Capítulo 14 - Tarde romântica
— ONDE VAI ASSIM todo arrumado e perfumado?
Cecília apareceu à porta do quarto enquanto Henrique se olhava no espelho dando uma última conferida no seu visual. Tinha optado por usar uma camisa polo branca e a calça jeans nova que havia comprado recentemente. Não queria transparecer formalidade excessiva e nem tampouco desleixo proposital. Não tinha ideia de como Thais estava encarando aquele encontro ou como deveria se comportar ao longo dele, o que o estava apavorando.
Acho que prefiro ir para o ringue encarar um segundo assalto contra o Máquina Brutal do que ficar nessa incerteza se estou indo para um encontro romântico ou apenas uma saída entre amigos, pensou ele, um segundo antes de responder à mãe sorridente:
— Vou apenas pegar um cinema com uma amiga.
Carina apareceu à porta e olhou o irmão de cima a baixo. Assim como a mãe, deu um sorriso cheio de deboche e emendou:
— Será que desta vez eu ganho uma cunhada?
Henrique fechou o cenho e deu-lhe as costas por um segundo. Foi até a escrivaninha, apanhou a carteira, a enfiou no bolso e se voltou para as duas bisbilhoteiras.
— Já disse. Só estou indo ao cinema com uma garota da escola.
Ao passar pelas duas junto ao batente, ele deu um beijo no rosto da mãe e se despediu de ambas na sala da casa. A TV estava sintonizada num canal de notícias e uma repórter local mencionava a segunda tempestade elétrica que havia atingido os céus de Copacabana no Rio de Janeiro só aquela semana. Henrique estava ansioso demais para prestar a atenção no que dizia a reportagem, mas se lembrou que em poucos meses estaria visitando a Cidade Maravilhosa na companhia de Thais e dos seus amigos de ensino médio.
— Volto mais tarde, tchau!
E ele saiu pela porta, acenando com um gesto que se assemelhava a um cumprimento vulcano de Jornada nas Estrelas. A irmã caçula tinha entendido a referência.
Henrique marcou de se encontrar com Thais na entrada do cinema de um movimentado shopping center do bairro da Barra Funda, na Zona Oeste de São Paulo e, a cada minuto que ela se demorava a chegar, mais o seu estômago gelava.
Tinha vivido uma sensação muito parecida ainda durante o ensino fundamental, quando marcou um encontro com a sua antiga paixão de adolescência, Daniela Ramos, e jamais conseguiu chegar ao local. Na ocasião, ele havia sido apanhado de surpresa por um assalto ao banco onde pagava as contas de casa, mas nunca teve a chance de explicar à garota o seu infortúnio. Daniela tinha ficado extremamente magoada por ter sido abandonada por ele horas seguidas e, depois disso, os dois nunca mais se falaram, embora Henrique quisesse muito se desculpar com ela.
Seu desejo que as coisas fossem diferentes com Thais era enorme, por isso, o rapaz havia feito de tudo para chegar antes do horário. Não queria ver a decepção no olhar de mais ninguém.
— Demorei muito?
O jovem Harone se delongou alguns segundos para responder impactado pela beleza da sua acompanhante. Thais havia se produzido bastante para sair com ele, o que o deixou ainda mais nervoso quanto à natureza daquele encontro.
OK. Ela está maquiada, bem perfumada, usando um vestido justo e deixou os cabelos soltos... Está bem óbvio que não está pretendendo que esse seja apenas um encontro banal entre amigos. Isso é um encontro romântico... O QUE EU FAÇO?
Ele estava em pânico.
— Eu também acabei de chegar — mentiu. —, mas já comprei os ingressos — estava gaguejante. —, vai querer pipoca?
— Sem manteiga.
