Capítulo 15 - Sob o bunker
O ÔNIBUS DA LINHA 351 que transportava os passageiros do centro da cidade até o Bairro do Encanto estacionou na esquina da avenida Gomes Brossard com a rua Teixeira Barreto aquela noite e um apaixonado Henrique desembarcou ainda com as ótimas lembranças em mente da tarde agradável que havia passado com a sua companhia. Andou os poucos metros que separavam o ponto do coletivo da entrada da sua casa e, com um indisfarçável semblante de pura felicidade no rosto, chegou a cantarolar mentalmente uma canção romântica da MPB cuja letra havia aprendido na infância.
Caminhou a passos lentos até a rua onde morava e, conforme se aproximava da primeira casa, a de muros altos com tinta carcomida, distraiu-se o suficiente consultando as horas no relógio de pulso para não perceber que havia um sedan preto estacionado em seu portão com uma moça do lado de fora encostada no capô.
— Voltando de um passeio romântico?
Os olhos de Henrique se voltaram para a dona do veículo e, por um instante, ele se engasgou com a própria saliva. Tossiu para desobstruir a passagem de ar na garganta e se aproximou completamente aturdido da mulher de pele morena e cabelos ondulados a olhá-lo de maneira desafiadora com os braços cruzados em frente ao peito.
— O... O que você está fazendo aqui?
Henrique desviou a atenção para o portão metálico que dava para o seu quintal e notou que as luzes da entrada estavam acesas. O céu sobre as suas cabeças estava enegrecido, passavam das oito da noite e o velho aposentado que morava no sobrado do outro lado da rua os observava lá de cima enquanto fumava o seu cigarro na varanda.
— Visitando um amigo que anda sumido.
Regiane tinha esboçado um sorriso breve que se desvaneceu rápido. O homem no alto da sacada pigarreou prestando a atenção na conversa em frente à residência dos Harone e uma mulher que morava a oito metros dali gritou em seu quintal para que o filho pequeno que dava voltas de bicicleta diante da própria casa entrasse para tomar banho. Aquele era um começo de noite típico no bairro suburbano.
— Como... Como você...? O...O que você...?
Henrique tinha ficado apoplético e começou a andar em círculos diante da policial enquanto tentava entender o motivo da sua visita àquela hora.
Ela não devia estar aqui. Está expondo a minha identidade secreta... Vai colocar a minha família em perigo, pensava ele com a mente aos gritos.
— Se acalma. Eu vim pra conversar com você. Tenho novidades sobre a nossa investigação.
Regiane o viu apanhar as chaves no bolso da calça jeans e percebeu que o seu rosto estava avermelhado. As mãos trêmulas sacudiram o molho e ele encontrou a chave que procurava. Apontou para o portão da garagem da sua casa e pediu que ela o seguisse.
— Como me encontrou? Eu nunca disse o meu nome...
Enquanto andava a poucos passos atrás dele, ela pareceu insultada.
— Se não se lembra, eu sou investigadora. O meu trabalho é basicamente achar pessoas.
Ele a encarou por um segundo, depois, direcionou a chave na fechadura e abriu uma das metades do portão maciço de dois metros de altura. Deu espaço e insinuou que ela entrasse na frente.
Lá dentro, Regiane avistou uma área de pouco mais de seis metros quadrados. O ouviu lacrar a saída às suas costas e deu alguns passos até o centro da garagem. Duas prateleiras com grades de alumínio jaziam entulhadas de caixas de papelão ao fundo, ao lado de uma bicicleta seminova de seis marchas. Um carpete velho cobria o piso sob seus pés e no canto leste estavam jogados alguns aparelhos de ginástica, dois halteres de musculação e uma corda.
— Gostei da sua academia particular!
Ela estava usando um raro tom sarrista aquela noite e o viu se aproximar quase sussurrando.
— Eu... Eu preciso subir um segundo para avisar a minha mãe que eu já cheguei. Espere aqui e não faça barulho.
Regiane o acompanhou com os olhos enquanto o garoto levemente histérico subia as escadas que davam para o quintal e aguardou cerca de dez minutos. Usou aquele tempo para espionar o que havia nas caixas da prateleira e não encontrou nada além de livros escolares empoeirados, jogos velhos de tabuleiro, revistas em quadrinhos e outras quinquilharias sem utilidade. Observou as marcas antigas de pneu sobre o carpete e deduziu que um veículo estivera estacionado ali por muito tempo, há vários anos.
Por que ele me trouxe aqui pra dentro? Está tentando me esconder da vizinhança? Enquanto ela elucubrava, a porta acima das escadas tornou a se abrir e um Henrique de cenho fechado desceu os degraus.
— Achei que fosse me convidar para tomar um chá, uma cerveja ou algo assim lá em cima com a sua família, Henrique. — Ela ironizou. — É assim que trata todas as suas visitas?
Ele estava sem humor e a fitou de maneira séria antes de empurrar uma das prateleiras para o lado e a deslocar com o movimento de uma roldana pregada na parede. Se abaixou e começou a desenrolar o carpete no canto da parede norte. Espalmou a mão direita sobre um painel sensível ao toque instalado na chapa metálica de um metro e vinte de comprimento por um metro de largura no chão e esperou o som de destravamento que soou antes de puxar a tampa da escotilha. Um alçapão se revelou para a policial.
