Capítulo 11 - O convite
DOIS DIAS TINHAM SE PASSADO desde a ação malfadada na boate La Phoenix e Henrique ainda sentia dores por todo o corpo depois da sua queda-livre de quase oito metros de altura até o chão da calçada. Tinha chegado mancando na escola na manhã seguinte e teve que aguentar o deboche dos amigos que começavam a conjecturar que ele mantinha secreta uma vida noturna de lutador clandestino.
— Só isso para explicar tanto ferimento em um espaço tão pequeno de tempo!
Rafael era sempre o maior agitador das piadas e tinha começado com a história de luta clandestina ainda na época em que Henrique fora obrigado a se ausentar do Basilides Guedes por conta dos machucados conseguidos enquanto lutava por sua vida contra o tanque ambulante chamado Máquina Brutal.
Aquela tinha sido, até aquele período, a maior das batalhas da qual tinha participado e, mesmo ser atingido incessantemente pelas balas de 30mm de um helicóptero Apache durante a queda de Edmundo Bispo não se equiparava ao que havia enfrentado na luta contra Carlos Eduardo Castellini Junior, a pessoa por trás da armadura do Máquina Brutal.
— Não tem luta clandestina nenhuma. Eu caí de bicicleta, foi isso!
Desde que havia começado a se aventurar como o Pássaro Noturno, ainda com o intuito de manter a sua identidade heroica secreta, Henrique tinha se especializado em inventar desculpas para justificar os ferimentos que sofria. Era um péssimo mentiroso desde sempre e quase nunca conseguia convencer ninguém sobre a origem das suas contusões, muito menos os amigos de escola.
— Cara, você pode admitir pra gente que participa de lutas proibidas de MMA — insistiu Rafael, o segurando pelos ombros enquanto os dois eram rodeados por outros colegas de sala, entre eles Alfredo, Denise e Kátia. —, todo mundo aqui tem um segredo ou outro. Ninguém vai te julgar!
As risadas estavam garantidas e, enquanto Henrique se enrolava cada vez mais para se safar da desconfiança dos amigos, mais o seu rosto se avermelhava de vergonha.
— Se você conseguir uns ingressos para a próxima luta, eu juro que paro de te encher!
O clima de piada durou o período do intervalo todo e, de brincadeira, Henrique até chegou a confessar que participava mesmo de lutas clandestinas e que ele levantava um bom dinheiro com isso. Enquanto Rafael gargalhava com o seu jeitão gozador, de repente, o jovem Harone pensou a respeito do que acabara de dizer e chegou a considerar a hipótese.
Seria um bom jeito de levantar a grana dos impostos, pensou, um segundo antes de se convencer de que não teria coragem de se arriscar tanto.
Naquele mesmo dia, Henrique estava em sua baia de trabalho no setor de TI da construtora Suares & Castilho quando se pegou cochilando em frente ao seu terminal por mais de uma vez. Andava exausto desde que havia começado a fazer rondas pela noite de São Francisco d'Oeste em busca de pistas que o levassem à identidade do líder do Comando Central ou de provas que ligassem figuras públicas da cidade à facção criminosa.
Há várias noites não sabia o que era cama, lençol ou travesseiro e, quando viu que não seguraria a sonolência por muito tempo, se levantou para ir até o corredor onde ficava uma máquina de café expresso.
— Vou buscar um copo de café, Chicão.
Francisco Pascal, o supervisor da área de T.I., estava à porta da seção de olho nos subordinados que, àquela noite, estavam bastante ocupados fazendo uma checagem de sistema em suas máquinas. Os dez computadores do local estavam processando concomitantemente milhares de petabytes de dados gerados pela empresa e era muito importante que todos estivessem atentos à suas estações.
— Vê se não demora, Henrique. — disse o homem, sisudo. — Na volta, traz um copo de descafeinado pra mim.
Henrique já conseguia se sentir bastante à vontade em seu trabalho como estagiário de informática e gostava da rotina sempre agitada no décimo sexto andar da torre noroeste onde despachava de segunda à sexta-feira. Por ali, sempre tinha muitas tarefas para executar diante do seu computador. Nunca um dia era como o outro. Chicão sabia delegar funções muito bem para os dez técnicos que o auxiliavam em seu setor e cuidava para que ninguém ficasse atarefado demais. Ele era um excelente chefe e gostava do papel que desempenhava.
— Gostaria muito de continuar por aqui depois que o meu contrato acabar...
Sem perceber, Henrique tinha alcançado o andar de baixo pelas escadas e já estava diante da máquina de café quando ouviu uma voz familiar atrás de si.