Os dois tinham conversado previamente sobre um filme de ficção científica que estreara há poucas semanas e que estavam ambos empolgados para assistir, por isso, a decisão na hora de escolher fora rápida. Ele a ajudou a carregar o seu saco grande de pipocas até a sala de projeção e ela o seguiu bem de perto, tentando enxergar o caminho até os seus assentos ao fundo do cinema. As luzes já estavam apagadas e um trailer bastante barulhento de uma nova produção de super-heróis de quadrinhos agitava a multidão de espectadores que já estava instalada em seus lugares.
— Vamos tentar arranjar um lugar ao centro da tela. — disse ele enquanto subia os degraus e passava pela quarta fileira de cadeiras.
— Não muito longe, senão, eu não consigo enxergar as legendas!
Os dois se acomodaram na sexta fileira e Henrique se certificou de que ela estivesse confortável antes de lhe passar o saco de pipocas. Tão logo se sentaram, Thais encostou o seu braço esquerdo no dele e ambos ficaram bem perto um do outro para que pudessem cochichar sobre os trailers sem incomodar os demais espectadores. Quando a aventura galáctica ao qual estavam tão animados para assistir teve início na tela, eles já tinham devorado metade do saco de pipocas e todo o resto desapareceu em torno dos dois. Estavam vidrados no filme.
Aquela era a primeira vez que os Henrique e Thais saíam juntos para se divertir sem as piadas de Rafael, as risadas escandalosas de Kátia ou as broncas mal-humoradas de Denise. Estavam tão acostumados a terem os outros quatro amigos por perto que nunca tinham pensado no motivo pela qual ainda não haviam se permitido estarem a sós, sem eles para desviarem todas as atenções.
— Gosto dessa abordagem mais aventuresca que o diretor propôs para Star Trek nos dias de hoje, mas confesso que senti falta daquele clima tosco proposital da série antiga de TV!
Os dois estavam discutindo à mesa da praça de alimentação o que tinham achado do filme que acabaram de ver. Enquanto ela falava sobre o roteiro, a direção e até a fotografia escolhida pelo diretor da produção hollywoodiana, ele só conseguia prestar a atenção em seu rosto, nos gestos delicados, na maneira como os seus olhos brilhavam quando se empolgava e nas covinhas em suas bochechas.
— ... estou bastante ansiosa para uma segunda parte. Ouvi dizer que os produtores vão explorar melhor a relação do Spock com os seus antepassados vulcanos e até mesmo uma aparição do Khan, que é um dos principais vilões do seriado...
Ela parou subitamente o que dizia e o viu rir de maneira tímida.
— O que foi? Disse alguma besteira?
Henrique acenou que não e terminou de mastigar o seu sanduíche de cheddar antes de responder:
— Estou apenas admirado com o seu conhecimento infinito sobre Jornada nas Estrelas!
Ela então tomou um gole do seu refrigerante. Limpou discretamente os lábios com um guardanapo de papel e disse:
— É que eu realmente gosto muito da série dos anos sessenta. O meu pai tinha todas as fitas e a gente assistia todos os finais de semana. Ele até começou a assinar a TV a cabo para poder rever todas as temporadas quando o nosso videocassete parou de funcionar. Era fissurado!
— Agora entendo porque estava tão empolgada para vir ao cinema. Star Trek te faz lembrar da sua família...
Ela o olhou com firmeza para responder.
— Não foi só por isso.
Ele havia entendido exatamente o que ela queria dizer e se sentiu ligeiramente embaraçado. Thais conseguia mexer com o rapaz sem fazer o mínimo esforço.
Os dois ainda ficaram um bom tempo falando sobre cinema, mas tiveram chance de enveredar por outros assuntos. Thais ainda parecia extremamente magoada com o seu último relacionamento e não demorou até que estivesse se queixando sobre o ex-namorado. Eles estavam na praça de alimentação do shopping tomando um sundae com colheradas econômicas para que o assunto rendesse e ele a ouvia pacientemente.