— Vem — convidou ele com um gesto. —, lá embaixo estaremos mais seguros. Ninguém vai nos ouvir.
Regiane estava bastante curiosa para saber o que havia no interior daquele buraco e levou alguns segundos para segui-lo pelo que parecia ser um porão secreto. Desceu os quatro metros de escadas que separavam a garagem do piso rústico sob os seus pés e enxergou à frente um corredor de dez metros de comprimento todo iluminado por luzes automáticas que se acendiam a pouco mais de três metros sobre a sua cabeça.
— Mas o que diabo...?
A moça não sabia o que pensar e viu Henrique chegar perto de uma porta que antecedia uma câmara cavernosa de aspecto sombrio a convidando a conhecer o que chamava atualmente de bunker.
— Lembre-se: Eu estou prestes a mostrar isso pra você porque fui pego de surpresa com a sua presença na frente da minha casa e não estou raciocinando direito. Espero que entenda que deve guardar segredo sobre o que vai ver aqui.
Regiane ficou maravilhada com a visão daquele espaço de quase vinte metros quadrados escondido sob a casa de subúrbio que vira pelo lado de fora do portão. Após correr os olhos pelos equipamentos tecnológicos desconhecidos que emitiam sons mecânicos e acendiam LEDs coloridos como que sensitivos à sua chegada, ela se voltou para o rapaz esguio usando camiseta polo branca.
— Como você comprou tudo isso? É... É incrível!
Cautelosa feito uma visitante de museu, a policial passou a caminhar pelo interior do bunker observando de perto sem tocar nos artefatos guardados ali. Viu o seu próprio reflexo na tela transparente de cristal do CAD que, naquele momento, parecia rodar automaticamente algum tipo de algoritmo escrito em letra azul ciano. Depois, andou até o Sarcófago, olhou para dentro do seu visor transparente, encarou a plataforma brilhante onde os trajes do Pássaro Noturno eram modelados e, finalmente, se deparou com a impressora de dois metros quadrados que ele chamava de Matriz de Impressão; com seus braços hidráulicos repousados do lado mais externo e aguardando para confeccionar o próximo projeto do seu jovem mestre.
— Isso tudo é... inacreditável! — Ela estava agora em pé encarando o manequim de plástico vestido com um dos trajes do Pássaro Noturno dentro de um tipo de cristaleira sem divisórias. — Só alguém com muito dinheiro ou incrivelmente inteligente poderia criar essas coisas...
Havia agora uma fisionomia entre o curioso e o ofendido no rosto de Henrique, que se apressou em explicar à sua visitante:
— Eu encontrei esses equipamentos aqui embaixo quando eu tinha treze anos e sei tanto quanto você sobre a sua origem. Estudei o seu funcionamento durante vários meses e só quando consegui decifrar melhor o idioma com que tudo estava codificado é que consegui fazer uso do computador, da máquina de impressão e do tecelão mecânico.
Regiane andou de volta até a frente da tela de setenta e duas polegadas do CAD e observou que parte da linguagem do código escrito ali fugia do seu conhecimento.
— Está dizendo que simplesmente achou um computador altamente tecnológico embaixo da sua casa e o fez funcionar?
Havia incredulidade no semblante da moça e ele só acenou que sim. Henrique se sentou diante da tela, digitou alguns comandos no teclado sensível sobre uma repartição do console e abriu uma janela virtual transparente totalmente escrita com o tal idioma que ele havia mencionado. O texto estava dividido em linhas simples e não havia qualquer sinalização de parágrafos ou espaçamentos minimamente perceptíveis entre os blocos maiores. Alguns dos símbolos perfilados se pareciam com hieróglifos egípcios antigos e outros eram como kanjis japoneses, embora não obedecessem às regras linguísticas de nenhuma das duas culturas.
— Eu pesquisei a fundo o que significavam todos esses símbolos, mas até hoje, não consegui determinar a sua origem. Nenhuma linguagem escrita ou falada no planeta Terra segue esses padrões de design e de regras ortográficas, o que me levou a acreditar que é algum tipo de código próprio inventado pela pessoa — ou pessoas — que projetaram todos esses equipamentos.
Regiane estava com os olhos fixos no monitor levemente inclinada atrás dele na cadeira.
— E como você consegue entender o que está escrito?
— Boa parte dos signos consegui traduzir para o português, mas a outra metade é mais por dedução. O teclado me ajudou bastante a decifrar o que querem dizer alguns desses desenhos...
E ele lhe mostrou o teclado escuro perto dos seus dedos. Era inteiramente grafado com dezenas daqueles símbolos estrangeiros sobre os seus botões arredondados.
Henrique tinha se sentido intimidado pela visita repentina da agente policial à primeira vista, mas começava a gostar de tê-la ali para poder dividir o peso de todos aqueles segredos com mais alguém.
Desde que os seus amigos, Ricardo e Antônio, tinham desistido de acompanhá-lo no combate ao crime com as suas identidades heroicas de Thunderwing e Espião Negro, as noites eram bastante solitárias em seu esconderijo. Poder falar sobre o mundo do Pássaro Noturno lhe soava agradável.
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