— Falando sozinho, estranho?
Thais estava parada sorridente a dois metros dele e riu quando o garoto quase se molhou todo com o café que esguichou forte pela torneira da máquina. O líquido fumegante encheu o copo plástico até a sua borda e ele sentiu a ponta do dedo indicador se queimar.
— V... Você está aí há muito tempo?
A garota de olhos puxados acenou que não. Mal conseguia disfarçar o sorriso no rosto bonito. Estava segurando uma pasta de capa transparente na mão esquerda e escorou um dos ombros na parede que ladeava o corredor.
— Estava passando e pensei ter ouvido uma voz familiar. Aí te vi inclinado na máquina de café falando alguma coisa sobre contratos...
Ele mudou o copo quente de mão e assoprou o seu conteúdo para amenizar a sua temperatura. O cheiro do expresso aguçava o seu paladar e ele quase conseguia sentir o seu gosto mesmo antes de levá-lo à boca.
— Eu tenho essa mania... De vez em quando, fico falando comigo mesmo. Nem me dou conta se tem alguém ouvindo...
Ele disfarçou e ofereceu um copo de café a ela, que recusou.
— Eu tenho que voltar para o meu setor daqui a pouco e, além do mais, café me deixa muito elétrica. Eu evito tomar muito.
Henrique bebericou o líquido e aprovou o seu gosto. Diferente dela, tudo que o rapaz precisava aquele momento era da energia extra concedida pela cafeína.
— A gente nem se falou direito hoje na escola — disse ela, com os olhos fixos nos dele, mantendo a mesma distância de dois metros entre os dois. —, as coisas andam muito corridas por causa do trabalho de conclusão de curso e a Kátia tem me deixado louca com a sua paranoia perfeccionista. — Ela sorriu, mostrando os dentes. Ele concordou com a cabeça sabendo o quanto a amiga em comum deles era apegada aos detalhes mais ínfimos de qualquer tarefa. — Mais um mês nesse ritmo e eu juro que mudo de dupla no meio do semestre... ou me atiro pela janela!
Henrique a acompanhou na risada. Thais costumava ficar ainda mais charmosa quando ria. Duas covinhas apareciam em suas bochechas quando ela contraía os músculos faciais e ele adorava observar aqueles detalhes.
— Eu estou fazendo o TCC com o Rafa e tem horas que eu também perco a paciência com ele. A diferença é que a minha dupla se dispersa muito facilmente. Eu o tenho que chamar de volta para focar nas tarefas o tempo todo...
Mais um gole no café e ele já sentia a sonolência amenizar. Conversar com Thais também o ajudava a ter a adrenalina acelerada e aquilo o mantinha mais atento.
— A gente devia trocar as nossas duplas. Eu ia adorar fazer o TCC com alguém mais calmo assim como você!
Foi um segundo de aparvalhamento e ele não soube o que responder. Thais o estava olhando tão fixamente que Henrique estava se sentindo acuado, como se nunca antes tivesse ficado a sós com ela ou trocado mais do que alguns poucos minutos de prosa.
Por um período curto da sua vida, tinha se sentido completamente apaixonado pela garota, mas sentia que a sua paixão havia acabado quando ela começou a ser vista sempre acompanhada de Danilo Estrada, o jovem de aparência Rock N' Roll com quem ela havia namorado nos últimos meses. Vendo-a ali tão próxima dele e falando tão docemente, no entanto, Henrique descobriu que a sua paixão estava apenas adormecida.
— Bem, eu tenho que voltar para o meu setor agora antes que o meu supervisor comece a me chamar pelo serviço de alto-falante. — E ela riu, já começando a se afastar. — Foi bom conversar com você, estranho. A gente devia fazer isso mais vezes fora da escola, longe dessa loucura toda onde estamos sempre enfiados.
Ao ouvir aquilo, Henrique se encheu de coragem e decidiu falar tudo de uma só vez:
— Por que a gente não sai qualquer final de semana desses? Um cinema, um café... Quem sabe?
Ela inclinou a cabeça por meio segundo como que surpresa e, então, assentiu.
— Eu topo. Por que não no próximo sábado?
O coração dele estava acelerado.
— Sábado seria ótimo.
Thais deu um último sorriso para ele e acenou antes de voltar para o setor de T.I. da administração onde estagiava. Henrique tomou todo o resto do café em seu copo de uma golada só e ficou um tempo digerindo cada uma das palavras que havia trocado com a menina naquele corredor da máquina de expresso. Se sentia num misto de apreensão e ansiedade, e era como se o seu coração estivesse prestes a pular pela boca afora.
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