— ... eu devia saber desde o início, mas o Danilo não estava a fim de um relacionamento sério. A gente se divertia muito. Saímos juntos algumas vezes. Eu o levei para almoçar em casa. Até fez amizade com a minha mãe, mas estava claro pra mim a única coisa que ele realmente queria comigo...
Houve uma pausa e Thais ficou levemente desconcertada.
— O que ele queria?
Henrique não tinha percebido o que ela estava insinuando, então, a garota teve que ser mais explícita.
— Sexo, claro! Era tudo que ele queria comigo.
Thais era uma garota bastante despojada e, por considerar Henrique um amigo, não tinha problemas para falar de assuntos mais íntimos com ele. O rapaz, por sua vez, não estava acostumado a alguém que fosse tão direto ao ponto quanto ela, pelo menos não desde Silmara Santoro, a garota que fora a sua parceira de combate ao crime por quase um ano inteiro e que também não tinha papas na língua.
— Você ficou constrangido...
Ela o observava com maior atenção agora.
— Não, eu só...
— Seu rosto corou. Você ficou envergonhado quando eu falei de sexo.
E então ele ficou ainda mais corado.
— O que foi? Você nunca falou sobre esse assunto com nenhuma outra garota antes?
Ele nem sabia o que responder, mas só de olhar para a sua cara, Thais já sabia a resposta. Ela deixou escapar uma risada.
— Você precisa se soltar um pouco mais, estranho. Daqui a pouco, eu vou começar a achar que sou eu que te deixo assim tão envergonhado!
Ele franziu a testa.
— Por que você me chama de "estranho"?
O sorriso em seu rosto delicado foi murchando até que ela respondesse.
— Por favor, não fique bravo, mas é que "estranho" era como eu, a Denise e a Kátia chamávamos você antes de te conhecer melhor no primeiro ano.
As suas orelhas pareciam querer pegar fogo e ele desviou o olhar por um instante. Os dois estavam sentados frente a frente à mesa e havia várias pessoas ao seu redor na praça de alimentação. O sábado era um dos dias mais movimentados do shopping e uma sessão de cinema havia terminado há poucos minutos o que, costumeiramente, fazia com que aquela área ficasse ainda mais frequentada.
— Você era todo retraído e na sua... Falava pouco, não conversava com quase ninguém e estava sempre no canto, isolado. Eu te achava meio esquisito e as meninas também!
Bom saber que ela me achava bizarro, pensou ele, levemente ofendido.
— Mas eu não penso mais isso. Agora, eu te acho um fofo. Amigo, companheiro, gentil, leal... Eu não teria aceitado sair com você se ainda te achasse estranho.
A resposta tinha tom de justificativa, mas ele entendeu que ela estava sendo sincera.
— Mas continua me chamando de "estranho"...
Ela foi rápida em apoiar a mão sobre a dele na mesa.
— Força do hábito apenas. Agora é mais para chamar a sua atenção e não porque eu te acho estranho!
Ele deu um sorriso sem graça, mas acenou que sim com a cabeça. Não estava mais se sentindo desprestigiado.
Depois da praça de alimentação, a dupla saiu para passear pelos corredores do shopping e acabou parando em uma livraria. Lá dentro, enquanto olhavam juntos nas prateleiras os títulos de livros que constavam em sua lista pessoal de desejos, os dois discutiam sobre os seus autores preferidos, gêneros prediletos e o que mais gostavam de ler nas horas vagas.
— Olha só onde viemos parar...
Thais o encarou de maneira intrigante e apontou para uma placa sobre as suas cabeças que indicava a sessão de poesia. Ele riu na mesma hora e deduziu o que viria a seguir.
— Vamos ver se tem algum livro do Pablo Neruda por aqui.
Thais deu um risinho malicioso e os dois começaram a procurar por autores em ordem alfabética até chegarem na letra "P".
— Se bem me lembro, tem algo de muito familiar a você nesse livro, senhor Harone! — Ela estava segurando um exemplar chamado "Antologia Poética", uma coletânea dos principais poemas do autor chileno, e começou a folheá-lo.
