido que fosse o próprio Carlos. Era dia, havia muitas pessoas transitando ao redor da delegacia àquele horário... Eu o conheço bem. Ele não se arriscaria tanto. Ainda mais se a fuga acabasse frustrada pela polícia. Provavelmente, foi algum técnico ou assistente que o ajudou a testar os comandos do traje e que foi infiltrado dentro do depósito.

— Infiltrado por quem? — Havia sinais de estresse na voz da morena.

— Não podemos acusar ninguém, mas é possível que alguém dentro da delegacia tenha facilitado a entrada dessa pessoa no depósito.

Regiane custava a acreditar naquela teoria, mas não era tão ingênua a ponto de não desconfiar que algum dos próprios colegas de departamento pudessem se vender por um trocado a mais.

Isso já aconteceu na época da administração do Romero Assis e pode acontecer de novo, pensou ela, amargurada.

Depois do assunto Máquina Brutal, Henrique retomou a investigação sobre os políticos da cidade e a quantas andava o seu trabalho de espionagem noturna.

— Há alguns dias, eu segui algumas pistas sobre o Washington Castro que me levaram a uma casa noturna da região norte chamada La Phoenix, e lá, eu descobri que o lugar serve de fachada para que o tal "Jota", o chefão do Comando Central, possa lavar o dinheiro que consegue das milícias comandadas pelo Romero Assis.

— Então temos como descobrir, afinal, quem ele é e qual a natureza da sua ligação com o vereador Castro? — indagou ela, voltando a ficar curiosa.

— Eu não consegui muita coisa a esse respeito, exceto que o Jota comprou o prédio da boate usando o nome falso de uma empresa argentina chamada La Platina e que a única pessoa que tem acesso ao cara é a gerente da casa, uma mulher chamada Maria Fernanda Prates, a qual todos se referem como "Fernandona", ou simplesmente "Dona".

Os dedos ágeis de Henrique digitaram um novo comando no teclado e ele abriu na tela imagens da mulher citada, tiradas de uma rede social de relacionamentos.

— Foi difícil encontrar na internet qualquer coisa que fosse minimamente relevante para a nossa investigação. Tudo que temos dessa mulher é o perfil da sua rede social que ela costuma atualizar toda semana. Não há qualquer informação sobre estado civil, endereço ou sobre a sua vida antes de se tornar a manda-chuva de uma casa noturna, mas o que eu sei é que ela tem um caso amoroso com um dos encarregados do transporte do dinheiro extorquido pela quadrilha no tal "arrego" e que ela sabe de todos os podres que acontecem dentro da La Phoenix.

— Se o Jota confia tanto nessa mulher ao ponto de deixá-la no comando das suas atividades criminosas, ela deve ser bastante importante para ele. Temos que ficar em cima dessa tal de Dona para chegarmos ao comandante.

Regiane tinha ficado levemente eufórica.

— Parece que nenhum dos capangas que trabalham para o cara já o viram alguma vez na vida, mas é certo que ele aparece de vez em quando para assistir aos shows especiais de strip-tease que rolam na casa aos fins de semana. É lá que ele deve se encontrar escondido para confabular com o Romero Assis, o vereador Castro e até o presidente da câmara municipal Nazareno Fernandes.

A policial fez então uma cara enigmática e, após encarar o próprio relógio de pulso, disse, sem qualquer hesitação:

— Hoje é sábado e ainda é bem cedo para que uma casa noturna com shows de strip-tease esteja aberta. Se agirmos rápido, podemos fazer uma visita a essa tal La Phoenix para darmos uma assuntada e, quem sabe, prender alguns canalhas em flagrante.

Henrique havia entendido o raciocínio da sua parceira policial e emendou:

— E como diz aquela música, "todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite".



Nota do autor: Toda a saga "Pássaro Noturno" de Rod Rodman é um trabalho de uma vida toda e houve muita dedicação na construção desse universo. Se você chegou até aqui, não esqueça de votar no capítulo e comentar o que está achando da história. A sua opinião é muito importante para o autor. NAMASTE!    

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