— Você gosta mesmo de me deixar sem graça...
Ela concordou com a cabeça. Sorriu e procurou a numeração correta no índice. Virou as páginas com a mão direita equilibrando o livro com a esquerda e o encarou um segundo antes de começar a recitar com voz sussurrante no meio do corredor da livraria:
— "Quero-te só porque a ti te quero. Odeio-te sem fim e odiando te rogo, e a medida do meu amor viajante, é não te ver e amar-te como um cego..."
Os dois caíram no riso antes que ela concluísse o trecho e uma mulher enrugada que passeava pela livraria lhes lançou um olhar de desdém pelo barulho que estavam fazendo. Ambos a ignoraram.
— É tão profundo esse soneto. Somente alguém muito apaixonado o dedicaria a outra pessoa...
Henrique tinha a intenção de se declarar a Daniela Ramos quando pensou em lhe entregar aquele texto de Pablo Neruda, mas jamais conseguiu concluir o seu intento. Thais o estava encarando fixamente agora e marcava a página do Soneto LXVI com o dedo indicador.
— Você nunca me disse o que aconteceu depois com a sua musa, aquela que te roubou o coração na oitava série...
Ele abaixou os olhos um instante e respondeu com um tom de amargura:
— Nós marcamos um encontro para que eu declarasse todo o meu amor por ela, eu não consegui chegar ao local a tempo e ela passou a me odiar eternamente por conta disso.
Os olhos puxados de Thais se arregalaram um momento e ela ficou sem palavras. Num gesto de carinho, dedilhou suavemente a mão de Henrique como o confortando e, então, disse:
— Quer saber? Alguém assim não merecia uma pessoa tão especial quanto você, Rique. Eu, no lugar dela, teria sido mais compreensiva e jamais me afastaria por um motivo tão bobo.
Thais estava séria e as suas palavras exalavam segurança.
— Mas uma coisa é certa: um cavalheiro de verdade jamais deixa uma dama esperando muito tempo.
Um segundo a mais de seriedade e, então, os dois desataram a rir novamente. Estavam começando a chamar todas as atenções dentro da livraria.
A noite já estava caindo sobre a cidade quando Henrique acompanhou Thais até o ponto de táxi de onde ela embarcaria para a sua casa. Um vento mais forte começava a soprar àquela hora e era o prenúncio de mais uma madrugada fria de outono. Nenhum deles estava agasalhado adequadamente e ela já estava com os lábios trêmulos devido a diminuição da temperatura.
— Eu devia ter ouvido a minha mãe e trazido uma blusa!
Ela sorriu com os braços cruzados frente ao peito, esfregando as mãos nos bíceps e procurando se aquecer.
— Então é melhor ir logo pra casa. Não quero que adoeça por minha causa.
Um táxi estava estacionando no ponto e ela era a próxima passageira na fila.
— Adorei a tarde. A gente devia repetir mais vezes.
Ele concordava.
— Não vão faltar oportunidades.
Pouco antes de ela se dirigir até o veículo branco parado a menos de um metro e meio de distância, Thais ficou esperando que Henrique se despedisse dela com um beijo e, como não houve iniciativa da sua parte, ela mesma resolveu se antecipar. Os seus lábios se tocaram de maneira rápida e aquele foi o primeiro indício concreto de que a menina estava disposta a começar um relacionamento mais do que fraternal com ele.
— Vida longa e próspera, estranho.
Ela lhe piscou um olho e, em seguida, entrou no táxi que saiu do ponto pouco depois. Henrique havia ficado para trás num misto de euforia e ansiedade, já louco para reencontrar com a garota que havia acabado de deixar partir. Há muito tempo não sentia nada parecido com aquilo, mas de repente, era como se fosse capaz de levitar de tão leve que estava o seu corpo.
"Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não querer-te chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo...".
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